CRISTIANISMO E IDENTIDADE PESSOAL
Manuel Sumares

IN: IDENTIDADE PESSOAL:
Caminhos e Perspectivas
Francisco Teixeira (coordenação)
Coimbra, Editora Quarteto, 2004

Contar histórias

A Implicação de uma Personalidade Transcendente e o Princípio Dia-lógico

A Constituição Narrativa da Identidade Pessoal e a Promessa como Acto da Linguagem

Uma Antropologia Bíblica e a Questão do Desejo

Últimas Considerações

Contar histórias

Um dos temas no qual vou insistir ao longo desta reflexão é até que ponto o Cristianismo tem a ver com contar histórias. Curiosamente, este particular faceta encontra-se, até, nas origens do movimento que surgiu à volta de Jesus de Nazaré. Parece que havia, de facto, muito a dizer acerca de Jesus. Para além do exemplo dos relatos que proliferam e eventualmente compilados nos livros não-canónicos, o autor do Quarto Evangelho testemunha precisamente esta situação no último versículo do seu livro, confessando: “Há ainda muitas coisas que Jesus fez. Se fossem escritas, uma por uma, parece-me que nem no mundo inteiro cabiam os livros que era preciso escrever (João 21:25)”. Para além disso também temos a própria história da igreja cristã, marcada como é pela polémica contínua acerca do modo mais satisfatório de interpretar e compreender as palavras e feitos do fundador da religião cristã, pois as versões que temos recebido do passado, e que continuam a manifestar-se na época presente, apontam para uma pluralidade de expressão quanto ao fenómeno cristão. Por isso, antes de avançar, seria conveniente, na medida em que vai ser determinante no modo como a questão vai ser abordada, confessar qual o género de discurso cristão que aqui vai ser proposto em relação com a identidade pessoal.

No caso desta comunicação, proponho um cristianismo ortodoxo e trinitário, assim como foi afirmado nos credos antigos e é partilhado, pelo menos em princípio, por uma larga gama de cristãos, desde evangélicos calvinistas até ortodoxos da Igreja Oriental. Mas seria especialmente consonante com o tema deste Seminário dizer que eu me identifico pessoalmente com esta versão, ou – para ser um pouco mais complicado – com o discurso teológico de segunda-ordem que apoia esta versão. Quero dizer que a minha identidade pessoal em relação com este género de cristianismo implica que me comprometo com o tipo de narrativa que justifica racionalmente a minha adesão a ele. Desde logo, uma primeira lição moral a tirar desta minha confissão é que a identidade pessoal associada ao cristianismo implica uma configuração narrativa e certos conceitos que a estruturam. Ademais, será uma configuração marcada por uma “poética” específica, isto é, uma obra de graça, que se produz no si humano. Porém, embrenhados na problemática desta configuração particular estão pelo menos dois outros factores: uma personalidade transcendente que “pesa” activamente sobre os actos linguísticos humanos que, por sua vez, são trabalhados imanentemente pelo desejo de ser e pelo esforço por permanecer em existência.

Mantendo o tom coloquial no qual foi originariamente concebido, o que vem a seguir não pretende ser necessariamente persuasivo, e muito menos apologético. A sua pretensão é apenas esta: dentro deste espaço limitado indicar claramente alguns componentes conceituais básicos que se devem encontrar na tentativa de compreender o que seria a identidade pessoal à luz da revelação cristã; portanto, sem preocupação com qualquer originalidade, basta (por agora) que certos aspectos da problemática sejam reconhecidos como incontornáveis – pelo menos na óptica da ortodoxia que confesso.