Inquietações

ANTÍMIO DAMIÃO


Antímio Damião . Autor / Desenhador Gráfico e Ilustrador / Estudante de Filosofia na NOVA/FCSH.


Há nos confins do mundo um lugar sem morte e no qual reina a eternidade. Por mais que o procurem, ele subsiste no mais pleno e inacessível mistério. Para evitar que a morte o embargue, basta o silêncio do crente ou do crédulo que parta à sua procura.

 

O Sol nasce, brilha e põe-se. A noite chega, cai e vai-se. Os ciclos passam, impassíveis. Ao revogar a encomenda da vida, o homem, igualmente imperturbável, vê a paragem total do mundo e de si mesmo. Pior do que isso, é saber que nada o avisou ou preparou para tal.

 

A crença na vida eterna pode perfeitamente ser um logro, visto ser instigada, por um lado, pelo medo de morrer, e, por outro, pela esperança de que algo subsista para lá do óbito.

 

Ao moribundo cabe apenas uma última empresa: entender porque não fez na vida o que sempre quis fazer.

 

Só o homem tem noção da mudança. A incerteza dos caminhos inquieta o mais firme caminhante. Seria preferível ignorar o destino, mas a possibilidade de todas as coisas terem propósito determina de antemão a razão da procura, pois, quando se crê que nada sucede por acaso, tudo é como devia ser.

 

Certos homens julgam-se já condenados ante a última porta por nunca terem posto em causa a possibilidade de haver algo do outro lado e, mais ainda, a existência da própria porta.

 

Se a vida é uma sequência imparável de episódios absurdos, de nada adianta remediar tal absurdidade, visto que a incapacidade do homem de viver em paz e verdade consigo mesmo e com os outros é hegemónica.

 

O homem não sabe ao certo o que fazer ou como aproveitar o tempo, já que o porvir não lhe pertence e a morte cabe a todos por igual. No entanto, apesar de ser livre, deve visar a virtude em todas as suas acções e escolhas, pois, ao recusar-se a ajuizar e a agir precipitadamente, garante brio a tudo o que diz, decide e faz.

 

Para lá da região do ser há decerto uma região do não-ser, a ausência do que antes havia, um negrume onde antes havia luz, um silêncio onde antes havia som, um lugar contrário a este. Não há pois como negar que estes pares antagónicos fazem parte da vida tal como a achamos. Sendo assim, como negar a possibilidade de a região do não-ser comportar em si mesma, por igual e em paralelo, os mesmos pares antagónicos da região contrária?

 

Exegese de todas as histórias: era uma vez ou talvez a vez de todas as vezes, ou então a vez em que não se sabe bem em qual das vezes acreditar, pois, às vezes, é-se levado mais do que uma vez a acreditar nas vezes de sempre e acaba-se a aceitar, de uma vez por todas, a vez do costume.

 

Eu não temo a treva mas o simples facto de, ao tropeçar nela, ser amparado por um par de mãos desconhecidas.

 

Na relação entre corpo e espírito, este superioriza-se àquele, defende a razão. Porém, o espírito não só pensa como ainda sente. Uma vergonha, insiste a razão, que logo corrige quem ande para aí a sentir. Seja como for, o homem tem sentimentos e a graça pode abeirar-se dos apetites corpóreos. Os olhos tornam-se janelas sem cortinas, que vêem tanto o que querem quanto o que não querem. Se o espírito recolhe e processa os dados sensoriais, como explicar então a censura moralista da atracção e do prazer físicos? Tal arroubo, que atinge alma e corpo, é condenado por alimárias de douta e proba rectitude que reclamam a si a verdade. Felizmente, como reza o adágio, por mais que as vozes asininas se manifestem, nunca chegarão ao céu. Afinal de contas, nunca tantos erros se acomodaram em tantas bocas incapazes de errar.

 

A linguagem é, ao que parece, o limite metafísico da filosofia contemporânea. De tal modo que se torna impossível negar a ubiquidade e a paridade que o “logos” tem na condição humana. E é por tal razão que se procura dar sentido às coisas, agir desta e daquela maneira, ler e ser lido, criar outros mundos no mundo conhecido e conhecível.

 

Aqui somos lançados sem escudo e arma, às feras da vida, nus e cobertos de fluidos amnióticos. Dispomo-nos a sobreviver e a reprimir o tédio a qualquer custo, vivendo segundo a nossa própria realidade. Do mesmo modo, colocamo-nos numa espécie de pedestal do conhecimento, donde julgamos distinguir certeza e erro, quando, na verdade, subsiste apenas a transitoriedade e a pequenez dos nossos juízos e ideias, avivados pela falsa crença numa vida imortal que, ao longo do tempo, se esvai irremediavelmente com a idade.

 

Se um dilúvio afogar de novo o mundo, a vida reiniciar-se-á e o planeta será salvo. Não obstante a inevitabilidade da purga, uns sujeitar-se-lhe-ão, outros, em contrapartida, empanturrar-se-ão de mil prazeres antes de morrer. De qualquer das formas, a Natureza triunfará sobre os homens, como de resto sempre fez com todas as espécies. Tudo terminará, portanto, e a evolução posterior, alheia à civilização precedente, determinará a nova história do mundo.

 

A morte não erradica a vontade de viver do sujeito, mas permite, em alternativa, o seu esquecimento absoluto.

 

O homem cuida pouco de si mesmo e perde-se no jogo do mundo, cujas regras, em si já confusas, de nada servem se aplicadas somente e conforme a vontade humana.

 

O frescor e a beleza da mocidade esmorecem num corpo cosido de rugas. Ter-se-á noção da decrepitude? Aonde foram os verdes anos? Haverá um sentido ou tudo é ao deus-dará? Os dias são curtos; as horas, indecentes. O homem sustém-se nas andas débeis da vontade e está condenado ao reduto da carne, assim como franze o sobrolho e encolhe os ombros na linha de montagem do mundo. Como é doce a resignação! Nada se sabe ou há a saber porque tudo está já na Natureza. O homem, por seu lado, instrui-se com a miséria alheia e com os erros cometidos. Além disso, tem necessidade de fazer algo, de ser alguém, de ser ludibriado por mais inteligente e lógico que seja, de recorrer à ideia de felicidade para aligeirar a angústia da vida. Todavia, a mesmice das coisas cumpre-se nos automatismos da solidão quotidiana. Abundam loucos que esbracejam e falam sozinhos, daí ser fácil perder o tino. Nada põe cobro à loucura que, frenética, se espalha e espelha nos homens. Ainda assim, a loucura é a única capaz de criar mundos à parte e de rir da morte, enquanto a música do trabalho e do sexo vai seduzindo quem prefere a diversão e se encanta com os ardis sempiternos da riqueza.

 

Ditoso o tempo que às gelhas do passado vai passando vinco e ditoso o amor à vida, pois ambos não se podem desprezar, quanto mais não seja pelo que são à alma, a qual, sem eles, é manjar insosso ou óbito intermitente de um coração desfeito!

 

De duas, uma: ou se abraça o ponto de vista evolucionista, factual e científico, negando-se assim a existência de uma realidade metafísica, ou se acredita na solvência deste mistério último.

 

O caminhante parou no cimo do monte e olhou pela última vez para o sossego da aldeia que repousava lá em baixo, ao luar. O coaxar das rãs interrompia a calma reinante; os cães latiam, aqui e acolá, como se num amplíssimo canil; árvores e rochas recortavam-se na noite, definidas pelo medo que a imaginação incute. Para trás ficara a má-sorte de uma vida gasta e demérita. Ele seguia em frente, até à fronteira, embora muito faltasse até lá. Volta e meia, entreviu ao longe os limites do condado, bem como o rumorejar do ribeiro na escuridão. Julgando ver nisso um sinal de esperança, esqueceu o passado e, de sorriso posto, desceu a colina do outro lado.

 

A via axial atravessava a cidade como uma recalcitrante língua de alcatrão. O viaduto, paralelo à marginal e sustido por pilares luminosos que se entrecruzavam de par em par, alongava-se até ao limite da cidade e aí se bifurcava, ao longo da ponte suspensa, unificando-se na outra margem do rio. Na foz ficava a zona industrial. Em lugar do rio, agora seco, havia um mar de despojos onde um e outro mendigo remexiam. O vagabundo avançou até ao fim do molhe e, pela baquelite da amarra, subiu a bordo de um navio abandonado. Trepou o mastro e sentou-se lá em cima, na gávea. À sua frente: um cemitério de sucata em plena cidade. Ao fundo, cortando as nuvens como línguas de fogo, as chaminés altas das fábricas cuspiam labaredas. Além dos operários, para aí se mandavam criminosos, doentes e loucos. Esta medida, bastante popular, mostrava bem o quão a escravatura e a desumanização eram e haviam sido os motores da civilização. O vagabundo acendeu um cigarro e indagou a paisagem, prestando sentinela a uma cidade morta. Atirou o cigarro lá para baixo e, sem querer, espantou um bando de ratazanas que aí conspiravam. “Homens”, sussurrou ele de si para si.

 

Os doutos cá do burgo aconselham que uma narrativa desfragmentada não deve prolongar-se sem que, a dada altura, seja dada explicação para aclarar a confusão do leitor. Só assim, dizem eles, será possível entender os pormenores menos claros do enredo, do mesmo modo que se poderá atribuir significado ao que inicial e supostamente não se entendia. O leitor afeito à razão e à linearidade desistirá deste projecto, visto que, a páginas tantas, alhear-se-á ou desistirá da leitura, preocupado, por sua vez, em desvendar de pronto o quebra-cabeça da narrativa. Cabe pois ao leitor mais persistente ligar as pontas soltas do texto e, com elas, compreender e fazer a hermenêutica do mesmo. A reconstituição dos fragmentos numa conclusão lógica e satisfatória revelará o final da obra e recompensará a perseverança e o engenho do leitor. Nestes termos, o registo não-linear deste tipo de histórias, para além de hábil, não promove a perda de significado ou a incompletude da narrativa.

Ora, tal como a gesta narrada dos homens, a vida tem um desígnio final que dispensa fórmula ou justificação. Logo, é legítimo dizer que a vida de cada um, embora injusta e absurda, tem o desfecho exacto na altura certa.

 

Algo se intui na noite, para lá das janelas iluminadas: passos em sobrado fendido; uma ida urgente à casa de banho; tinidos de colher nervosa numa caneca de chá; lábios mordidos pelo desgosto e pela saudade; gente que se esconde do mundo. O demónio da solidão geme ao ouvido dos homens como a raiva indómita dos ventos que arrastam caixotes de papelão pelas ruas. Do outro lado das janelas, teme-se o encanto assassino da noite, espreita-se pelos vidros baços e neles se desenham veios e dedadas que logo se esfumam no infinito como a vida breve dos seus autores.

 

A cidade de argila reluzia nas dunas como uma serpente em repouso. O Sol, pano de fundo de fausto recorte, pôs-se como se não mais desejasse nascer e ali se amanhasse com frequência, na secura imensa da areia. À chegada da noite, milhares de vultos irromperam do solo e avançaram em direcção à Lua como rebanhos numa procissão lenta e cerimoniosa, de pose humilde e serena, deserto afora. Por mais que os caminhos se alargassem, não havia eu﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽se alrague e m asw casweiroouveouve distância a reprimi-los. Talvez um dia, pensaram os velhos, já exaustos, talvez um dia, no fim do caminho, cedessem a liderança aos jovens que, distraídos, contemplavam a aridez do deserto, julgando ver nele os segredos que os velhos haviam visto, mas que, por qualquer razão, guardavam ainda e religiosamente para si mesmos.

 

O poeta versa sobre as possibilidades da vida e dos sonhos. Com efeito, quer arrancar dos homens a dor que os inuma. Entretanto, apaixonou-se de tal modo por uma mulher que, descobrindo-se traído por ela, tentou suicidar-se. O amor que lhe tinha revelou-se delirante, o último tição de um fogo prestes a apagar-se. Com o passar do tempo, rendeu-se ao ciúme e à desconfiança. E pensar que se haviam visto nos olhos um do outro, que se haviam amado ao ponto de serem a última pessoa a quem pensariam legar tamanho sofrimento! No entanto, o amor acaba com o silêncio dos amantes. A desilusão bate à porta da alma que sofre a vergonha da difamação. Porém, passado um tempo, a vida volta a ser bela e única. O poeta, reabilitado, põe-se à janela, de braços cruzados e mão no queixo, acometido da maior felicidade porque o amor não é real, e, na verdade, nunca foi. Pensa na amada sem lhe desejar um mal que seja. Arrebatado por essa forte liberdade, reconcilia-se com a vida e, na mesa de cabeceira, a foto da amada é soprada pelo vento que entra pela janela e vai cair nos poemas manuscritos que jazem no tapete junto da cama. O poeta alcança-a e, ao reler um dos versos, sente necessidade de celebrá-los, pois são espelho da recordação desse amor acabado, que, afinal, era mecha que avivava o fogo e não o fogo em si.

 

A Bíblia narra a saga dos cavaleiros apocalípticos: ao longe ouvir-se-ão as suas trombetas, os cascos das montadas, o veredicto último da humanidade; a sua missão dispensará freio ou descanso e galoparão como se cavaleiro e cavalo fossem um só; percorrerão o mundo como anjos da morte, dotados da sagacidade da áspide e da excelência da águia, da independência do lobo e da elegância do tigre, da brutalidade do urso e do atrevimento do macaco; rios e mares escoar-se-ão através de fendas para as profundezas da Terra; uma avalanche de lava escorrerá pelas encostas dos vulcões até ao mar; os homens fugirão debalde, cientes da morte anunciada; e enquanto as almas se prepararão para entrar no reino de todas as possibilidades, a paz virá aos homens de boa vontade, tal como o conhecimento e a verdade da Palavra, cuja revelação, o ﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽ão uma vez estabelecida, lhes caberá por direito e equidade.

 

O faroleiro, há muito fustigado pela tempestade, recita as mais belas poesias para si mesmo antes que a chuva e o frio o matem. Longe do farol no longor da saudade, erra em ampla bruma e imagina um resplendor distante no mar tenebroso. Prestes a ir-se, vai pela última vez à costa, graças ao sorriso familiar de uma mulher que não via havia muito, e cuja presença revê junto ao molhe como a luz intensa do farol. Em verdade, julgara-a no poço fundo da memória, soterrada nas raízes do tempo. Ela, por seu turno, espera-o como um fantasma que ali largasse ferro e que nunca tivesse partido, de coração atracado ao desejo de voltar a navegar no mar encapelado do querer. Porém, as coisas, ao terem sido, não mais voltam a ser, pois só em retrospectiva são válidas e validadas pela crescente insanidade do faroleiro.

 

A realidade é sempre pessoal e nunca é feita através de outros olhos. A alma, a partir do momento em que nasce, caminha para o infinito como o silêncio refém das casas abandonadas. E a memória é como um fio de luz que, resiliente, se passeia ao entardecer na mobília velha de uma sala. Assim, o homem, por mais que se julgue parte da vida, vive abstraído desta, já que olha apenas de relance para o mundo que ele pensa conhecer.

 

Tudo nos ilude e continuará a iludir. De que servem as promessas se a vida é uma breve necessidade? O mundo tende à mudança e não há tempo que a trave. Em contrapartida, recosto-me no assento e, de mãos sob a nuca, resfolego como se fosse a última vez. Calo-me a ouvir o silêncio, isento de mal e dores, gritos e choros. O corpo, antes peso e arrasto, parece levitar de braços abertos, pernas abaixo, entregue à vontade de ascender como se uma corda caísse dos céus e mo puxasse acima, pela cintura. À medida que subo, em vez do corredor de luz ou do esperado nimbo iridescente de anjos, nada surge senão a ideia. O corpo espreguiça-se e deixa-se ir. Já falta pouco. Sou quase um anjo.

 

O que crê num propósito está já, quer queira quer não, embarcado na vida. A chave da evolução reside na aceitação do tempo. Atingido o zénite do crescimento, vem por conseguinte a degradação e, por fim, a morte. Depois, quem sabe, o processo contrário será, quando muito, um sonho em acto, lúcido, eterno, mutável, imerso nas suas próprias leis como uma fábrica de possibilidades em constante produção de conteúdos. O vazio, no âmbito do viável, será o recipiente dessas possibilidades; a tela em branco e pronta a ser pintada pelas cores da alma. Mau grado a morte, a razão é pertença do homem e a filosofia perfaz a totalidade da vida, pois, graças a ela, entendemos ou procuramos entender a verdade das coisas e do que somos. Pelo contrário, a religião organizada tenta controlar o saber, excluindo o ponto decisivo da experiência religiosa: a relação subjectiva com Deus. Já a melhor escolha do homem é sempre ética, pois o ser humano é e está no seu melhor quando dá o melhor de si aos outros. E embora o Belo, o Bem e a Verdade pareçam ausentes de um mundo feio e desumano, não será a sua suposta ausência o factor crucial que permite legitimar a sua real importância?

 

A vida leva-o aonde só ele vai. Nenhum outro pode vivê-la por ele, já que a memória está lá caída, aonde só ele esteve e está. De noite, chega a casa para uma lareira a meio-gás e para o gato que, sempre que reentra em casa, se espreguiça no sofá da sala como se a vida nada tivesse de extraordinário ­— e, se calhar, o bichano tem razão. O choro da vela verte-se coto abaixo e amontoa-se no latão do lustre. O passado é recuperado por necessidade nostálgica e nunca usado como escape do presente. O mundo é o espaço e o tempo de um homem só, bem como a visão tardia do que se entende demasiado cedo. As crianças escondem-se no mundo de ontem enquanto brincam com a idade adulta. A criança recorda o que foi e esforça-se para o ser ainda. A pureza ressurge como uma foto que de repente ganhasse vida e, como o choro da vela, se deteriorasse à passagem do tempo. A criança sonha-se de asas no dorso, querubim perdido nas estrelas, de sorriso sábio e gestos traquinas; ela é fábula lida pela voz da mãe que, à medida que o sono tarda, a embala nos braços, cantando baixinho. A seguir, Orfeu toma-a de rompante e leva-a a ver os anéis de Saturno. Esvoaçam cabelos de anjo no espaço profundo e um “Oh!” de espanto solta-se para todo o sempre. Um dia o menino será homem e os sonhos mudarão. Virão a submissão ao parecer dos outros, os haveres e dores de cabeça, a rotina dos dias e as amizades convenientes. Por fim, a vida mirífica de antes será, nessora, e em retrospectiva, a memória toda de tudo o que foi.

 

Enquanto os flashes intermitiam e disparavam de uma ponta a outra do pavilhão, o vencedor, de braços erguidos e rosto inchado, caiu de joelhos após a luta, a meio do ringue, aclamado pela multidão efusiva que lotava o recinto. Do lanho no seu sobrolho esquerdo escorria um sangue escuro e espesso que lhe obstruía a visão. Depois do sangue e do suor derramados, e da eficácia do último golpe no abdómen do oponente, o combate terminou de forma justa e com a unanimidade do júri na escolha da vitória técnica. O derrotado, por seu turno, sentou-se no chão, exausto, de braços apoiados nos joelhos e rosto macerado, entregue aos cuidados paliativos da equipa médica. O vencedor congratulou-se a si mesmo por não ter dado ouvidos à esposa, quando esta, há dias atrás, o aconselhara a usar a cabeça em vez dos músculos. Nenhum mal viria ao mundo se usasse as duas coisas, explicou ele à mulher. Esta, por sua vez, aconselhou calma e prudência, não fosse ele desprezá-la por causa de tão grande ambição. “O mundo está cheio de heróis”, murmurou ela para si mesma, pela última vez, diante do televisor, antes do enfarte do miocárdio que a vitimou no preciso instante em que o toque frenético da sineta ditou o fim do combate do marido.

 

Fábricas e arranha-céus, quartéis militares e hangares, barragens e petrolíferas, observatórios e portos estivais, centros comerciais e escolas, prédios e vivendas, automóveis e ruas, entre demais estruturas onde o homem se amanha: eis o mundo reduzido à sua insignificância agorafóbica e rendido à disciplina técnica dos sistemas de poder criados pelo homem. Somos vistos e fiscalizados, nunca sós ou livres mas sempre ocupados, sofrendo e errando, dia após dia, alimentando aqueles cuja prosperidade nos é mungida como rebanhos num estábulo. Ainda assim, a luz atravessa de quando em vez as paredes da prisão panóptica, inundando-a de um branco fosfórico. Neste caudal panóptico, a vaidade precede o esquecimento. O espírito, sem os grilhões do corpo, quer deixar a terra e entoar na eternidade o triunfo da luz. Todavia, a luz pode ferir e oprimir a visão. Falso alarme. O alívio é, afinal, um engano. No entanto, por incrível que pareça, sorrimos. A que se deve esta imbecilidade? À óptica das câmaras que tudo vêem e que estão por todo o lado ou à asneira de dar a ver de bom grado o que somos àquilo que nos controla e aprisiona?

 

Um homem está deitado na cama e mergulhado na penumbra do quarto. A meio da noite, acorda sobressaltado por causa de um imenso pavor. Apesar disso, tem de estar ali. A ideia de tudo resultar do caos é-lhe horrível, dolorosa, insuportável. Como tal, obriga-se a crer na ordem e no sentido da vida. Com efeito, ficaria grato se alguém lhe provasse um propósito ou um princípio fundamental do que quer que seja. Nada sabendo, inquieta-se, desespera, cega como se não visse luz ao fundo do túnel. Se soubesse o porquê desse medo, ficaria em paz. Deitado em posição fetal, procura sentir a plenitude uterina antes da vida, mas toda ela se foi no nascimento. É lamentável, pensa ele, e trágico. A vida, pelos vistos, não o leva a lugar algum. E se não houver lei ou ordem por detrás disto tudo? O infinito apavora-o, tritura-o, esmaga-o. E não se passa um segundo sem que ele o intua. Então, de noite, quando o silêncio se avulta, sente a infinitude dos espaços que o oprimem. Como lidar com o vazio que a natureza teima em preencher? Decerto morrerá a tentar compreender o que não conhece. Seja como for, por mais que tente, não sabe o que fazer. E o silêncio permanece. Nisso, acometido de um momento de clarividência, imagina uma melodia que se escuta continuamente no mundo como razão e princípio de todas as coisas. Em verdade não se ouve nada, mas, lá no fundo de si mesmo, ele sabe e sente que a música existe, que é extramente bela e sublime. E para que a música soe, tem de haver quem a componha e a toque, assim como tem de haver silêncio. E isso, em pensamento sentido, acalenta-o.


ANTÍMIO DAMIÃO