O.CADERNOS DO ISTA, 5





Da responsabilidade
à compaixão
(1)
MANUEL DO CARMO
FERREIRA




Arriscar-me-ia a propor como tese orientadora do desenvolvimento deste tema que a passagem enunciada no título da exposição – da responsabilidade à compaixão – não pretende significar a saída para algo de diferente do que é ser responsável, não representa o estabelecimento de dois planos bem diferenciados e como que exteriores um ao outro, mas antes que o sentido efectivo da responsabilidade, a instância mais funda e mais plena da responsabilidade reside justamente nessa passagem, que apenas na compaixão se descobre e se consuma a natureza autêntica da responsabilidade. A defesa de uma tal posição implica necessariamente uma revisão radical do conceito mesmo de responsabilidade.

Será essa revisão, será essa tentativa de revisitar o campo semântico que a envolve e que a confina a um horizonte restrito, habitual e irreflectidamente assimilado ao plano jurídico, que permitirá aflorar a conaturalidade de duas atitudes. Indo directamente à conclusão, sem querer precipitá-la, mas apenas para tornar mais claro o quadro reflexivo em que me vou mover, afirmo que a verdadeira responsabilidade é a compaixão. O conceito mediador que funda e justifica esta recondução de um termo a outro, este conceito de passagem, este à que constitui o núcleo de toda a exposição, desvela-se como o conceito de identidade : aquilo que a responsabiliade em última análise se revela ser atesta-se como a fundação, a constituição,a aventura e o trabalho da identificação de ser si próprio como realidade pessoal.

Esclarecer esta assimilação passa por atender à matriz jurídica, na terminologia e na fixação dos conteúdos de sentido, do conceito de responsabilidade e, ao mesmo tempo, por considerar como derivou dessa ordem jurídica para a ordem moral, por uma contaminação ou como que por extensão do conceito à esfera das condutas moral ou eticamente perspectivadas.

A referência jurídica foi predominante desde a origem até praticamente à actualidade, traduzindo-se num uso em que o conceito de responsabilidade coincide em larguíssima medida com o de imputação: considerar alguém responsável, atribuir responsabilidades, significa imputar um determinado comportamento, ou a ausência dele, a autoria de uma determinada acção a alguém.

A imputação tem uma estrutura dual, uma estrutura dicotómica; o acto de imputar leva consigo, por um lado, a identificação de um autor, significa a atribuição de uma autoria, de uma origem decisiva, de uma iniciativa que tem em si mesma a sua raiz, um último reduto de causação, o que implica, pelo menos em parte, a admissão de uma capacidade de começar a partir de si, ou seja, da liberdade; por outro, no pólo oposto, impõe-se um dador da ordem, uma obrigação de adesão a um mandado, o cumprimento de uma norma ou determinação. A responsabilidade implanta-se nessa bipolarização entre uma autoria da acção ( ou da omissão ) que se supõe ou se atribui, e uma autoridade que se impõe e impõe a norma.. Associando-se desde o princípio à imputação, como sua face negativa, está a imposição de uma sanção, quer se trate da obrigação de reparar o prejuízo causado, no plano do direito civil, quer na esfera do direito penal em que a obrigação é sofrer, suportar o castigo feito corresponder à transgressão cometida. Mas, seja qual fôr a modalidade da relação assim estabelecida regista-se sempre a articulação bipolar instaurada entre um acto que tem um autor com nome próprio e a autoridade que o julga: a referência à obrigação que religa estes dois termos em presença é não somente inevitável mas determinante da relação mesma. Semelhante primado da norma coerciva no plano jurídico da posição da questão da responsabilidade desloca igualmente para a autoridade que determina a norma e sanciona o seu incumprimento o fulcro da relação: a lei, a vontade do legislador, tem a prioridade e a liberdade é simplesmente condição da submissão.

A reflexão moral, a perspectivação ética da acção, em grande medida limitou-se a interiorizar, a chamar a si, pretendendo dar-lhe outro campo de aplicação, este posicionamento jurídico.Foi deste modo que a moral se apropriou do primado da lei e converteu a imputação no sinal mesmo da responsabilidade. A própria linguagem a que a moral recorreu trai esta transposição, a adopção do vocabulário importado da esfera jurídica: daí que se fale de foro interior, de tribunal da consciência. É uma linguagem que transfere para para a intimidade, para o plano pessoal a instrumentação conceptual da formalização jurídica

Outro aspecto ainda preambular ao estabelecimento dos termos da questão que nos ocupa respeita o conteúdo mesmo do conceito de responsabilidade; este sofreu, tem sofrido e continua presentemente a registar uma evolução. Afecta-o uma historicidade intrínseca, é passível de uma tripla história, a história que identifica o autor, uma história da norma e da autoridade que cria a obrigação e é, por conseguinte o próprio conteúdo da norma que está sujeito à mudança. Poderíamos em traços muitos largos desenhar essa história e mostar como a responsabilidade tem consistido num processo de uma crescente especificação em que o autor ao qual se atribui uma determinada iniciativa da acção se começou a restringir ao ser humano, depois de ter estado alargado na generalidade a quaisquer seres, quando os animais e até mesmo as coisas eram imputáveis; essa passagem, a estrita vinculação da responsabilidade ao sujeito humano, coincide com a experiência grega. No momento seguinte dessa evolução documenta-se o aprofundamento da autoria que passa a residir no plano da intenção, na sede mais interior da personalidade. Desta revisão o cristianismo foi um poderoso agente ao erigir em centro uma irredutível realidade, dotada de um valor e de uma finalidade em si mesma, a dignidade da pessoa e a intenção como determinante. Agora é o indivíduo que pode assumir, que pode chamar a si a responsabilidade dos actos; não há responsabilidade que se possa diluir na nebulosa grupal e é na raiz profunda do ser que se esconde a última razão e a última justificação do agir. Não é possível rastrear aqui as diferentes fases deste processo complexo; apenas indicaria a terminar um outro momento essencial que consistiu em diferenciar culpabilidade e responsabilidade, dissociação presente no tratamento civil das causas, recorrendo a uma substituição dos efeitos da acção faltosa, isto é, traduzindo fundamentalmente essa falta em termos de indemnização: é-se sempre responsável, independentemente do consentimento deliberado a essa conduta fora da norma, é-se sempre responsável, mesmo quando não se é culpado.A adequação da resposta aos direitos ofendidos, a insistência e universalização da compensação devida pelos prejuízos causados fizeram com que a responsabilidade se generalize como isenta, ou pelo menos como tratável, independentemente de qualquer culpa. Poderíamos ainda ver como se universaliza como princípio a afirmação de que a responsabilidade de todos, sem excepção, é condição, é garantia dos direitos de cada um, seja qual fôr a disposição e o tipo de intervenção que provoca um prejuízo a alguém.

De uma maneira muito sumária e, sem dúvida, excessivamente formal de encarar a responsabilidade, distinguiríamos uma dupla focagem: uma perspectiva que poderíamos designar por tradicional, em que a responsabilidade aparece sempre como retrospectiva, quer dizer, nós só respondemos pelo que fizemos ou pelo que deixámos de fazer; a atribuição da autoria é a fixação, é fazermos coincidir com um passado, isto é, com uma identidade já constituída, o sujeito da acção. Esta foi a perspectiva dominante no tratamento da questão da responsabilidade. Emerge agora uma outra visão, a que poderíamos chamar prospectiva: em face do tratamento tradicional, mesmo quando projectava os efeitos do acto cumprido era ainda o feito que privilegiava, dá-se a abertura à dimensão de todo o futuro. Nasce assim a noção de responsabilidade como de um por-fazer. Aqui radica a interpretação que defendemos, nem somente retrospectiva nem simplesmente prospectiva, mas ligada a uma ordem de fundamentação de outro tipo: a responsabilidade surge como inauguração de um novo modo, único, de ser e de ser como fundamento daquilo que estava permanentemente presente na concepção jurídica e na reflexão moral, mas que exige um repensar, fundamentalmente a dimensão da autoria.

Para pensar de novo o sujeito da acção, para a reposição da fundação da responsabilidade numa ordem de radicalidade, temos de proceder a uma revisão muito profunda do conceito de autor. Para isso proporia que atendéssemos a uma passagem do Talmud, conhecido por Talmud da Babilónia, que condensa magnificamente todo o problema da responsabilidade na perspectiva que nos interessa:

Se não respondo por mim, quem responderá por mim?
Mas se só respondo por mim, serei ainda eu?  

Temos aqui, na concentração muito sugestiva e muito directa o que verdadeiramente importa quando está em questão a responsabilidade. Em primeiríssimo lugar alude-se à responsabilidade imediatamente articulada com a etimologia da palavra; a responsabilidade traz consigo o sentido de uma resposta a dar e essa resposta é desde logo indiciada como dupla: responde-se por e responde-se a .Mas semelhante etimologia do termo responsabilidade não se esgota neste sentidio de dupla direcção; a origem latina do termo reveste mais primitivamente uma outra acepção que se revela essencial para a reposição do tema em causa – re-spondeo – significa no princípio, não o que se fixou nas línguas latinas " respondo " mas " eu garanto ", " eu dou-me como fiador ", e este sentido em grande parte atenuado ou perdido abre para horizontes insuspeitados e permite-nos reencontrar uma mais radical compreensão do ser humano como " o animal que promete ", na bela definição que do homem nos dá Nietszche, o animal capaz de garantir, de afiançar que estará lá, o homem que garante continuar a responder no futuro. Esta dimensão nova da promessa aparece então como informando o próprio relançamento da questão da responsabilidade.

Procurando delinear o horizonte geral, retorno às perguntas do Talmud : se não respondo por mim, quem responderá por mim? Quem ? Isto confronta-nos com a questão da identidade; quem é que está presente à relação, colocando-nos em face de uma alternativa sem outra saída, a de ou estarmos efectivamente presentes e sermos nós quem aí está, ou trasferirmos para outras instâncias, para outras entidades essa presença e vivermos então sob a forma da demissão, sob a forma da retirada e da ausência, sob a forma do eclipse de si: se não sou eu quem responde, quem responderá por mim? Acentua-se com isto uma impossível substituição, há aqui um impossível vicariato; não se vive nem se está por delegação, nem em representação. A responsabilidade é a adopção dessa presença, é o preenchimento dessa presença, mais especificamente, é esta presença mesma: se não respondo por mim tudo se desvanece num anonimato universal que retira o próprio sentido de perguntar. Creio ser este modo de problematizar que nos permite recuar para além do questionamento jurídido-moral e aceder ao plano da fundamentação.

A segunda interrogação do Talmud, consubstancial à primeira, atesta-se igualmente como decisiva: se só respondo por mim, serei ainda eu?

A identidade afirmada em primeiro lugar é uma identidade necessariamente individuante, que me configura a mim numa unidade irrepetível e intransferível:eu frente a tudo o mais, eu confrontado com o resto da realidade; mas nesse fechamento constituinte, nessa pura referência a si, nesse encluasuramento sobre si, nesse esgotamento em si, será ainda possível falar, pergunta o Talmud , de identidade com nome próprio? O simples enunciado da pergunta alude ou encerra em si desde logo uma resposta negativa; a identidade faz-se indubitavelmente na dimensão da presença e da insubstituibilidade, mas simultânea e imprescindivelmente numa referencialidade a outra coisa ou a outro eu, a outrem, que me espera e conta comigo, referência tão fundadora e tão essencial a essa outra presença, sem qual não há efectiva presença, não há identidade.










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