FEIJÓ
NATURALISTA BRASILEIRO
EM CABO VERDE NO SÉCULO XVIII (2)
Maria Estela Guedes e Luís M. Arruda*

AS CARTAS PARA O MINISTRO

Era sob o ministério de Mello e Castro que decorriam as expedições régias e actividades no Real Jardim Botânico da Ajuda, daí não só que o ministro seja o interlocutor de Feijó e dos outros filósofos naturais, como também de quantos, em especial governadores, enviavam das conquistas amostras de produtos dos três reinos para o Real Jardim Botânico da Ajuda e Gabinete de História Natural, uma das sua dependências.

O naturalista escreve ao ministro, mas não há nesta correspondência nenhuma relação de intimidade, tratando-se apenas do recurso usual à epistolografia para apresentar matéria científica ou outra. As cartas constituem uma descrição física, obedecendo em todos os pontos às exigências de um curso ministrado por Domingos Vandelli, e que existe em manuscrito na Academia das Ciências, com o título de “Viagens Filosóficas…” (10). Numa época utilitarista, e sendo Vandelli um economista, conselheiro de finanças de D. João VI, não é de admirar que o seu curso, dirigido aos naturalistas que deviam partir para as conquistas, e em especial para o Brasil, seja uma História Natural Económica adaptada ao que se pretendia deles em territórios ainda inexplorados.

A descrição física, se hoje ainda se praticasse, enquadrar-se-ia nos serviços militares ou de defesa de um país, aliás Feijó, já o dissemos, era militar de carreira. Como Vandelli ensina nas “Viagens Filosóficas”, a descrição de um país implica dar conta do clima, acidentes geográficos, natureza dos portos, desenhar mapas se fosse caso disso, sobrepor aos que houvesse a carta mineralógica, analisar fronteiras, a navegabilidade dos rios, o tipo de embarcações, aparelho de guerra, manufacturas, religião praticada, doenças endémicas, remédios nativos, costumes do povo, indumentária, tecidos, arquitectura e materiais de construção, sistema de governo, etc.. O filósofo natural devia também preparar, conservar e remeter amostras das produções naturais ao Real Jardim Botânico da Ajuda. Esta instituição era um laboratório onde se apuravam técnicas, como a purificação do anil, e uma estação aclimatadora, na qual se seleccionavam plantas úteis para introduzir onde melhor vegetassem, em Portugal ou nas conquistas. Vandelli exigia ainda que se averiguasse quais as plantas e animais nocivos e quais os seus predadores, para se introduzirem os predadores onde fosse preciso combater os nocivos. Logo à entrada das “Viagens Filosóficas” ensina a etiquetar e a assinalar localidades, medindo a longitude e a latitude; tudo isto somado, o livro eleva-se à categoria de uma bela utopia, tal como toda a empresa governamental que levou a cabo as viagens, porque, na parte das missões em que lhes cabia coligir, preparar, conservar e remeter colecções para o Real Gabinete, a correspondência foi fraca. O ministro exaspera-se, Feijó é alvo de duras repreensões, porventura merecidas. Os naturalistas acompanhavam em geral destacamentos militares, não andavam sozinhos no sertão angolano nem pelas matas da Amazónia, daí frequentes queixas por terem de se subordinar a essas missões e acumular tarefas, pois alguns, como Silva em Angola e Feijó mais tarde em Cabo Verde, eram secretários dos governos provinciais.

Cabo Verde é um arquipélago pobre, o seu interesse era sobretudo estratégico nas rotas dos navios que sulcavam o Atlântico. Não tendo muito mais para dar além da urzela, os produtos que o ministro reclamava a Feijó eram o salitre nativo e o enxofre. O enxofre, por constituir os alicerces da indústria química; o salitre, que então se importava manufacturado do estrangeiro, para baixar assim os custos da pólvora. Não os encontrará em Cabo Verde, entre as lavas expelidas pelo vulcão, pelo menos em quantidade que justificasse extraí-los (11). Mas muitos anos depois, já de regresso ao Brasil, fundará no Ceará um laboratório para extraçcão do salitre da Mina de Tatajuba, descoberta por ele (12).

Eis o motivo pelo qual as cartas de Feijó para o ministro são tão minuciosas: o fundamento do “itinerário” ou “exame” filosófico é justamente descrever, para que o Governo saiba o que governa, quem governa e como governar. Os naturalistas fornecem instrumentos para o exercício do Poder. Se esses instrumentos são falsos ou verdadeiros, eis o grande risco. No caso português, os filósofos naturais que lideraram as expedições régias são todos nativos do Brasil, anseiam pela independência, pelo que não têm interesse em oferecer riquezas à Coroa. Nenhum deles revela ter descoberto nada de relevante. Quando o conhecimento é uma arma que o oprimido oferece ao opressor, basta virá-la ao contrário para se tornar ofensiva. Afinal, a qualidade de “esclarecido” ou “iluminado” aplica-se ao despotismo. Feijó, formado na escola do liberalismo de Vandelli, assinala a existência em Cabo Verde dos “despóticos destas ilhas”(13).

Os textos atribuídos a Feijó, e outros que correm dele sob diversas assinaturas, constituem um enigma bibliográfico a que não cabe o rótulo de plágio, ao invés do que António Carreira (14) e Estela Guedes (15) deixaram já sob suspeita. Carreira analisa e publica versões do “Ensaio Económico”, não publica as versões da memória sobre a erupção do Fogo em 1785, que geram enigmas similares. Conhecemos vários documentos de Feijó que referem essa erupção e dois manuscritos da memória (16), não publicada no seu tempo, mas conhecida dos naturalistas. É assim que diversos autores citam parágrafos dela, sendo as citações todas semelhantes e diferentes, divergindo por exemplo na data da erupção. Orlando Ribeiro (17) publicou a memória de Feijó a partir do manuscrito do Arquivo Histórico Ultramarino, e está conforme com ele, excepto num ponto: acrescenta uma “Prefação”, importada da mais desconcertante das versões, a de Pimentel (18), por ser profundamente diversa das outras e não indicar a fonte, quando à mão tinha o manuscrito da Academia das Ciências de Lisboa, esperando-se portanto que referisse o facto de a sua fonte ser outra e não coincidir com a da Academia. Outra circunstância desconcertante é a de Botelho da Costa (19) publicar uma memória sobre a erupção do Fogo ocorrida em Abril de 1800, que inclui parágrafos da(s) memória(s) de Feijó, mas cuja autoria Botelho da Costa atribui a Marcellino António Basto. Em nenhum destes casos se pode falar de plágio, sim de obra colectiva. A obra colectiva, porque é plural, dissipa a identidade do autor singular. No caso de Feijó, dissipa-se ainda de outros modos: correm várias datas e locais de morte, e uma das versões do seu “Ensaio económico sobre as ilhas de Cabo Verde” foi publicada no Brasil sob a autoria de João da Silva Rego (in Carreira). De modo geral, as versões mais problematizantes são as do Brasil, por isso é de encarar a hipótese de Pimentel ter publicado uma versão brasileira.

Estes problemas exigem que se advirta o leitor de que é preciso cautela no uso da informação contida nas cartas que agora divulgamos, pois a existência de versões e de problemas de autoria tornam logo impraticável a citação. Não é decerto por só nós termos conhecimento da sua existência na Biblioteca Nacional que elas vêm à luz duzentos anos volvidos sobre o período das Luzes, sim porque ninguém, até agora, as quis divulgar. Nada garantindo que nos arquivos brasileiros não existam manuscritos gémeos mas diferentes, pois Feijó encontrava-se em ponto estratégico para enviar informações para a metrópole e para o Brasil.

Como o nosso principal objectivo é porém proceder à divulgação das cartas, passamos assim ao “Itinerário Filosófico”, conjunto de observações pioneiras sobre Cabo Verde, no que diz respeito ao uso de discurso científico moderno, próprio do Iluminismo. Pioneiras sobretudo em relação ao que descreve da ilha do Fogo, a mais interessante para a geologia, e que a geologia só revela conhecer das versões da(s) sua(s) memória(s).


CONTINUA


NOTAS


(10)
«Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o flósofo naturalista nas suas peregrinações deve principalmente observar, por D.V. », 1779. Cópia de Frei Vicente Salgado. Ms. azul, Academia das Ciências de Lisboa.

(11) Embora o ministro tivesse recebido notícias em contrário, e o próprio Feijó induza na convicção de que o enxofre seria uma riqueza a extrair: “pode participar a S. Exª que me disse hoje o Administrador desta Ilha que se havia colhido de enxofre, de toda qualidade, de 95 para 100 quintais, e de caparrosa de toda a sorte, de 25 para 30 quintais. Inclusamente remeto uma lista do cálculo que eu, segundo a minha estimativa, tenho formado sobre a importância de ambos os produtos, desde a sua recolha até ser posto a bordo da embarcação que deve conduzi-los a Lisboa”. João da Silva Feijó – Carta para Júlio Mattiazzi. Ilha do Fogo, 15 de Agosto de 1786. Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/F.15.

(12) Vários documentos de Feijó e relativos ao seu trabalho no Ceará, 1802-1803. Arquivo da Casa da Moeda, Lisboa.

(13) Carta de Feijó para Júlio Mattiazzi. S. Nicolau, 19 de Abril de 1784. Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/F-8.

(14) António Carreira - “Apresentação e comentários ao Ensaio e memórias económicas sobre as ilhas de Cabo Verde (Século XVIII), de João da Silva Feijó”. Edição do Instituto Caboverdeano do Livro. Praia, 1986.

(15) Maria Estela Guedes - João da Silva Feijó, viagem filosófica a Cabo Verde. Asclepio, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Madrid, XLIX (1), 1995.

(16) Carta de Feijó para Júlio Mattiazzi. S. Nicolau, 19 de Abril de 1784. Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/F-8.

(17) João da Silva Feijó - Memoria sobre a nova irrupção volcanica do Pico da Ilha do Fogo – 1786, uma carta para Mello e Castro, em anexo. Manuscrito Cabo Verde. Caixa 43. Arquivo Histórico Ultramarino. Dois mapas relativos à memória na secção Cartografia e Iconografia (AUH). Na Academia das Ciências de Lisboa existe um manuscrito idêntico à Memoria sobre a nova irrupção...

(18) Orlando Ribeiro publicou a memória de Feijó em “A Ilha do Fogo e suas erupções”. Memórias, Série Geográfica, I, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1954.

(19) J. M. Oliveira Pimentel - Memória sobre a produção do sulfato de soda no vulcão da Ilha do Fogo. Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa, Classe de Ciências, N.S., II, 1857. Publica a Memoria sobre a ultima erupção volcanica do Pico da Ilha do Fogo succedida em 24 de Janeiro do anno de 1785, observada e escripta por João da Silva Feijó, naturalista que foi encarregado por Sua Magestade do exame philosophico das ilhas de Cabo Verde.

(20) Botelho da Costa - A Ilha do Fogo de Cabo Verde e o seu vulcão. Boletim da Sociedade de Geografia, 5ª série, 7, 1885.