CRISTIANISMO E IDENTIDADE PESSOAL
Manuel Sumares

IN: IDENTIDADE PESSOAL:
Caminhos e Perspectivas
Francisco Teixeira (coordenação)
Coimbra, Editora Quarteto, 2004

Contar histórias

A Implicação de uma Personalidade Transcendente e o Princípio Dia-lógico

A Constituição Narrativa da Identidade Pessoal e a Promessa como Acto da Linguagem

Uma Antropologia Bíblica e a Questão do Desejo

Últimas Considerações

A Implicação de uma Personalidade Transcendente
e o Princípio Dia-lógico

Dado o contexto imediato deste Seminário e o lugar que a temática do cristianismo e identidade pessoal nele possui, pode ser útil notar a observação feita por Charles Taylor ao demarcar a diferença entre o budismo e o cristianismo. Significativamente, esta observação foi proferida na presença do Dalai Lama e registada numa obra editada e narrada por Francisco Varela, Sleeping,Dreaming,and Dying: An Exploration of Consciousness with the Dalai Lama (1).

Taylor começa por expor o que o budismo e o cristianismo partilham em comum em relação à questão do si. Ele propõe que,

  • ambas as religiões apresentam o dilema implícito nos sujeitos humanos quando compreendem as suas identidades como sendo fixadas;
  • ambas as religiões exprimem a necessidade de se libertar de tal imagem do si;
  • e ambas ensinam que o processo da libertação deste sentido do si acompanha uma nova compreensão de quem realmente somos. Por outras palavras, há uma transformação que implica um auto-transcender libertador.

Mas é precisamente na natureza da transformação que as duas religiões se mostram bem diferentes. Enquanto, no budismo, a finalidade de uma longa disciplina espiritual à procura da realidade e irrealidade da identidade pessoal é o transcender do si, no cristianismo a transformação do si é realizada por um relacionamento com um Deus pessoal. Acerca disso, Taylor sublinha a implicação de um princípio dia-lógico, isto é, a concepção do ser humano como sendo transformável na medida em que se expõe à palavra e acção divina.

Ao insistir no aspecto relacional do sentido cristão do si, Taylor situa-nos num caminho seguro. Aliás, é justamente a relação que transforma e liberta o si do domínio estrito de uma definição fixa e auto-centrada, algo sempre – como os textos bíblicos advertem continuamente – vulnerável à ilusão de auto-suficiência e idolatria. O que fica, todavia, para explicitar, é o que está propriamente contido na ideia do princípio dia-lógico, isto é, a linguagem e a troca de palavras, bem como a transformação – digamos – ôntica da subjectividade. No contexto específico da fé bíblica, a Escritura constitui o locus da comunicação, precisamente porque é aí que o carácter de Deus se revela. Sendo assim, o que temos perante de nós é mais do que a questão da identidade pessoal do sujeito humano, mas também a que concerne à identidade pessoal de Deus próprio. A isto podemos acrescentar que a relação dialógica, sugerida por Taylor, é iniciada por Deus e que os termos do comprometimento mútuo tomam a forma de uma aliança, que, aliás, no Antigo Testamento, se articula segundo a forma dos tratados internacionais praticados no Próximo Oriente antigo. A pertinência desta informação histórica consiste no facto que envolve um comprometimento entre dois partidos identificáveis, cujas histórias e vontades convergirão daqui para frente. Portanto, uma das características da identidade pessoal na metanarrativa cristã é a das suas direcções convergentes, implicando as personalidades humanas e divinas.

(1) Sleeping, Dreaming, and Dying: An Exploration of Consciousness with the Dalai Lama (Sommeville, Mass.: Wisdom, 1997), pp. 131-132.