“Só escrevo sobre papel”,
declarei, na Associação 25 de Abril, em reunião da equipa que prepara as
iniciativas para o próximo aniversário da Revolução dos Cravos, em torno
do Capitão Sarmento Pimentel. Declaração queixosa, dadas as pressões
que às vezes sinto para tomar posição sobre este ou aquele acontecimento,
e não me apetecer nada fazê-lo, por falta de informação, de disposição e
de algo que invejo a muitos: a segurança com que racham ao meio os
problemas, de um lado deixando o Bom e do outro o Mau. Não disponho de
meios para escolhas tão seguras, decerto por o meu pensamento ser
naturalmente anárquico e não se conformar com paradigmas nem ideologias,
esses dispositivos intelectuais que nos servem de casulo.
Posto o meu desabafo, um dos capitães de Abril, hoje coronel, Nuno
Santos Silva, foi buscar fotocópias de um artigo do Sol, de Ana
Petronilho, que repete o que já sabemos: Jaime Nogueira Pinto foi impedido
pelos estudantes da Universidade Nova de ali fazer uma conferência por tal
conferência ter sido organizada pelo movimento Nova Portugalidade (Ver
Post scriptum), que
chora Salazar, lhe deixa flores na campa, sente saudades do Império e da
Mocidade Portuguesa, das fritas do Natal e da menina do Capuchinho
Vermelho, e é claro que já estou a tergiversar.
O problema está em que a A25A se dividiu na apreciação do caso,
depois de cavalheirescamente Vasco Lourenço ter oferecido o auditório da
sede para a dita conferência, à qual eu assistiria, para me inteirar dos
factos, mas à qual não assistiriam nem Joana Ruas, nem Joaquim Lourenço,
nem Nuno Santos Silva, lá está, lá está: andam melhor informados do que eu
e por isso não precisam de mais luz.
Bem, a minha posição sobre o caso é irrelevante, porque não lhe
atribuo importância de maior, se bem que a sua menor importância se insira
numa perigosa derrapagem mundial para ideologias de direita ressurgidas
dos cemitérios. Passo a decisão para Sarmento Pimentel, pois será muito
mais instrutiva.
Assim: o movimento neo-fascista chama-se Nova Portugalidade porque
apela para o que nos tempos de Salazar se defendia como valores pátrios.
As colónias, por exemplo. Sarmento Pimentel, um homem extremamente lúcido,
ainda em tempos de Salazar defendia - haja em vista a "Carta ao Exército
Português", de 1959, uma publicação clandestina - que era preciso evitar o
que depois se chamou "guerra colonial", inevitável se não fosse dada
independência às colónias e resolvida a situação à maneira inglesa, ou
seja, com a criação de uma Commonwealth.
Nesta carta ele apela para a revolta do Exército contra a ditadura,
essa miserável opressão que não se verificava só pela perseguição da PIDE
e Censura, também se exercia nas colónias, fechando-se os olhos, por
exemplo, à exploração delas e do trabalho negro, opressão que, de resto,
começava pelo culto da iliteracia, pois só é possível exercer prepotência
sobre uma população quando os seus indivíduos não sabem ler nem escrever.
O país, na circunvizinhança da República, era maioritariamente analfabeto:
em certas aldeias do interior, o analfabetismo chegava aos 90%.
Os republicanos tentaram melhorar a situação criando escolas, etc., mas
vinte anos depois, nas páginas da Seara Nova, declarava
Sarmento Pimentel que nenhum recruta devia sair do quartel sem saber ler
nem escrever, e a base do seu combate tem por arma a palavra e não as bombas
artesanais, como demonstra a fundação de jornais, escolas, publicação de
artigos etc. no Brasil, para benefício da comunidade portuguesa, e muito em especial o que agora importa, a
Portugalia, revista em que pontificou Ricardo Severo, seu camarada de
resistência e de luta, como ele exilado no Brasil. A Portugalia,
de ideias diametralmente opostas às da Nova Portugalidade,
era uma bela e boa revista, de grandes dimensões, capa branca, salvo erro
luso-brasileira, e digo "salvo erro" porque falo de memória, pois a
conheci nos meus anos de ativo, como bibliotecária no que hoje são os
museus da Politécnica, há mais de 30 anos. Artigos de fundo, pouca
fotografia, muito diferente de outras como a Ilustração Portuguesa,
de tom mais noticioso e popular.
Sarmento Pimentel foi um homem sano de ideias, que engoliu sapos
porque era preciso, saídos da sua ala socialista. Mas os sapos da direita
sempre os cuspiu. Ouviu discursos tocados de embriaguez saídos de quem
esperava viesse a derrubar Salazar, mas discursos fascistas, repito:
cuspiu-os sempre. E ainda hoje, testemunha do facto, José Verdasca afirma
que ele não aceitava protestos de amizade de qualquer um, nem recebia
qualquer um em sua casa. Só depois de demorada avaliação confiava neste e
naquele.
Norberto Lopes fala de traição logo no título do seu
livro: João Sarmento Pimentel - Uma geração traída. Os puros
heróis da implantação da República sentiram-se traídos pelos oportunistas
que tomaram as rédeas do Poder na continuação, mas persistiram no combate
sem ceder, até que, gorado o primeiro ataque forte à Ditadura Militar,
em 1927, tiveram de se exilar, foram presos ou mortos. No Brasil, a luta continuou.
Após as alegrias incomensuráveis do 25 de Abril, os impuros puseram-se a
trair os ideais e Sarmento Pimentel queixa-se. Sempre se queixou e com
razão. Mas também experimentou alegrias intensas. Hoje, se vivesse,
sentir-se-ia mais traído do que nunca.
Sarmento Pimentel teria assistido à conferência de
Jaime Nogueira Pinto?
Claro que não.
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