ALESSANDRO

ZIR

 

 

 

Faltaram os olhos do diretor e... traiu-se!
the blindness of Meirelles

The blindness of Meirelles

Logo no início do filme, a oscilação abrupta entre close fechado na superfície rajado-reflexiva das luzes de semáforo e carros passando desfocados, também em close fechado, atesta a possibilidade de conversão visual da textura claustrofóbica de uma cegueira que — se branca, e possivelmente simbólica — é das mais opressivas. Mesmo depois que o enquadramento se abre, os ângulos preservam algo de enviesado, atravancado, e carros continuam a atravessar fora de foco diante da câmera, cortando o espaço entre o espectador e a cena, quase que atropelando-os. Era um início que tudo prometia. Infelizmente, a tensão gerada pelo uso perspicaz de uma seleção sutil de recursos cinematográficos não se mantém uniforme até o final, é ultrapassada pela narrativa, pior que isso, pelo conteúdo da narrativa, por aquilo que se quer dizer, pelo peso insustentável da mensagem. A narrativa degringola exatamente por perder a oportunidade de transparecer, do início ao fim, divergida nesse reflexo leitoso em que o título do filme é anunciado, e que vai se desdobrando revertido, invertido, na superfície inclinada, em movimento, ludibriante de vidros e espelhos. E no contexto, degringolam-se também, atraiçoados, os próprios recursos originais. Nada mais eficaz que a luz chapada, a mesma que no Constant Gardner suspirava a clichê publicitário emoldurando em facilidade pouco convincente a intimidade de encontros amorosos, para expressar uma cegueira que é excesso de visão. O problema é que, assim como com os outros recursos técnicos empregados, e junto com eles, a tensão gerada não chega a ser suficiente para sustentar uma narrativa que vai pedagógica e didaticamente se deformando em algo que se parece estar condolentemente, horrivelmente obrigado a dizer às suas custas. O diretor foi traído, ou traiu-se.

Voltando à inteligência dos recursos, há além dos visuais os sonoros, como essa mistura engenhosa de canto de pneus, buzina e farfalhar eletrônico-cromático a qual acompanha o girar desequilibrado, desamparado do primeiro cego, braços abertos, sobre uma faixa de segurança vertiginosa, ainda no início do filme. Minutos a seguir, depois do primeiro cego despachar aquele que o levou em casa, tem-se o desdobrar arrastado-sussurrante de uma íris recolhida através da sanfona táctil de um close mágico nunca visto. Também desdobrados e recolhidos são o conjunto de sinos que desacompanham curiosos o contralto rouco da moça dos óculos escuros, quando ela se encaminha para a transação amorosa do quarto de hotel, logo antes de cegar. Triângulos, campainhas, estalos, rangidos. Já na metade do filme, a cena em que a mesa apagada e redesenhada — outro recurso visual excelente — ressurge inesperada num baque empurrando o menino, é exemplo magistral de conjunção talentosa e perspicaz da criatividade do diretor em termos de imagem e som. Isso se diz dos recursos sonoros, mas inteiramente diferente é o uso da música. Não faz mais que acentuar certos pontos já previsíveis demais na narrativa, exagerando o que eles por si só já teriam de clichê e desandando numa pieguice totalmente despropositada. Um exemplo seria o reencontro melodioso e suspirado do primeiro cego com a mulher, logo que ela chega no sanatório. Um segundo exemplo seria o momento musical condolente do recolhimento das jóias. Também a direção dos atores às vezes é bem fraca, o que torna alguns diálogos muito pouco convincentes, para não falar nos choros. O primeiro exemplo, e talvez um dos mais gritantes, é a cena no consultório médico, em que frases como “do you think I’m lying?”, e “I know how to get to the hospital” resultam, fora de ritmo, patéticas. A interpretação tanto de Julianne Moore, Mark Ruffalo e Alice Braga são contundentes, mas não sobrevivem à implausibilidade dos próprios personagens, à linearidade previsível e implausível do roteiro.

A fim de sustentar essas últimas afirmações, o que se vai dizer do filme, a partir de agora, depende de uma contraposição com o livro de José Saramago. O objetivo disso não é sugerir a debilidade do primeiro em relação ao segundo, mas mostrar como uma perspectiva deficiente adotada diante do texto, diante da história sugerida por Saramago, vicia os elementos constitutivos do próprio filme, cuja narrativa se desmantela por si mesma, independente de qualquer comparação externa. Vai se apontar elementos existentes ou lacunas cuja alquimia no filme resulta infeliz do ponto de vista da plausibilidade ficcional do mesmo, enquanto que no livro, ao contrário, tal alquimia era extremamente efetiva. O filme fracassa em alcançar aquela dimensão mínima de autonomia com relação ao real que seria capaz de constituí-lo como uma coisa em si mesma. O filme não se constitui como obra. Sempre se poderia ter optado por uma construção poética (em sentido grego) completamente diferente daquela apresentada no livro. Mas a crítica que se faz aqui é a de que, diferente ou não, o problema é que tal construção não funciona, e talvez exatamente porque o filme permanece preso demais ao livro, mas de forma terrivelmente ineficaz no que diz respeito à sua própria construção. E isso tudo às avessas da riqueza e genialidade dos recursos bolados.

O que inviabiliza o filme é um didatismo imaculado num cenário em que as pessoas vão, cada vez mais, a passo contínuo, repisar a própria merda e defuntos. Em relação a esse último ponto, Fernando Meirelles dá provas, para além da criatividade e perspicácia, de estofo, e o filme tem algumas passagens inegavelmente nojentas no melhor dos sentidos. Ainda assim, pode-se ficar insatisfeito, visto que o texto de Saramago em matéria de fezes, defuntos, vômitos, ranhos e toda sorte de maus cheiros e viscosidades podia dar ensejo a uma miríade de Salós pasolinianos. Dos cinco sentidos, certamente não é a visão e nem sequer sua ausência que primam, mas o olfato, permanentemente oprimido por toda sorte de fedores. Talvez seja possível não ver, mas é certamente impossível não sentir que difundida em tão fétido e autêntico miasma qualquer solução linear pedagógica, bem intencionada, fica fadada a se autodecompor. Mesmo convindo que Blindness, em termos de sujeira, parece privilegiar fuligem sobre secreções, antes Children of Men do que giornate di Sodoma.

O conceito de cegueira branca como algo subjacente a uma iluminação no fundo benigna tem base no livro de Saramago. Pode ser inferido, por exemplo, do trecho em que se descreve a emergência da cegueira no homem que inicialmente ajuda, depois rouba o carro do primeiro cego. Olhos, virados para dentro, como espelhos, são capazes de “mostrar sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca”, são “uma consciência com dentes para morder” (: 26).[1] Ou, como é sugerido também mais adiante, a cegueira é “uma glória luminosa” (: 94). E entretanto, especialmente nessa última expressão sugerida pelo narrador, há ironia cáustica. A glória luminosa é também a merda, porque é exatamente a isso que a “luz e a brancura” cheiram ao médico, que depois de se arrastar pelo chão grudento até encontrar a latrina, fica impossibilitado de se limpar por não achar o papel higiênico (: 96-7). Trata-se, em verdade, de uma “hedionda maré branca” (: 115), de “um cavalo com medo, um cavalo com os olhos a quererem saltar-lhe das órbitas” (: 131). É no fundo “o olho que se recusa a reconhecer sua própria ausência” (: 129). E é, inclusive, a possibilidade de uma volta ao simples estado de coisa, uma espécie de remissão, regressão escatológica pela transfiguração do simbólico num processo de concretização coisificante: “atravessar a pele visível das coisas e passar para o lado de dentro delas, para a sua fulgurante e irremediável cegueira” (: 65) — é esse o desejo da mulher do médico.

Faltam ao filme essa ambigüidade, e a ironia e frieza que articulam e sustentam a história no livro, como na passagem em que o narrador confessa que “o grotesco do espetáculo teria feito rir à gargalhada o mais sisudo dos observadores, era de morrer, uns quantos cegos a avançarem de gatas, de cara rente ao chão como suínos” (: 105). É esse distanciamento do narrador que dá ao livro um tom de paródia de si mesmo sem o qual a história proposta e criada por Saramago se esvaziaria. É mesmo possível filmá-la? Como criar em termos cinematográficos o deboche de um narrador que, sabendo que a mulher do médico não está cega, a trata como um caso exemplar de cegueira “com visão frontal” (: 87)? Como criar em termos cinematográficos o cinismo de um narrador que jocosamente se alia aos ladrões de comida qualificando-os de “a mão... que dá de comer” (: 162). Ou que afirma dos cegos que fazem barulho para distrair a atenção do bando de estupradores, que “eram como carpideiras em transe” (: 202). Ou que diz, em relação aos cegos que se viram para reparar nos seios desnudos da mulher do médico, que o fazem tarde demais pois que ela já se tapara com um casaco (: 228). Ou que comenta, diante do pânico desencadeado pela descoberta de que as imagens santas dentro da igreja também estariam vendadas: “é preciso ser-se dotado de muito bom coração para não desatar a rir diante deste grotesco emaranhado de corpos à procura de braços para libertar-se e de pés para escapar” (: 303). Mas não há bom coração que perdoe ao diretor não ter percebido que sem esse escárnio da narrativa com relação à própria narrativa, do narrador em relação ao espetáculo que ele mesmo apresenta, o mais que se salvasse da história se revelaria no final implausível, como um Drácula representado por um ator banguela. E tal escárnio poderia ter sido salvo com recursos não muito complicados como a introdução de um narrador, como por exemplo, é feito em clássicos de Robert Bresson, e no Plata Quemada de Marcello Piñeyro. Meirelles protela esse recurso para os minutos finais do filme, valendo-se então da voz do velho da venda preta, mas já tarde demais.

Como exemplo gritante de didatismo imaculado sem sentido, tem-se o discurso feito pelo médico dizendo que não se importaria de prostituir a própria esposa visto que estariam todos fadados a morrer de fome (starving to death). O filme dá aqui a falsa impressão de que o desarranjo da situação toda decorreria da insatisfação de algum tipo de necessidade de ordem fundamental e básica, a qual poderia — prévia e previsivelmente — ter sido atendida.  Meirelles não faz outra coisa que repetir, literalmente, o que está escrito na respectiva passagem do texto de Saramago, e no entanto, o afastamento do texto de Saramago tomado no todo, do espírito do texto, seria possível dizer, da medula da história, não poderia ser maior. Em um artigo publicado no jornal El Pais oito dias depois dos atentados às Torres Gêmeas (“El factor Dios”), Saramago afirma que, diferentemente de Nietzsche (para quem o fato de Deus não existir implicaria tudo ser possível), para ele, Saramago, é antes o caso de que Deus aparentemente existindo, em nome dele se justifica toda e qualquer atrocidade. O que é comum tanto a Saramago quanto a Nietzsche é uma denúncia do niilismo em que se cai quando tudo se torna possível — seja por Deus, seja pela ausência de Deus. O mal estar de ambos decorre da liquidação de todo e qualquer valor. Pode-se dizer que essa é exatamente uma das raízes principais do Ensaio sobre a Cegueira. Em nome da sobrevivência seria tudo possível? Quando não sobra mais nada senão sobreviver, atinge-se o fundo de uma necessidade fundamental, ou antes, dissolve-se o próprio estatuto aparentemente fundamental dessa necessidade, em nome da qual é perpetrado uma dissolução geral de todos os valores possíveis, exatamente porque diante dessa necessidade aparentemente tudo se torna justificável? O problema mais premente não é simplesmente o morrer de fome, como se poderia inferir falsamente em leitura apressada — não que morrer de fome não seja um problema, mas, contra qualquer pedagogia simplista, poder matar a fome e atender a algumas outras poucas necessidades básicas está longe de ser a solução para o problema da cegueira, especialmente se se faz isso à custa de tudo o que mais for.

O que verdadeiramente horroriza não vem de algo concreto, palpável. E quando a moça dos óculos escuros diz no filme “It’s not easy knowing that we have killed someone, like I did”, escorregou-se apenas para outro exemplo de didatismo imaculado sem sentido, ocasionado por repetição literal mas incompleta de palavras do livro. Em verdade, o autêntico problema não seria simplesmente matar, mesmo que fosse matar a tesourada, como o expectador do filme pode acabar falsamente concluindo que o seja, para sair do cinema nada mais que auto-edificado pela bondade natural de todos nós (ou alguns poucos, entre os quais, além da moça de óculos escuros, certamente ele inclui a mulher do médico e provavelmente a si mesmo). No livro, quando reflete em luta com a consciência de ter cometido o assassinato a tesourada do rei da ala 1, a mulher do médico acaba por lembrar a si mesma que “é necessário matar... quando já está morto o que ainda é vivo” (: 189). Quer dizer, o verdadeiro drama, a tragédia (em sentido grego) da consciência não advém de nenhuma pureza original, de nenhuma atrofia moral humanitária para matar. Antes pelo contrário, a tragédia vem de uma constatação de um estado possível de indistinção entre o vivo e o morto, esse estado de morto-vivo, que não apenas justifica o assassinato, mas o demanda como necessidade. Deve-se concluir que o legitimamente premente aqui não é a descoberta de uma base natural, mas a instauração de valores, de distinções e divisões, como a entre vivos e mortos. No final do livro, a mesma mulher defenderá a importância de uma ordem “que quer os mortos no seu lugar de mortos e os vivos no seu lugar de vivos, enquanto as galinhas e os coelhos alimentam uns e se alimentam dos outros” (: 288). Trata-se de um reconhecimento mínimo de que nem tudo deve ser possível, e de que as coisas não devem ser todas tomadas como iguais (mesmo quando estamos a morrer de fome). E não deixa de haver ironia suficiente nessa formulação incluindo galinhas e coelhos para advertir da ambigüidade e do caráter possivelmente transitório dos valores, mas nada poderia ser mais “fundamental” do que a contraposição, concretizada no tempo, dessas reversíveis diferenças. O filme fracassa em passar tudo isso, toda essa complexidade de questões envolvidas, e ficamos com nada mais que a auto-edificação apatetada do bondoso expectador na poltrona do cinema, espécie insuspeita de Alex de Clockwork Orange, bem seguro da própria fome e da impossibilidade natural de matar .

Quando, ao contrário, o diretor se atreveu a criar, inventando um diálogo que parece não estar originalmente no livro, tem-se um resultado eficaz: “may I suck on your niples? Just a little bit. Here you go". Tais expressões enunciadas numa voz de falsete, e em contraste com rugidos guturais no meio do horror de uma orgia marrom-escuro desfocada constituem uma das cenas mais genuínas do filme. Outro exemplo de originalidade convincente que emerge exclusiva no próprio filme é o personagem do rei da ala 1, cujo amoralismo de clown é magistralmente capturado por Gael García Bernal. Seria possível considerar, não sem maldade, mas igualmente com razão, que o ator se beneficiou do personagem ser morto ainda na metade do filme. Os demais atores são obrigados a sustentar, do início ao fim, uma idealização progressiva, que pelo menos no seu caso teria sido a priori impossível. No livro, tanto a mulher do médico quanto o médico têm falhas e ambigüidades. Por exemplo, ambos recuam a cada vez que tem a oportunidade de tomar uma atitude mais brusca que poderia reverter a situação insuportável dentro do sanatório. Rapidamente eles aceitam o esquema de ter que pagar pela comida apropriada pelos cegos da outra ala, e quando o médico tem a chance de se apossar da arma do bandido, ele falha, do que logo em seguida se lamenta (: 147). A desculpa, no caso, é que qualquer reação abrupta contra os bandidos possivelmente conduziria a situação no seu todo para um desfecho ainda pior. Ou ao menos é isso que o personagem, no livro, diz a si mesmo. E não é muito mais o que o filme é capaz de sugerir ao expectador. E entretanto, havia no livro também outros indícios de que aquilo que o personagem diz a si mesmo — inclusive no caso do médico e de sua mulher — é em boa medida mera racionalização, sendo menos o resultado de uma excelência de raciocínio ou pureza moral do que de passividade e até preguiça. O filme pouco explora essas ambigüidades, e por causa dessa omissão inviabiliza os personagens principais, aqueles que têm de manter sua boa dose de bondade intacta, do início ao fim. Está certo que, mesmo no livro, a passividade da mulher do médico não é um mero defeito, mas nem por isso é idealizada, mesmo se heróica. Trata-se de “uma fadiga infinita, uma vontade de enrolar-se sobre si mesma, os olhos... virados para dentro... até poderem alcançar e observar o interior do próprio cérebro, ali onde a diferença entre o ver e o não ver é invisível à simples vista” (: 157-8). Não há didatismo aqui, não há pedagogia fácil e consolo edificante. A passividade é também a possibilidade anteriormente referida de salvação como recuo escatológico, transfiguração do simbólico em coisificação. Intencionalmente ou não, Saramago flertou aqui com um tipo de misticismo judaico que se sabe estar nas raízes da cultura portuguesa desde a sua origem. A essência concreta das coisas como sendo o impossível de nomear, conforme diz a moça dos óculos escuros: “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos” (: 262).

A saída do hospital de isolamento, depois do incêndio, com o desaparecimento dos guardas, e o absolutamente paródico e excelente “we are free”, propulsiona o filme para além do colapso que o tempo todo se anseia que o fosse benignamente acometer. Deve-se sublinhar que tal expressão, “we are free”, não soa de forma alguma como simples clichê, mas sim como hiper-clichê, não meramente implausível, mas totalmente sem sentido naquele mundo de loucos e portanto plausível, e é só esse hiper-clichê, de fato excelente, o que permite a narrativa retomar o fôlego do início e se direcionar para um final que, infelizmente, volta a ser cada vez mais quebrantado. Na eficaz cena do “we are free”, a câmera uma vez mais se movimenta a partir do recorte de um enquadramento claustrofóbico para os escombros da cidade, reminiscentes, entre outras coisas, da atmosfera paródico-apocalíptica de certas cenas de clássicos insuperáveis como o Full Metal Jacket de Stanley Kubric. Nesse cenário liberado, o “eat something”, dito ao médico pela esposa, depois da luta pela salvação das sacolas com comida no supermercado, deixa de ser o índice fácil de alguma necessidade de ordem fundamental que se poderia previsivelmente atender, para se concretizar na pobreza categórica daquilo que de fato parcamente se possui, num vácuo positivo de sentido onde a palavra necessidade se desmantela como o salame arrancado pela metade ou meia barra de cereal esfacelada entre os dentes. É uma cena forte o suficiente para captar toda ironia que faltou às outras — versão em película e até superior da piada escrita de que se pode “elevar” o “perfume de uma bucha de pão duro” à condição de “própria essência da vida” (: 227).

Já não é o pão, entretanto, mas sim a água que passa a ter primazia na curva final da narrativa. Inclusive no livro, ela tem até mesmo um caráter mais explicitamente religioso, como quando as três mulheres lavando são apresentadas como “três graças”, e fala-se de “alma” e “Deus” (: 265-7). Aqui sim parece demandar-se algo de legitimamente lírico, talvez até algo de básico, e de definitivamente fundamental, mas que só teria caução em contrapartida a toda sujeira acumulada até aí e impossível, em última instância, de eliminar. De acordo com o livro, não há água nos encanamentos, é impossível se limpar. Pode-se trocar a roupa suja por outra limpa, mas não há como lavar-se, exceto quando vem a chuva. Aqui tem-se visivelmente o contrario da situação do sanatório em que se fazia qualquer coisa, em que se afundava na pastosidade mais ignóbil e fedorenta, por um simples pedaço de pão com manteiga. A água não é uma necessidade que compele, mas ao contrário, é algo que livra daquilo tudo a que se foi obrigado a aturar em nome de uma (suposta) necessidade. Nesse sentido, a água é realmente uma graça. Trata-se também, não se deve esquecer, de uma água fria, que faz tremer, e que não se suporta por muito tempo. No filme, entretanto, independente da temperatura, toda graça se perdeu, porque há subjacente o imperativo romântico (em sentido rousseauniano) — e ilusório — de que há necessidades fundamentais as quais linearmente coroariam o núcleo lírico de uma espécie de humanismo nobre, que é preciso defender e resgatar a qualquer custo, mesmo quando visivelmente em muito o preço que se paga já não compensa de forma alguma o esperado. Somos então brindados com suspiros, melodia de cantata de Bach, e “this is your home now too”, “there is nothing like clean water”, “human family and a dog”…  Seria possível revidar o brinde queixando-se, entre outras coisas, com razão, de que, independe do pêlo de arame, o terrier do filme não captura a ambigüidade que lhe precisaria ser conferida: “um animal áspero e intratável quando não tem de enxugar lágrimas” (: 230). Não seria demais também uma nostalgia de hienas “com os quartos traseiros encolhidos” (: 233), e ainda galinhas, “doidas de satisfação” a comer carne, possivelmente de gente (: 237). Para ser inteiramente justo, é preciso admitir que no meio desse descaminho final da narrativa a cujo criador faltou olhos de não ver, outra grande sacada ocorreu, dando provas, como as demais, que estamos aqui ainda diante do diretor de Cidade de Deus, obra genial. Saramago dera um jeito de incluir, nas últimas páginas da história, e no limite do paradoxo, o próprio escritor, se equilibrando numa assimetria sutil entre escrita e leitura. Exatamente o mesmo paradoxo é reproduzido no filme, quando o médico tira fotos, e, acrescenta-se, até de forma mais condizente com essa cegueira que, afinal, parecia o tema de ambos.

 

1] As referências de páginas aqui são todas ao livro de Saramago. Ensaio sobre a Cegueira, São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

ALESSANDRO ZIR – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (Brasil). Bacharel em Filosofia (UFRGS/Brasil), Bacharel em Comunicação Social (PUCRS/Brasil) e Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS/Brasil). Membro do Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das Ciências do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS. Actualmente no Canadá, a preparar o doutoramento.
E-mail: azir@zaz.com.br . URL: http://aletche.blogspot.com/