CARTA DE TEÓFILO BRAGA

Lisboa, 19 de Dezembro de 1882
Caro patrício e bom amigo Arruda Furtado

Tenho presente a sua preciosa carta de 13 de Novembro, à qual já deveria ter respondido se inesperadas complicações me não viessem embaraçar na partida do último vapor. Hoje escrevo-lhe forçado pela própria consciência, que me argue de tanta demora. Vi com extraordinário interesse o plano do seu trabalho antropológico acerca da ilha de São Miguel; é uma ideia luminosa de método, partindo do caso particular ou restrito, para o caso geral ou em parte grande. Compreendo como a circunstância da insularidade deve influir em uma diferenciação por estabilidade ou por adaptação ao meio. O que temos certo com relação às tradições poéticas insulanas, nos Romanceiros dos Arquipélagos dos Açores e Madeira, mais ricas e conservadas do que na tradição continental, deve também dar-se na ordem antropológica pela conservação de caracteres já modificados na metrópole. As ilhas sofrem, é facto, uma revolução na sua economia, por um maior contacto com os grandes centros europeus, por uma maior sociabilidade, pelo regresso de emigrantes, e pela desvinculação da propriedade. É este o momento de fixar as observações; também nos vários estados da Alemanha, antes de se comunicarem com facilidade e de homologarem os seus caracteres pelos caminhos de Jena, Jacob Grimm coligiu as tradições e os contos populares, que em parte vieram a extinguir-se, e que são característicos como factos de diferenciação local. Acho, portanto belo o seu plano, e destinado a exercer uma grande influência nos estudos antropológicos. Pede-me o meu amigo na sua carta, que lhe preste informações sob um dado número de problemas étnicos, que são nada menos do que:

1° Indicação das fontes donde se tiram os elementos de prova da origem particular da população actual da ilha

2° Elementos da sua psicologia, sentimento religioso, superstições, sentimento artístico, moral, etc.

Quanto ao primeiro quesito, a população insulana em geral dependeu do sistema administrativo das Capitanias, em que uma família aristocrática era acompanhada por colonos chamados homens de criação, que trabalhavam em uma condição quase servil. Essa família aristocrática ia-se desmembrando em morgados, e os colonos iam de cada vez pagando mais cara a renda da terra. Ora este elemento de colonização tem o carácter antropológico do fundo da população portuguesa trabalhadora, em grande parte moçárabe, isto é com um grande elemento mourisco, berber, árabe, judaico, ibérico, contrabalançando-se com o elemento árico dominador, celtas, romanos e germanos. Pelos antigos contratos de enfiteuse deve-se conhecer a origem de cada casal, e facilmente de uma pequena população. Pela etnologia chega-se a conclusões extraordinárias: por exemplo, nos Açores e Madeira o trigo é trabalhado com a trilha, ou como crivado de pedras basálticas puxado pelos bois na eira. Este instrumento é ainda hoje empregado pelos felás do Egipto, e os romanos, que o conheceram e lhe chamaram tribalum, adaptaram um outro aparelho o cilindro móvel com lâminas de metal, o plastellum foenicum, que tomaram dos Cartagineses e que os Hispanos também usavam. Por que é pois que os insulanos conservaram o tribalum, quando os romanos o haviam abandonado? É pois que a camada popular que a usou é a mesma. Nas superstições vêem-se restos de cultos de religiões que precederam os cultos áricos; na ilha de S. Miguel, há uns versos a Santa Ana, em que se vê a persistência da concepção da prostituição da deusa Anah dos povos kushitas:

Senhora Santa Anna

Dai-me outro marido

Que este que eu tenho

Não dorme comigo...

Em um Romance da ilha de S. Jorge, que começa Eu bem quizera, senhora, há o vestígio o mais evidente da antiga saga escandinava de Sigurdo; este romance ainda não foi encontrado na tradição continental. Nos cantos insulanos há referências a muitos símbolos jurídicos que se encontram nos antigos Forais portugueses, ou pequenos códigos políticos, civis e administrativos das localidades ou concelhos. Uma cousa que ajuda muito a reconstrução antropológica é onomatologia; os nomes de lugares revelam a passagem das raças antes de toda a história, e os nomes de famílias e indivíduos revelam as invasões, os cruzamentos e as classes. Sobre este último capítulo quem mais tem trabalhado é o A. Coelho, mas é de um pedantismo brutal e de trato perigoso, como infelizmente o reconheço, por uma reconcentrada inveja contra tudo o que não é ele como único sabedor no mundo. À medida que o meu amigo for avançando em esse trabalho, desde já me ofereço para lhe estudar os problemas etnológicos que julgar serem da minha competência. Amigo reconhecido e fervente admirador.

Theophilo Braga
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