Impro Sharana

MARIA ESTELA GUEDES
Escritora. Diretora do Triplov


Ontem, 5 de maio, atravessando já depois das 21h uma tumultuosa baixa portuense, de um lado pintada com a cor das batinas dos estudantes, pois parece ter sido a Queima das Fitas, de outro mais do que o normal povoada por quem só ao chegar a casa percebi serem adeptos do Futebol Clube do Porto, que acabava de alcançar, pela 28ª vez, o título de campeão nacional, vinha eu de imaginação fervilhante depois de um espetáculo maravilhoso no Teatro Nacional São João.

Impro Sharana é o o título do espetáculo realizado por Ferran Savall, espanhol oriundo da Catalunha, cantor, guitarrista, compositor, dedicado à música de improviso; Jordi Gaspar, contrabaixo; David Mayoral, percussão; Nedyalko Nedyalkov, flauta; e Driss El Maloumi, oud.

Uma mulher muito graciosa, a receber em sua casa e a servir chá às visitas (é o cenário, o enquadramento teatral), lidera a companhia: Shantala Shivalingappa, a quem pertencem a dança e a coreografia, interpretação da música criada por Ferran Savall.

O espetáculo dificilmente se assemelha a nada que eu tenha visto antes, por muito que a música indiana e a sua fusão com o jazz me sejam familiares desde os remotos anos em que Rão Kyao tocou saxe com os Jazz Yatra no restaurante Velha Goa, em Lisboa. Porém em Impro Sharana a música indiana e o jazz são apenas fundos de uma hibridação que é muitíssimo mais ampla, quer na música quer na dança, basta pensar que Ferran Savall é catalão: de facto, a gestualidade e o ritmo do flamenco também transparecem atrás dos movimentos desta bailarina que, partindo de danças tradicionais da Índia, avança, não só sobre o flamenco, como através de toda uma modernidade definida por aqueles com quem estudou na Europa, entre eles, leio no programa, Sidi Larbi Cherkaoui, Peter Brook, Maurice Béjart e Pina Baush.

Shantala Shivalingappa performa um bailado de coreografias variadas, mas quase sempre narrativo, isto, claro, na perspetiva do espectador: os gestos sugerem atividades ligadas à terra, à sementeira, a voos de pássaros, a serpentes encantadas que ondulam, a flamingos que bebem na água o alimento e abrem as asas para mostrar a plumagem flamejante que lhes dá o nome a eles e também ao flamenco – ela é uma flama que ilumina o palco. Todo o espetáculo, com poucas palavras mas algumas, uma vez que, teatralmente, se desenrola numa sala de estar em que amigos convivem, convida à interpretação, a responder a perguntas. E este não será um fator a desprezar, pois acrescenta à hibridação de tantas artes, tão belamente conjugadas, elementos de problematização do real próprios da filosofia.

Um espetáculo protegido por Shiva, deus hindu da dança e do movimento, leio. Sim, mas anoto que às coreografias faltaram os saltos (se algum ocorreu, não o fixei na memória), e faltaram os saltos noutro sentido, o de que a bailarina dança descalça, mas por vezes bate com os pés no chão, algo como um sapateado que se integra na parte musical; anoto ainda que algumas coreografias, privilegiando a dança dos dedos (sobretudo das mãos), foram executadas sempre no mesmo lugar, sem andamento, e que pelo menos uma foi interpretada com apenas a parte superior do corpo, com a bailarina sentada no chão. Esta ligação à terra faz pensar noutros deuses. Como não sei ou não me ocorre agora a divindade hindu apropriada, direi que Gaia preside. Gaia, a Terra, Earth.

Não sei que mais dizer além de que adorei.