PORTUGAL
21. VISÕES CIBERESPACIAIS

O medo da fragmentação, e da separação, é seguramente o fantasma maior da modernidade, porque a lei da vida faz com que nos fiquem só fragmentos, episódios descontínuos meio contaminados pelo esquecimento. Tal como sugere Kendrick "as visões ciberespaciais de eus sem corpo, de uma radical indemarcação de identidades situadas, apropriam a retórica da libertação do eu em relação ao corpo, incrementando uma noção idealizada de uma identidade fluida e indiferenciada."

Mas toda a vida não passa de soma de fragmentos, a continuidade é uma ilusão, a nossa memória alementa-se de restos, de acontecimentos geralmente ignorados pelos outros, mas que são para nós, traços vivos. O trabalho dos artistas é, em grande parte, redimir a memória, mesmo quando, como Botho Strauss, preferem seguir a ideia mestra, bebida na neurologia, na cibernética e sobretudo na teoria do steady state, oposta à do big bang, de que não começo. Se não há começo também não há causalidade linear, nem narração linear. Contra a linha, o autor defende e advoga a mancha. Há motivos que justificam quem vê nesta revolução nas concepções tradicionais do pensamento algo de semalhante àquilo que o Renascimento representa no pensamento ocidental. Aceitando a ideia da desordem natural em vez da mitologia fáustica da ordem e do progresso, o percurso do homem tornou-se outro. O texto tornou-se um "espelho turbulento". O ciberespaço - alucinação consensual da década de 90 - prova-o perfeitamente. As palavras são impressas no écran; a partir do meu écran para o écran do outro e vice-versa. O tempo e o espaço parecem não existir. Podemos estimular directamente os sistemas nervosos centrais uns dos outros de país para país, de continente para continente. A entrada das novas tecnologias no espaço do texto desestabilizou por completo as suas fronteiras, ameaçando a sua lienaridade. A desordem textual que a retórica estudava era ainda uma desordem controlada. O mundo do hipertexto permite-nos ver o texto como um fenómeno complexo, auto-organizado, aproximando-se da não linearidade dos fenómenos naturais. Nem a noção de meta-estabilidade, em que as figuras não têm uma configuração ou um sentido estáveis mas se apresentam oscilantes, nos faz sair da casa prisão da linguagem ou da lógica do aut/aut/, ou/ou. A injunção do hipertexto pressupõe uma nova teoria crítica e uma nova prática: e/e/e.

A descentralização da noção do eu como fonte autorial faz parte integrante da nova dinâmica. "O que nos faz abandonar o hipertexto não é a certeza de ter esgotado todos os seus aspectos, mas sim a de ter satisfeito ou esgotado algo em nós" . Neste contexto, como noutros, é quase crível que as obras forjadas sejam tantas como as genuinas. O mundo artístico em que vivemos hoje é um mundo novo de arte forjada, totalmente isento de escrúpulos. A poética do hipertexto teve de remover a autoridade repressiva da tradição bem como a noção de "princípio": porquê?


>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>Em nome de quê?