JOÃO SARMENTO PIMENTEL
Foto do Arquivo Científico Tropical:
http://actd.iict.pt/view/actd:AHUD21774
João Maria Ferreira Sarmento Pimentel (Eixes, Mirandela, 14 de Dezembro de 1888 — São Paulo, 13 de Outubro de 1987) foi um oficial de Cavalaria do Exército Português, escritor e político que se distinguiu na luta contra a Monarquia e governos ditatoriais. Como aluno da Escola do Exército participou nos movimentos da Rotunda, ao lado de Machado Santos, nos dias 3 a 5 de Outubro de 1910, de que resultou a implantação da República Portuguesa. Participou nas campanhas do Sul de Angola, esteve na Flandres, liderou revoltas várias, a última das quais em 1927. Exilou-se no Brasil, onde morreu, tendo entretanto vindo à Galiza para colaborar numa revolta falhada em 1931 e depois, no 25 de Abril, a Portugal, para festejar.
PROJETO «JOÃO SARMENTO PIMENTEL»
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A República fez-se com raposa e morse
Por Maria Estela Guedes
Muitos acreditam que as revoluções se levam a termo com dinheiro, não com palavras ou armas, e essa opinião é expressa por Sarmento Pimentel, em distante comentário à revolta de Beja. Distante porque na passagem de 1961 para 1962 estava ele no Brasil e já bem afastado das revoltas. Comentário aliás impregnado de desdém, pois Sarmento Pimentel entendia que Humberto Delgado, líder da revolta de Beja, devia ter-se deixado prender; a prisão surtiria mais efeito do que outras estratégias, ponto de vista próprio de um homem que sempre valorizou a palavra, neste caso como veículo de propaganda política: tivesse ele sido preso e os jornais de todo o mundo dariam notícia do regime ditatorial instalado em Portugal.
 
Sarmento Pimentel despojou-se de bens pessoais, várias vezes, em prol da revolução. Quando, no golpe falhado de 1931, contra Salazar, estava ele em Vigo com outros exilados - Sarmento Pimentel tinha vindo de propósito do Brasil para esta revolta -, todos sem recursos, foi do seu bolso que saiu "uma libra ouro" para financiar um mensageiro que fosse a Lisboa buscar as informações de que careciam e aliás veriam estampadas nos jornais no dia seguinte: a revolta dispensara-os, alimentada só com os cérebros lisboetas, e fracassara. Em suma, saiu do seu bolso um financiamento de quê? - de palavras. Por uma vez ou várias financiou a Seara Nova, em riscos de fechar as portas por falta de capital. Ele mesmo conta, de resto, em Sarmento Pimentel, uma geração traída - Diálogos de Norberto Lopes com o autor das «Memórias do Capitão» (p.35-36), que a herança recebida dos pais a investira ele na política: «depois veio a política e levou o resto», palavras do autor, para ressalva do impróprio termo "financiar". Já agora, resto de quê? Resto de um bom património rural de antigos fidalgos, que incluía a Casa da Torre, em Rande (Felgueiras), perto de Amarante. Ele conta a história da progressiva ruína na mesma obra de Norberto Lopes: os bens da família mantiveram-se seguros enquanto vigorou a lei dos morgadios. Extinta ela, por Carta de Lei de 19 de Maio de 1863, o património desagregou-se. Já no tempo dos pais os bens tinham sido divididos em partes iguais pelos herdeiros, a que acrescia o tributo devido ao Estado. Chegada a sua vez de herdar, de novo as partilhas pelos irmãos e mais tributo devido ao Estado reduziram o pouco que ainda havia. E então desabafa: “Com a abolição dos morgadios, as fortunas eram divididas por todos os filhos. Pulverizavam-se. A de meu pai foi dividida por cinco irmãos. Quando ele morreu, veio a justiça e levou uma parte. Depois veio a política e levou o resto. Mas isso é comigo.”  Nada mais há a comentar depois desta assunção de responsabilidade própria.

Mas o dinheiro muda mentalidades? Um punhado de moedas vence uma rajada de tiros numa batalha? Claro que é preciso comprar as balas, mas a vontade de carregar no gatilho, isso compra-se? Vende-se? Não estamos a falar de mercenários, sim de gente com ideais, estamos a falar de democratas. E a tese é que a passagem da mentalidade da Monarquia para a mentalidade da República se fez, ou está fazendo ainda, com instrução, cultura, propaganda política, o que implica escolas, jornais, livros e bibliotecas.

Vejamos outro caso, o dos exilados no Brasil, que foram beneficiando de centros culturais, "casas de Portugal" onde podiam ler os jornais portugueses, jornais próprios, publicados em São Paulo, ouvir conferências, pronunciadas por intelectuais do nível de Jaime Cortesão: quem financiava as publicações, as associações, etc.? Sarmento Pimentel nunca deixou de abrir os cordões à bolsa, mas uma das pessoas que mais o deve ter feito, contra a ditadura em Portugal e a favor dos emigrados, sempre na esperança de que pudessem todos regressar à Pátria, foi Lúcio Tomé Feteira, em cujas fábricas de vidro plano, em São Paulo, trabalhou Sarmento Pimentel durante anos. O ex-capitão fala sempre dele com respeito e admiração e por várias vezes deixa transparecer a sua generosidade, sem dar pormenores que nos permitam seguir o rasto do dinheiro. Decerto não terá sido usado para comprar armas. Feiteira devia ajudar recém-chegados com dinheiro e depois, se possível, empregava-os nas suas fábricas. Lúcio Tomé Feteira, senhor de muitos milhões, ainda hoje objeto de cobiça, e que mantêm na prisão um deputado português, suspeito de ter desviado alguns, se não também de homicídio da secretária - Duarte Lima. Muito dinheiro foi gasto nas revoluções, sem dúvida, o que é portentoso, atendendo a que só uma cúpula restrita de cidadãos portugueses não passava fome e estava alfabetizada (a percentagem de analfabetos era superior a 75% e nas aldeias chegava a atingir os 95%).

As revoluções não se fazem sem o concurso de muitos e muita coisa, entre ela o dinheiro. Porém, no caso do projeto sobre Sarmento Pimentel, o que domina é a palavra, quanto mais não seja porque este militar também foi escritor. E mais: a palavra é o grande projeto republicano, enquanto imagem da necessidade premente de pôr o país no caminho da civilização, alfabetizando-o e cultivando-o. Por isso, são as palavras de Sarmento Pimentel que vamos seguindo, numa revisitação estudiosa a alguns dos episódios da História de Portugal em que revolucionariamente participou.

Aluno ainda da Escola do Exército, com apenas 22 anos de idade, foi com entusiasmo que João Maria Sarmento Pimentel se apresentou junto de Machado Santos, no palco da luta, a Rotunda, para dar apoio, com alguns colegas, à desejada revolução. Desejada porque já nos seus primeiros escritos, em artigo num jornal de Amarante que muito escandalizou parte da família, João Sarmento Pimentel manifestara a sua posição esclarecida, republicana, através de crítica ao clero e sua corte de beatas e beatos. E até ao fim permanecerá um paladino da República, sempre disposto a pegar na espada e a atravessar oceanos para a defender, por muito acerba que se manifeste a sua crítica aos republicanos. Ou porque não se entendiam uns com os outros, ou porque alguns cediam à corrupção, ou porque não teriam capacidade para atuar, os homens foram dececionando os homens ao longo do tempo, até aos nossos dias.

Machado Santos, no seu relatório sobre os acontecimentos dos dias 3, 4 e 5 de Outubro de 1910, não se esquece de por duas vezes ou mais mencionar o jovem Sarmento Pimentel, e de lhe agradecer o apoio e ajuda. Realmente, encarregara-o de missão importante também para nós, que o seguimos pela palavra, e em aparência o cadete da Escola do Exército cumpriu essa missão e regressou dela são e salvo: que descesse a Avenida da Liberdade, desde a Rotunda até à Baixa, a colher informações do que se passava na zona ribeirinha. Apesar de a revolução se ter efetuado mais com palavras do que com armas (tese deste projeto, insisto), só por milagre ela não fracassou, dada a falta de algo primordial: a informação, precisamente. Até bem ao final, Machado Santos não saberá, por exempo, se a Marinha, que era a sua Arma, com os dois cruzadores fundeados no Tejo, frente à cidade, estava ou não com os revolucionários.

Sarmento Pimentel foi decerto informador eficaz, indo e voltando cosido com as paredes, a resguardar-se de balas perdidas ou de alguma navalhada ignorante. Dia memorável para ele, que ninguém nunca esqueceu, considerando-o um dos heróis da implantação da República. Foi um herói, sim, um idealista, um homem de ação, determinado, nervoso, e acima de tudo um homem honesto, de palavra, que hoje funciona como exemplo.

Outros colegas com ele se bateram, aliás o grupo de cadetes republicanos bateu-se com os colegas monárquicos, alinhados estes na «ala dos namorados». Quantos seriam eles, ao todo? Ainda não consultámos as pautas de 1910 da Escola do Exército, mas adiantemos desde já que não podiam ser mais do que aqueles que chumbaram a Química, e por isso, de castigo, não puderam ir de férias...

Contemos outra história, a contribuir como tijolo modesto para o grandioso monumento da História: alguns estudantes, gulosos dos perus e galinhas que o professor de Química amorosamente guardava em capoeira no recinto da Escola do Exército (atual Academia Militar), não se contiveram nos apetites e certa noite assaltaram o cofre das proteínas aladas... Assaram o peru, deleitaram-se com ele e decerto com um coelho ou dois, pois foi o pêlo dos mamíferos que depois os denunciou, já gritado um dos derradeiros «Aqui d'El Rei!», por esse professor que não fechou os olhos à patifaria, correndo a chumbo todos os implicados. Chumbo escrito com palavra escarlate para vergonha: «REPROVADO». Mal sabia o professor que a raposa a Química pelo banquete de peru surripiado daria lugar a este artigo, enfim, vamos subir mais alto, daria lugar a caso na História de Portugal: é que em Outubro as escolas fechavam para férias. Na do Exército, só lá estavam os alunos reprovados a Química, por isso só os alunos de raposa às costas participaram na movimentação da Rotunda. Eram muitos? Não sabemos, mas esses, 15 ou 20, ainda teremos de os dividir em dois grupos, o dos republicanos e o dos monárquicos, se quisermos apurar em número de armas, ou braços, o valor do contributo da Escola do Exército para a implantação da República.

Parece uma fábula, com exemplo moral no fim: uma palavra, sinónima de «raposa», pôs Sarmento Pimentel num trilho de ação armada de que só sairia em 1927, com a revolta dos bibliotecários, para passar ao exílio; a partir daqui, a parte armada da revolução passou a ser constituída só pela palavra. Exatamente como cantavam os poetas nos arredores do 25 de Abril: "A cantiga é uma arma".

Indaguemos porém, antes de seguirmos para outros caminhos: é certo que a Escola do Exército apoiou Machado Santos, como eles e outros referem e nós acabamos de confirmar com alguns pormenores menos conhecidos. A revolução do 5 de Outubro foi uma revolução armada, apesar de ter havido mais ruído de explosões (500 bombas terão sido confecionadas para o efeito, mas menos de metade foi detonada) do que baixas por ferimento com arma de fogo. Só queria deixar uma pergunta: os estudantes da Escola do Exército andariam armados? Com que armas combateram pela República? Machado Santos ter-lhes-á distribuído armas de fogo? Na hora de recolherem a casa, os civis que tinham armas, entregaram-nas, ali mesmo, ainda na Rotunda. Parece que, mais apropriado do que armar civis, seria então armar soldados. Por isso é caso para insistir na pergunta: Machado Santos terá fornecido armas de fogo aos cadetes da Escola do Exército? Se errar, logo se fará a correção, mas vou já declarando que não: os cadetes andaram a bater-se na rua desarmados. O mais que podem ter usado foi as mãos nuas (1).

Esta é a revolução que republicanos diretamente implicados garantem não ter sido feita com bombas, nem pistolas, nem dinheiro, sim com os sinais curto e longo convertíveis em palavras, da novíssima linguagem que a tecnologia da comunicação tornou democraticamente acessível à grande parte dos cidadãos: os sinais morse. Com efeito, citemos «O Cinco de Outubro» de Jacinto Baptista, p. 106:

A República era uma aspiração nacional ou, melhor, uma aspiração da maioria consciente, à escala nacional: «E tanto os políticos sentiram que essa aspiração era assim, que a Republica fez-se em todo o Paiz não com os tiros dos canhões da Rotunda mas com o ponto-traço das estações telegraphicas. Quem implantou a Republica em Portugal não foi o sr. Machado Santos. Foi o systhema Morse...».

Voltando atrás, à falta de comunicação entre partes, com um líder, Machado Santos, até quase ao fim ignorante do que se estava a passar fora do perímetro da Rotunda, portanto desarmado de informações, o que pode ser fatal em missão militar, o telégrafo, a ele, não serviu. Mais terão servido as palavras trazidas da Baixa pelo jovem Sarmento Pimentel. Serviu porém o telégrafo para dar o tom à província, como declarara Cândido dos Reis, avesso ao uso de armas fora da capital: se em Lisboa a revolução vencesse, o resto do país seguiria os seus ditames. E assim foi: com ditames e declarações de apoio telegrafados, Portugal entrou numa viagem sem retorno aos princípios da democracia. Duraria pouco o festejo, mas não por causa da República, sim por causa dos republicanos.

Maria Estela Guedes . Odivelas, 28.02.2015
(1) Segundo Armando Pinto, João Sarmento Pimentel alistou-se em armas na revolta da Rotunda: "Com efeito João Sarmento Pimentel, como Cadete da Escola do Exército, tomou parte activa incorporando-se com armas na decisiva batalha da Rotunda, em Lisboa, dando o corpo ao manifesto da revolta do 5 de Outubro que implantou a Republica em Portugal. O Dr. António Sampaio Castro, personagem muito respeitado, contribuiu no movimento a modos que anonimamente, actuando na clandestinidade durante o último período da Monarquia. Sendo assim o Dr. António Castro grande activista político e amigo de João Sarmento Pimentel, ficou no conhecimento popular que o Cadete Militar, João da Torre, levara para Lisboa artesanais bombas feitas na Longra, na Casa do Dr. Castro, na Leira, de Rande (onde residia, embora oriundo de família da Casa de Moinhos, do Unhão), pelo que se tornou lendário que algumas das primitivas cargas usadas na implantação da República foram originárias de Longra-Felgueiras ...."
In: http://arepublicano.blogspot.pt/2010/09/felgueiras-proposito-do-centenario-da.html