Ao contrário dos que negam poder performativo à
palavra, semiólogos incluídos (José Augusto Mourão asseverava que a
palavra “morte” não mata), nós defendemos que o mundo da palavra é
de todos o mais poderoso, e que palavras como “mata”
podem matar, seja por sentença à pena capital, seja por infundirem terror.
A palavra constitui-se como ação, daí vermos Fernando Pessoa anunciar um
supra-Camões para os tempos republicanos, acompanhado por uma
supra-literatura, e remeter implicitamente os autores monárquicos para a
fila da “sub-gente”, como Jacinto Baptista vai anotando, discreto e cheio
de diplomacia, na sua história do
Cinco de Outubro (1). E com isto dava-se à República dimensão
messiânica, apesar de os seus principais símbolos serem bem terrenos, e
mesmo carvoeiros na origem carbonária: o hino e a bandeira, essa bandeira
que a João Sarmento Pimentel (Eixes, 1888 — São Paulo, 1987) devia parecer a
Pátria, quando a perde para a polícia de Salazar, antes de partir para o
exílio, na sequência do fracasso que foi a revolta de 1927, como conta nas
Memórias do Capitão:
“Por ocasião da revolta de fevereiro de 1927, a polícia invadiu a minha
residência e levou-a [a bandeira da República] juntamente com outras
recordações da guerra de 1914, bem como apontamentos que eu possuía para
estas memórias” (2).
O que revela o caso deste
oficial de Cavalaria, João Maria Ferreira Sarmento Pimentel, que
participou em quase todas as revoltas e guerras do seu tempo, é que não
foram as bombas fabricadas por pacatos cidadãos, nem a fuzilaria dos
soldados, e ainda menos os ritualísticos punhais e navalhas dos
Carbonários, o que mais terçou armas pela democracia. O que mais se bateu
foi a palavra – dita, manuscrita, impressa em ofício, em jornal, em letra
de canção, em revista, ou em pessoalíssima carta. E quem mais vemos andar
envolvido em disputas, mesmo em escaramuças de rua, que as houve, muitas,
não são os exércitos do Poder instituído e os de grupos revoltosos, apesar
de tanta revolta nas primeiras décadas da República, sim intelectuais. É
disto exemplo o primeiro bibliotecário que nos aparece em campo de
batalha, o republicano Sampaio Bruno, panfletário de voz sonora em vários
jornais - República,
Voz Pública, Folha Nova -,
por isso mesmo vítima de espancamento por parte desse Afonso Costa que, na
condição de deputado, fez a declaração que hoje torna o regicídio suspeito
de crime premeditado: por muito menos do que as dívidas e empréstimos à
Coroa, rolara no cadafalso a cabeça de Luís XVI (3).
Sampaio Bruno é figura emblemática do Porto republicano
e democrático, porém, tendo morrido em 1915, só através da obra podemos
detetar a sua influência nos acontecimentos de 3 de fevereiro de 1927.
Aliás, se pomos os bibliotecários no campo de batalha, forçoso é recuar a
alguns anos antes de implantada a República, para lembrarmos que a força
organizada que a alicerçou, a Carbonária Portuguesa, foi recriada por Luz
de Almeida. Com o curso de Bibliotecário-Arquivista, Luz de Almeida
iniciou-se no mundo do trabalho como ajudante de conservador na Biblioteca
Municipal de São Lázaro, na Rua do Saco, em Lisboa. Foi nomeado inspector
das Bibliotecas Populares depois do 5 de Outubro.
O que a revolta de 1927 tem de notável é o
considerarem-na a primeira e mais consistente contra a ditadura de António
de Oliveira Salazar. Falhou, e falhou de várias maneiras, a mais dura das
quais manifesta no sacrifício de mais gente do que na própria revolução
que abateu a Monarquia. Machado Santos, no seu relatório sobre o 5 de
Outubro, dá conta de duzentas baixas, entre mortos e feridos (4). As
baixas de 1927 ultrapassaram as três centenas, muitas pessoas foram presas
e outras tiveram de passar ao exílio. Foi este precisamente o caso do que
então era o capitão Sarmento Pimentel, que teve de refazer a vida no
Brasil a partir do zero. Em 1931, aliciado para nova revolta, ainda
regressou, mas não chegou a sair da Galiza, porque o golpe, como ele
descreve, morreu no ovo.
João Sarmento Pimentel, desde cadete na Escola do Exército (foi um dos que
se apresentaram na Rotunda, a dar apoio a Machado Santos) até ao exílio no
Brasil, sempre combateu tanto pela República com as armas da palavra como
com as fornecidas pelo Exército Português. E é o Estado Maior do mesmo
Exército que o condena, em 1927: «Por ter pertencido ao comité
revolucionário e ter tomado parte activa no movimento de 3 de fevereiro
que visava alterar o governo republicano, foi condenado pelo Tribunal
Militar a 18 meses de prisão efectiva». Outros documentos do seu Processo
Individual dão-no como desertor, até finalmente ser “Abatido ao efectivo
do exército por ter completado em 23 de fevereiro o tempo de desertor
necessário para constituir deserção” (5).
Ao comité revolucionário,
encabeçando aliás a liderança, pertenceram também Jaime Cortesão, Jaime de
Morais e José Domingues dos Santos. Um oficial da Armada, Jaime de Morais,
e dois homens de Letras, um deles bibliotecário.
Comecemos entretanto pelo princípio, e por princípio
vamos ver como o sempre nervoso e impaciente João Sarmento Pimentel, não
contente com ter estado na guerra, primeiro no sul de Angola, a verificar
os estragos dos alemães nas nossas posições na fronteira com a Ovâmpia e a
Damaralândia, na atual Namíbia, e depois na Flandres, se envolveu num
golpe que o atirou para o exílio.
Se a força militante em que se apoiou a revolução do 5
de outubro resulta em primeira mão da vontade de um bibliotecário, a
revolta de 1927 teve o seu rastilho na Biblioteca Nacional, em Lisboa, por
ação do que David Ferreira considera a imprópria designação de “Grupo da
Biblioteca”, por haver grupos vários. Entre 1919 e 1927, muitos
intelectuais, artistas e arquitetos frequentaram o gabinete do diretor,
Jaime Cortesão: António Arroio, Afonso Lopes Vieira, José Leite de
Vasconcelos, Raul Brandão, Raul Lino, Reinaldo dos Santos, Teixeira de
Pascoaes, Viana da Mota, e muitos, muitos mais, acrescenta David Ferreira.
Nem todos, diz ele, eram republicanos, e nem todos eram monárquicos.
Entretanto, além de Jaime Cortesão, os bibliotecários Aquilino Ribeiro,
António Sérgio, Raul Proença, o próprio David Ferreira e mais funcionários
da Biblioteca Nacional militavam, incansáveis, pela democracia. No
gabinete de Jaime Cortesão faziam-se reuniões políticas, recebiam-se
sindicalistas e líderes intelectuais de grupos fortemente politizados (6).
Adstritas às atividades da Biblioteca Nacional e seu(s) Grupo(s), passavam
a palavra publicações por estes homens fundadas, uma das quais, a
Seara Nova, tal impacto político
atingiu que a dado passo, em 1923, com Jaime Cortesão, Raul Proença e
António Sérgio à frente, foi formalmente convidada a integrar um governo.
Conta Sarmento Pimentel nas Memórias do Capitão, a
páginas 274 :
“Álvaro de
Castro foi, dos chefes políticos, o primeiro que chamou a Seara Nova a
prestar-lhe colaboração no Governo. E assim António Sérgio foi ministro da
Instrução e Mário de Azevedo Gomes da Agricultura, sem contudo o programa
seareiro de reformas de base no Campo e na Escola poder
realizar-se devido ao pouco tempo que eles estiveram no Ministério
e falta de apoio parlamentar que amparasse as reformas que pediam. Isto se
passou em dezembro de 1923 e no pelo “desfazer de feira” parlamentarista,
com governos que só duravam meses” (2).
"Em novembro de
1924", prossegue Sarmento Pimentel, "é José Domingues dos Santos
que volta a solicitar a colaboração dos homens da “Seara”
oferecendo a Ezequiel de Campos a pasta da Agricultura “
(2).
João Sarmento Pimentel, que não seria muito
assíduo nas reuniões de Jaime Cortesão na Biblioteca Nacional, por viver
no Porto, já inequivocamente pertencia ao grupo da
Seara Nova, de que foi
co-diretor e em cujas páginas doutrinou e criticou. Foi assim que Ezequiel
Campos o convidou a chefiar o seu gabinete no governo de José Domingues
dos Santos, em 1924-1925. Antes de aceitar, Sarmento Pimentel veio a
Lisboa participar numa reunião da Seara Nova na Biblioteca Nacional, onde se deliberou prestar todo o
apoio a Ezequiel de Campos, que era um dos co-fundadores da
Seara Nova.
Dois anos mais tarde, em 1927, é o Grupo da Biblioteca,
ou a Seara Nova, nas pessoas de
Jaime Cortesão e Jaime de Morais, que vai ao Porto, na tenção de aliciar
Sarmento Pimentel para uma revolta com o objetivo de derrubar a ditadura.
Uma tal conexão entre política e literatura
alcançou poder bastante para saltar para as páginas da História, e daí o
seu fermento agir necessariamente na reforma da mentalidade, como
pretendia a instância teórica e doutrinária da
Seara Nova, já que falhou o
golpe armado propriamente dito. Enfim, se ainda aqui estamos, por
casualidade duas bibliotecárias, a trabalhar pela República e pela
democracia, é porque, apesar do fracasso das armas de fogo, venceu a força
das palavras.
Conta Sarmento Pimentel, nos
Diálogos com Norberto Lopes, que Jaime Cortesão e Jaime de Morais
tinham ido ao Porto aliciá-lo para a revolta de 1927 e pedir-lhe que
aliciasse ele dois antigos companheiros de luta em quem depositava
confiança (7). Jaime de Morais apresenta perfil similar ao de Sarmento
Pimentel. Vindo já desde a implantação da República, liderara revoltas
anteriores, uma das quais popularizou os
Defensores de Chaves. Com
efeito, fez parte das forças pró-republicanas que, sob o comando do
general Augusto César Ribeiro de Carvalho, em 1919, derrotaram em Chaves a
Monarquia do Norte, um último suspiro dos saudosos do sangue azul.
Sarmento Pimentel também participou na guerra da Traulitânia, mas no
Porto, irrompendo pelo salão do restaurante em que o comité
contra-revolucionário festejava, para lhe disparar estas palavras fatais:
«Os senhores estão todos presos!». E com esta conversa pouca, sem bocas de
fogo, acabou a traulitanada.
Médico, Jaime Cortesão conhecera os campos de
batalha da Flandres com Sarmento Pimentel. Se dirigiu a Biblioteca
Nacional só de 1919 a 1927, e não até mais tarde, foi porque quer ele quer
Raul Proença, bem como David Ferreira e outros funcionários da Biblioteca
Nacional, foram demitidos pelos ditadores no desfecho desta revolta, como
conta Jacinto Baptista na monografia dedicada aos dois intelectuais (8).
De que se queixavam os republicanos com e sem
assento na Biblioteca Nacional? O papel da propaganda republicana, fosse
em presença, nos quartéis, fosse em ausência, na Imprensa, só ganha a
devida cor se cogitarmos no número avassalador de analfabetos, mais de
metade da população portuguesa. Na raiz do problema, deparamos então com a
mentalidade da monarquia e da presente ditadura, a erguerem barreiras
contra a instrução pública, como forma de domínio, e a dos intelectuais,
naturalmente oposta, dando primazia à Luz, como objetivo essencial para o
aperfeiçoamento humano. É curioso e significativo ver que o primeiro
artigo de Sarmento Pimentel, na Seara Nova, “Instrução militar”, para além
de dar um retrato diplomaticamente comprometedor da nossa Nação Armada,
declara que a principal instrução militar tem de ser ensinar a ler e a
escrever. Assim, dois meses de recruta bastavam aos já alfabetizados; dois
anos eram suficientes para alfabetizar; e acrescenta que nenhum recruta
devia sair do quartel sem saber ler nem escrever, o que vai ao encontro de
preocupações distintas, com os emigrados: não se devia permitir a
emigração de analfabetos. Saber ler e escrever são as verdadeiras armas, e
não propriamente as velharias inúteis que exibiam os nossos militares (9).
De que se queixariam então os bibliotecários, para
ousarem erguer-se contra a ditadura? Um dos principais motivos é
intrínseco à própria ideia de biblioteca, fonte de conhecimento e
liberdade no seu armazém de palavras. Sarmento Pimentel expõe-no, com
vernáculo verbo, na edição completa das
Memórias do Capitão:
“[…] lançou mão da Censura, arma poderosa e
destruidora de toda a fiscalização e da divulgação da opinião pública, que
logo os silenciou, e por 35 anos havia de controlar a Imprensa,
a Rádio, Correios e Telégrafos, só deixando que se escrevesse, ou
dissesse, aquilo que era louvor aos donos do Terreiro do Paço e suas
sucursais em todo o Portugal e no Ultramar.
Foi, afinal, com a tesoura da Censura que o
inquisidor capou a Nação e lhe permitiu que, durante 25 anos Portugal
tivesse como Presidente o Carmona – ‘o dos tomates cor de rosa’ como lhe
chamava o Paiva Couceiro” (10).
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