Adílio Jorge Marques

As ciências nacionais e o naturalista e Irmão
José Bonifácio de Andrada e Silva

A história das ciências no Brasil se insere no contexto do desenvolvimento da ciência em Portugal e na participação de personagens da nossa história que muitas vezes sequer desconfiamos ter envolvimento em outros assuntos que não a política colonial e em especial a nossa Independência em 1822.

Neste caso cito os alunos brasileiros de nossa elite intelectual e social que foram para Coimbra instruir-se na Universidade reformada pelo futuro Marquês de Pombal, homem forte das terras lusas de 1750 até sua queda na Viradeira em 1775. Não tínhamos no Brasil instituições nem próximas da portuguesa, uma das mais antigas Universidades do mundo. Do início da colonização brasileira até o ano de 1800, 2.122 brasileiros foram para a Universidade de Coimbra, sendo que 2 em 1577; 76 de 1601 a 1650; 278 de 1651 a 1700; 759 de 1701 a 1750; 994 de 1751 a 1800. A ciência no Brasil colonial se viu ainda mais atrasada em relação ao resto da América Latina devido à sobrevivência em Portugal do escolasticismo até as reformas pombalinas da segunda metade do XVIII. A coroa portuguesa vetava a divulgação de informações e muito dificultava as viagens e a entrada em sua maior colônia, quase que escondida do mundo até a vinda da família real em 1808, quando se tornou o foco de interesse dos naturalistas (cientistas) do século XIX. Considero que o Brasil foi “redescoberto” nessa data, pois a partir de 1808 tudo o que havia funcionando na Corte em Lisboa para cá se transferiu, transformando o Rio de Janeiro e organizando um país atrasado na única corte de um país europeu fora da Europa.

A instrução portuguesa e o mundo, em especial as ciências naturais, viviam sob a influência do Iluminismo (1) e das idéias liberais, principalmente após a Independência americana em 1776 e a Revolução Francesa em 1789. Pombal reformou a Universidade de Coimbra em 1772 importando pensadores com estas novas idéias, além de ter expulsado os jesuítas em 1759, diminuindo assim a influência medieval da Igreja sobre a nação lusa e aumentando a participação da razão sobre a administração de seu povo. Como resultado das reformas pombalinas da Universidade de Coimbra, haverá uma inclusão de matérias científicas no currículo acadêmico e brasileiros se tornarão alguns dos principais cientistas em mineralogia, química e geologia. Nesta época chegou a Portugal o naturalista Domingos Agostino Vandelli, futuro médico e conselheiro de D. João VI. Originário de Pádua, sendo um dos idealizadores da Reforma coimbrã e introdutor, de maneira sistemática, das idéias liberais entre seus discípulos. Casou em 1819 seu filho Alexandre Antonio Vandelli com a filha mais velha de José Bonifácio. Domingos era iniciado na Carbonária italiana e na Maçonaria, e alunos como José Bonifácio de Andrada e Silva, José Álvares Maciel, o Visconde de Barbacena, Alexandre Rodrigues Ferreira, Vicente Coelho de Seabra Silva e Teles, João da Silva Feijó, entre outros, receberam em maior ou menor grau influências do funcionamento dessas Fraternidades. No total cerca de 430 brasileiros se formaram em Ciências em Coimbra desde as reformas de 1772 apenas até o final do século XVIII, fato este que fornece a dimensão da influência que Domingos Vandelli pode ter tido na expansão das idéias revolucionárias.

Aqui entra em cena, especialmente para nós brasileiros, o grande José Bonifácio de Andrada e Silva (1763 a 1838). Foi influenciado por várias leituras filosóficas importantes para a formação do pensamento intelectual de sempre, tais como Leibnitz, Newton, Descartes, Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Locke, Camões. Em 1783 partiu do RJ para Portugal, matriculando-se em outubro na Universidade de Coimbra, iniciando ainda a 30 de outubro seu curso de estudos jurídicos, acrescidos um ano mais tarde, em 11 e 12 de outubro de 1784, dos estudos de Matemática e Filosofia Natural. Viajou de fevereiro de 1790 a setembro de 1800 pela Europa por conta da corte portuguesa, aumentando seu contato com as novas idéias libertadoras que já haviam sido plantadas no Velho Continente, e especializou-se na ciência Mineralógica. Dirigiu a cadeira de mineralogia em Coimbra, para ele especialmente criada por Carta Régia de 15 de abril de 1801. Foi Intendente Geral das Minas e Metais do Reino, entre vários outros cargos importantes que exerceu, sendo oficial acadêmico durante as invasões francesas, pegando em armas para expulsar os franceses. Na Academia Real das Ciências de Lisboa atingiria o cargo de Secretário perpétuo em 1812.

Já com 56 anos de idade e após 36 anos de carreira científica na Europa, em 1819 Bonifácio retorna ao Brasil, começando entre 1820/21 (enfim!) sua atuação política, que teve a culminância em 1822. Mas esta é a parte política conhecida “dos bancos escolares”. Porém, com matemática elementar tiramos uma importante conclusão que poucos levam em conta: se somarmos os 20 anos iniciais de Bonifácio no Brasil antes de ir para a Europa aos 19 anos que viveu após a sua chegada, teremos um total de 39 anos vivendo em nossas terras. Ou seja, passou pouco menos da metade de sua vida fora do Brasil, ocupado com sua carreira acadêmica.

E, também quanto a sua vida política no Brasil: de 1820 até sua morte decorrem-se menos de 18 anos. Comparando-se com a sua atuação pública e acadêmica em Portugal vimos que foram 36 anos! Ou seja, o dobro do tempo como acadêmico do que atuando politicamente. Assim, verifica-se como foi muito mais presente em sua vida a Ciência do que a política nacional, ao contrário do que pensam muitos de nós.

Claro que o atual GOB – Grande Oriente do Brasil e a Maçonaria brasileira em geral, assim como a nossa Independência política, foram diretamente influenciados pela participação de Bonifácio. Mas isso já é deveras conhecido...

O importante a ser deixado aqui registrado é sua participação científica na história do Brasil, e não apenas a participação política e todo o encaminhamento histórico já bastante estudado, mesmo que não totalmente compreendido. Há que se compreender que os eventos nacionais durante o século XIX não ocorreram de repente, ao acaso. O Mestre Domingos Vandelli iniciou Bonifácio e tantos outros nas duas Fraternidades, maçônica e carbonária, sendo que antes mesmo de fundar o que hoje é o GOB, aproximadamente um mês antes, fundou no RJ o Apostolado, fraternidade de cunho carbonário da qual também fazia parte D. Pedro I. Assim, fica claro que o aprendizado de Bonifácio em Portugal e em suas viagens pelas principais cortes ilustradas da Europa durante 10 anos (fato incomum naqueles tempos e mesmo hoje) haviam “plantado” em seu interior a chama de novos ares para Portugal, para as ciências e para sua saudosa terra brasileira.

Concluindo, as nossas ciências muito se beneficiaram de mentes como a de José Bonifácio e, antes, com a transferência da corte lusa para as terras cariocas em 1808 levou à formação de importantes instituições científicas em nosso carente país, tais como: a Academia Naval do Rio de Janeiro e a Escola Cirúrgica de Salvador (1808), a Academia Militar do Rio de Janeiro (1810), a Academia Médico Cirúrgica do Rio de Janeiro (1813), o Jardim Botânico (1818), e o Museu Imperial (1818). Também, mesmo não sendo instituições da ciência, temos a Imprensa Régia (1808) e o Banco do Brasil (1808), que depois teve sua história interrompida e retomada. Depois da proclamação da Independência brasileira ainda teremos o Observatório Imperial Astronômico (1827), a Sociedade de Medicina (1829), o IHGB (1838), que são alguns dos marcos das ciências no primeiro Império.

D. Pedro II era fervoroso adepto das ciências naturais (e o mesmo Alexandre Antonio Vandelli foi seu Mestre de Ciências Naturais), porém, não se verificou no Brasil séria implementação de instituições de ensino e científicas no segundo Império. Mas aí já é outra história...

Adílio Jorge Marques
Drndo. em História das Ciências - UFRJ

Algumas obras científicas de José Bonifácio (por ano de publicação):

Sobre as minas de carvão-de-pedra em Portugal, publicado no Patriota, Rio de Janeiro, 1813.

Há terrenos que pelo arado não dão fruto, mas sendo cavados com o picão sustentam mais do que se fossem férteis, memória, publicada no Patriota, Rio de Janeiro, 1813.

Experiências químicas sobre a quina do Rio de Janeiro, comparada com outras, 1814.

Memória minerográfica da serra que decorre de Santa Justa até Santa Comba e suas vizinhanças na província do Minho, Museu Paulista, Coleção José Bonifácio, Doc. 290, 1814-1815.

Sobre a necessidade e utilidade do plantio de novos bosques em Portugal, particularmente de pinhais nos areais de beira-mar; seu método de sementeira, custeamento e administração, 1815.

Memória sobre a nova mina de ouro da outra banda do Tejo, chamada Príncipe Regente, 1817.

Memória sobre as pesquisas e lavra dos veios de chumbo de Chacim, Souto, Ventozello, e Villar de Rey na província de Trás-os-Montes, 1818.

História da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o ano de 1818, discurso histórico recitado na sessão de 24 de junho de 1818.

Memória econômica e metalúrgica, sobre a fábrica de ferro em Sorocaba, 1820.

Memória minerográfica sobre o distrito metalífero entre os rios Alva e Zêzere, Museu Paulista, Coleção José Bonifácio, Doc. 291., s/d.

Notas

(1) Forma de sistematizar o conhecimento, classificar e catalogar o que não se sabia, apreendendo o universo com a razão, marcante nas ciências desde o século XVIII.

(2) Acadêmico aqui considerado o tempo vivendo na Academia, ou seja, na Universidade de Coimbra e atuando tanto na viagem filosófica pela Europa e também depois trabalhando ativamente em Portugal em vários cargos científicos.

(3) Carioca: palavra oriunda do tupi-guarani (kari ' oca) e que significa etimologicamente "casa de branco": kari: branca; oca: casa. Palavra para o gentílico (adjetivo que designa povo ou nação) dos habitantes ou nascidos no município do Rio de Janeiro (RJ/Brasil).

 

Prof. Adílio Jorge Marques. Nasceu em 1968 no Rio de Janeiro/RJ, sendo de família lusa. Possui cidadania portuguesa. Desde muito jovem é estudioso e participante das Antigas Tradições, da História e das Ciências.

Concluiu o Doutorado em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, após realizar intercâmbio na Universidade de Aveiro, Portugal, sendo o trabalho com ênfase na historicidade luso-brasileira. 

O tema da Tese na UFRJ versa sobre a vida e a obra do naturalista Alexandre Antonio Vandelli, personagem pouco estudado e filho do famoso paduano Domingos A. Vandelli da Reforma Pombalina.  

Possui Mestrado em Astrofísica estelar pelo Observatório Nacional (Brasil/RJ), com graduação em Física e em História. Atua como Professor de História da Ciência e de Física no Brasil. 

Email de contato: adiliojm@yahoo.com.br