DAS VANTAGENS DE NÃO SER PRECIOSO:
ASPECTOS DA EXPLORAÇÃO E USO DO COBRE EM PORTUGAL (1789-1889)

Introdução 


«É o Ouro o metal  mais nobre e mais perfeito de todos os metais,
por cuja causa os Químicos
 lhe chamam Sol (...) Este é o metal que do
coração humano é tão senhor, que só pelo servir e haver deixam
os homens as pátrias,
arriscam as vidas, e atropelam as honras.
Este é o que faz maravilhas, fazendo os ignorantes sábios,
os humildes poderosos
e soberbos, valentes os fracos, e Fidalgos
 os mecânicos ...»
António da Silva, Ensaiador da Casa Real da Moeda,
e Ourives da Prata na Corte e Cidade de Lisboa,
Directório Prático da Prata e do Ouro
1771


Qualquer referência ao papel do cobre na sociedade passa necessariamente pela explanação das suas vantagens, em termos da sua exploração e utilização, quando comparado a outros metais. Dotado de propriedades físicas e químicas únicas, com tendência para se concentrar em grandes depósitos minerais, o cobre oferece uma feliz panóplia de características «facilitadoras», que lhe terão permitido, desde a Antiguidade, um protagonismo crítico no desenvolvimento das civilizações : em primeiro lugar, por ser o único metal, que encontrado naturalmente no estado nativo, se adequava à produção de ferramentas, e pela relativa facilidade com que se procedia à sua extracção, dos minerais onde se poderia encontrar ; em segundo, pelo marcado pendor para se associar com outros metais. Aproveitando-se disso, os antigos fizeram do cobre e suas ligas, armas, ferramentas, moedas e adornos. A era moderna trouxe a electricidade, e com ela a vantagem de se ser bom condutor, a necessidade de uma crescente pureza, e as normas internacionais para definição do cobre de condutividade eléctrica específica.

Situado no bloco dos metais de transição da Tabela Periódica, o cobre tem por «familiares» mais próximos o ouro e a prata, e partilha com eles entre outras propriedades físicas, o tipo de estrutura, cúbica centrada, as temperaturas de ebulição elevadas, a maleabilidade e a ductilidade, a condutividade térmica e eléctrica, que são excelentes.

Quimicamente, caracterizam-se por alguma inércia, traduzida em especial na resistência à corrosão. A pouca eficácia com que a dezena de electrões d que todos possuem nos seus átomos, realiza a blindagem do campo electrostático criado pelo núcleo, provoca a «compressão», por assim dizer, da estrutura nos sólidos, que são por esse facto muito densos, em especial o ouro. Os iões destes metais também são pequenos, e os seus compostos têm tendência a exibir energias reticulares muito elevadas, por isso muitos deles são insolúveis em água.

Esta identidade – química e fisicamente falando – entre o cobre, o ouro e a prata não teve contudo, uma expressão correspondente no campo social. Apesar de todas as suas vantagens, o cobre não pode ombrear com a inalterabilidade do arquétipo –  a Alquimia não lhe permitiu outra condição senão a de uma etapa no caminho natural para a perfeição do ouro. A beleza do seu brilho, e alguma semelhança de aspecto com o  metal amarelo assegurou-lhe até um lugar de sucedâneo na arte dos ourives e douradores. Na amoedação dos metais preciosos, o cobre era «metal baixo», impureza para reduzir os quilates do ouro e os dinheiros da prata. Mas o Estado não podia dispensar as moedas de cobre - necessárias para as «compras miúdas», eram o dinheiro do povo.

Grosseiro quando o ouro era perfeito, corriqueiro onde o ouro era precioso, abundante enquanto o ouro era raro. Mas  necessário. Incidindo fundamentalmente na metalurgia do ferro e do aço, a primeira industrialização não lhe conferiu ainda a sua verdadeira dimensão de metal útil. Essa virá somente com a magia da iluminação.

Os limites temporais escolhidos para este trabalho pretendem reflectir esta transição, e referem-se particularmente ao contexto português. A primeira data (1789) inscreve-se numa época de fértil actividade em escritos económicos e de pendor científico – estamos em pleno período ilustrado. A atenção que os nossos memorialistas concederam ao cobre poderá constituir um elemento significativo para o reconhecimento do valor que os sectores esclarecidos da sociedade portuguesa atribuíam nessa altura ao metal em causa.

Obviamente, a percepção da importância dedicada ao cobre pelos homens da ciência nessa época, não basta para traçar um quadro real (mesmo que apenas esboçado) sobre este metal em Portugal. Da valorização pelo texto é necessário passar para a aplicação no terreno. Por isso um alicerce desta indagação sobre o cobre se centra nos aspectos do seu uso. Razões várias levaram a que de um universo de utilizações possíveis, escolhesse-mos a actividade da amoedação para estudarmos aspectos tecnológicos do seu processamento. A existência de uma produção bem localizada e continuada no tempo, corporizada na Casa da Moeda de Lisboa, a acessibilidade e a potencialidade dos respectivos arquivos, os estudos já realizados abordando directa ou indirectamente questões da amoedação, são algumas dessas razões.

Outros campos de utilização do cobre, como o dos arsenais do exército e da marinha, e o da caldeiraria, e manufactura de aparelhos como alambiques, por exemplo, não puderam ser alvo do nosso escrutínio, porque de outra forma estaríamos em presença de uma investigação com fôlego distinto. Por este motivo e também porque se alongaria demasiado o texto, não lhes dedicamos aqui a atenção que decerto mereceriam, se pretendêssemos um estudo completo.

A complexidade inerente ao reconhecimento de processos tecnológicos e suas mutações ao longo do tempo, fez-se sentir desde logo nas primeiras intervenções, tanto mais que a maioria das fontes consultadas não foram originalmente elaboradas para discutir questões afectas a esse processamentos, e muito menos com o objectivo de os dar a conhecer. Podemos mesmo afirmar que em algumas das situações, os dados foram «espremidos» por via indirecta: a propósito de outro assunto, por vezes encontrava-mos mais alguns indícios sobre o processamento tecnológico do cobre. Tornou-se necessário igualmente utilizar referências muito diversificadas, e em certos casos, recorrer a fontes documentais bem mais recuadas do que a data tomada como ponto de partida, para que as informações pudessem articular-se com algum nexo.

Se bem que cedo tivesse-mos constatado a impossibilidade de obtermos um produto com muita consistência, o facto é que o ténue tecido resultante carece de ser fortalecido com alguma fibra mais forte. Permanecem muitas dúvidas que importaria esclarecer e também questões em aberto para responder, mas não deixamos de esperar, apesar de tudo, ter dado alguns contributos para o estabelecimento de um quadro tecnológico para a amoedação do cobre  em Portugal entre 1789 e 1850.

 O início da segunda metade do século XIX introduziu-nos uma outra problemática a este metal associada: a da sua exploração. Várias obras e fontes documentais consultadas criaram-nos a convicção de que esta terá permanecido largo tempo «adormecida» (isto é, não realizada, ou em termos tais que podemos considerá-la, numa primeira aproximação, negligenciável) em Portugal – não nos esqueçamos que para o ano de 1853,  fontes oficiais do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria referiram várias vezes a existência de apenas uma ou duas minas em exploração em todo o território nacional (carvão de pedra em S. Pedro da Cova e chumbo no Braçal), e nada nos indicia que o cobre tenha sido uma excepção a este estado de penúria. O período da  Regeneração ao contrário, veio espevitar o sector da exploração mineira no nosso país,  muito em particular na parte baixa da província alentejana, onde as minas de cobre irromperam da faixa piritosa com uma premência tal que se diria, esta sim, ter acordado de repente.

A grande demanda pelo ácido sulfúrico que grassou na Europa, e a consolidação da obtenção industrial do mesmo por uma via pirítica, despertaram a atenção do exterior sobre as massas «esquecidas» desse minério no pequeno rectângulo da península ibérica. A segunda metade do século vai permitir a exploração sistemática de pirites em Portugal e trazer um interesse e atenção nunca anteriormente concedidos às questões do cobre.

Condicionados em tempo e em espaço neste projecto de trabalho, a escolha tornou-se de novo necessária – não podíamos abarcar por completo o universo de explorações que se iniciaram por essa época, e que mantiveram alguma continuidade temporal. A maior opção surgiu naturalmente. Teria que ser S. Domingos. As razões podem ser encontradas nos muitos estudos que sobre estas minas já foram realizados. Em relação a todas elas, gostaríamos apenas de sublinhar a questão do aproveitamento de minério pobre que ali se praticou em larga escala, quase uma década após o início da sua exploração.

Valorizar uma matéria que de outra forma se amontoava sem destino, útil apenas no contributo para a depreciação da qualidade do ar, terrenos e cursos de água das imediações, foi sem dúvida um ganho tecnológico. E esse progresso, em parte basilar para toda a economia da mina, se bem que não tenha uma génese nacional (estudos e projectos de Espanha e Inglaterra), foi contudo realizado em território português. A partir da década de setenta do século dezanove produzia-se cobre, à boca da mina, em escala industrial. E se bem que as fontes indiquem como principal destino as fundições de Swansea, não temos a certeza de não existirem algumas franjas de mercado nacional (não só carente, como com necessidades crescentes em cobre) a recorrerem aos cementos de S. Domingos.

Esta incerteza torna-se maior quando existem indícios de que esta mina poderá ter abastecido o mercado nacional de pirites para a produção industrial de ácido sulfúrico, quando este, em Portugal, começou a ser produzido a partir dessa matéria prima.

Podemos resumidamente afirmar que a nossa abordagem a S. Domingos, centrada em particular no processamento de minério pobre, se deve ao facto de nesta mina, por uma conjuntura e procura externas, se ter proporcionado uma produção metalúrgica de cobre por via húmida, em Portugal, facto que consideramos com significado em termos da evolução da tecnologia desse metal. Acreditamos, até prova em contrário, que as necessidades do mercado português nenhuma influência exerceram sobre o desencadear da produção de cementos de cobre em S. Domingos; não temos a certeza, porém, que a existência de uma obtenção local de cobre com processamento de pirites não possa ter provocado alterações ao nível do contexto nacional (alguma procura deveria existir – só a título de exemplo, em meados do século dezanove o cobre que se usava na Casa da Moeda era cobre velho, reciclado, e antes disso, era importado; as faltas de ácido sulfúrico também tinham tradição), não só em termos da metalurgia como também da indústria química de base. É particularmente neste questionamento que se insere, por sua vez, a breve abordagem à mina da Caveira, e ao projecto da grande fábrica de produtos químicos nas vizinhanças do rio Sado.

Aljustrel também foi escolha. Tomamo-lo como uma espécie de «negativo» de S. Domingos. Falhou onde esta última venceu, na luta contra o baixo teor de cobre no minério, a favor da rentabilidade dos processos, e na tentativa de adequação ao modelo possível de exploração/exportação.

S. Domingos, Caveira e Aljustrel, três minas fundamentais para compreendermos a história  recente das explorações mineiras em Portugal. No início dos anos oitenta do século dezanove, somente S. Domingos permanecia em actividade. E este decénio foi fundamental no desenvolvimento da metalurgia do cobre, onde as exigências cada vez maiores de pureza deste metal, pelas suas aplicações na indústria eléctrica e de telecomunicações obrigavam a maiores rigores, especialmente nas operações de refinação.

A última data escolhida para este trabalho (1889) diz respeito à primeira electrificação em Portugal, e em nosso entender, inaugura o processo de estabelecimento das condições para uma verdadeira adopção do cobre como questão fulcral no desenvolvimento económico e social do país.

Não obstante a indiferença com que foi tratado (ou melhor, apesar da ausência de tratamento) por parte de entidades científicas de tradição, o cobre entrou pelas casas e instalou-se no quotidiano. Como um rei. Um século mais tarde ninguém hesitará em o considerar um dos mais importantes alicerces da sociedade industrializada.