PORTUGAL
14. AUTORIDADE/AUTOR

A palavra "autor" deriva do latim auctor, que, por sua vez, deriva, através de uma cadeia linguística, de uma palavra que significa aumentar ou desenvolver. Auctor significa alguém que dá origem ou promove e não uma pessoa cuja palavra se tornou canónica. Autoridade e autor têm a mesma raíz e as práticas medievais davam-lhes um sentido idêntico. Os autores, em sentido medieval, são aqueles cujos textos têm autoridade, os que podem ser comentados, mas não contraditos. Isto não significa de forma alguma uma prática de leitura submissa, muito pelo contrário. Assim, na Summa de Tomás de Aquino, os autores são invocados para testemunhar acerca de determinada questão sob forma de citações abstraídas do contexto. O jogo e a aposta é pô-los de acordo, levando em conta, na maior parte das vezes, a letra da citação, sem discutir o sentido que o autor lhe atribuía. Por outras palavras, o autor tem autoridade, mas S. Tomás institui-se juíz e trata o autor-autoridade em termos de testemunha chamada a depor: ele tem de partir do princípio que a testemunha disse a verdade e o seu juízo deverá ter em conta esse testemunho, mas é ele quem decide activamente de que maneira esse testemunho será tomado em conta. O propósito é estabilizar, harmonizar a história, pondo de acordo os autores - filósofos pagãos, doutores cristãos e Autor divino da Revelação . Na linguagem contemporânea, um "autor" é um indivíduo que é o único responsável - e, como tal, exclusivamente digno de crédito - pela produção de uma obra única e original .

A autoridade é um fenómeno comunicacional e plural, no sentido intersubjectivo e social. Pode dizer-se que há dois tipos principais de autoridade. Chamemos ao primeiro tipo reflexivo; este tipo favorece a proliferação de desvios, está sujeito a toda a espécie de acidentes de leitura. Entre o autor que faz a autoridade e as leituras de que é objecto nasce uma espécie de comunicação de natureza dialógica, um espaço de reciprocidade e de complementaridade. A autoridade reflexiva é uma autoridade aberta ao risco da leitura. A força deste tipo de autoridade é a sua ausência de poder, a sua fraqueza assumida. Chamemos à autoridade de segundo tipo tética por ser determinada pela lógica do verdadeiro e do falso e pela intolerância perante o perigo da alteração. K. Geldof permite tipificá-la desta maneira: "A autoridade tética subordina de facto e de jure a problemática da leitura à da verdade e da reprodução da verdade, considerada muito mais essencial" .

A autoridade de um autor implica, pois, uma dinâmica de abertura (a proliferação dos meta-discursos) e uma clausura (a tendência para disciplinar a leitura, fazendo-a obedecer a determinadas normas de legibilidade). T. Todorov, que divulgou no Ocidente a obra de Mikhail Bachtin, o teórico da autoridade polifónica, a propósito da crítica, falará da crítica autoritária e da crítica dialógica, que se abstém de fazer juízos: "o crítico 'imanente' não se permite qualquer possibilidade de julgar, explicita o sentido das obras, mas, até certo ponto, não o toma a sério: não reage, procede como se não se tratasse de ideias sobre o destino dos homens; é que ele transformou o texto num objecto que basta descrever tão fielmente quanto possível...o crítico 'dogmático', esse, não deixa verdadeiramente que o outro se exprima: engloba-o totalmente, na medida em que encarna a providência ou as leis da história, ou outra verdade revelada; não passa de exemplificação de qualquer dessas coisas (ou da sua contra-exemplificação), constituída em dogma inabalável, que se pressupõe que o leitor consigo partilha" . A concepção de Bachtin de polifonia/multivocalidade tem muita relevância para o hipertexto. Na rede, as ideias não coalescem necessariamente numa dialéctica de evolução linear; o conflito desempenha papel importante no processo de ligação. Parece adequado justapor conceitos dissimilares numa rede que envolve Bachtin. O projecto procura configurar muitas das ideias neles contidas; consiste numa série de vozes individuais em conversa interminável, unidas por uma rede de variedade e relação. O âmbito da rede é um tanto ou quanto limitador; as teorias de Bachtin são complexas e podem parecer demasiado simplificadas. Adam Zucher tentou dar aos fundamentos de Problemas da Poética de Dostoievski novos sentido. Desenvolveu o conceito de multivocalidade baseado na personagem de forma a incluir a voz e o eu autoriais; o medium, a rede torna-se o enredo. O projecto traz a obra de Bachtin a um enquadramento moderno que, isoladamente, parece um tanto ou quanto ultrapassado .

O hipertexto muda a forma do controlo, mudando ao mesmo tempo a sua natureza. Cito Alan Purves que escreve a este propósito: "The writers control the text; the text controls the readers; the readers control the text and writers; convention controls the writers and the reader through the text; writers and readers can invent and play with convention and the text. The whole is na apparent anarchy" . O hipertexto é uma prática cultural e não apenas uma prática tecnológica, o que quer dizer que se inscreve num determinado campo de forças e de sentido, como qualquer prática, afinal. O poeta é, etimologicamente, um fabricante. A história da linguagem fez derivar o termo, mas dramatizou também uma das implicações da arte da fabricação: a dimensão de criação refere-se, afinal a si própria e não tem contas a prestar senão a si própria. O poeta é então aquele que se dá a liberdade e que corre o risco de inventar, de fazer existir aquilo de que fala. Mas este estatuto de excepção não o liberta dos constrangimentos tecnico-formais do poema que ele deve saber manejar com destreza. As práticas culturais não são nem espontâneas nem infinitamente ricas, obedecem a determinadas regras, ou antes, auma determinada regularidade que é já ela mesma cristalização de um comjunto hierárquico de relações e de estruturas sociais . Não há, portanto borboletas sobrevoando o ciberespaço do espaço do texto com uma liberdade álacre e sem fronteiras. A prática hipertextual envolve um meio termo entre a teoria e a praxis, certamente mais próxima de uma lógica de um pensamento de possibilidade do que da lógica da verdade e da verificação. Mas envolve igualmente uma instância de juízo, um juíz. Que é que se julga? Em sentido mais lato é alguém que fala e age em nome de. Em nome do código, evidentemente, quando se trata de justiça; mas não se trata unicamente de justiça. O juíz existe a partir do momento em que aquilo em nome de que fala e age o autoriza a determinar o que, numa situação concreta é significativo, deve ser tomado em consideração, e o que é secundário, mero roído de fundo do qual se pode "abstrair", eliminando-o afectiva ou intelectualmente. O juíz é quem sabe a priori as categorias segundo as quais convém interrogar e compreender aquilo que tem em mãos. Submeter um fenómeo à experimentação é pô-lo em cena, "recriá-lo" e poder levar a admitir que esta recriação não passa de "purificação", limitando-se a eliminar os "efeitos secundários", de maneira a tornar o fenómeno susceptível de exprimir a sua verdade. O criador hipertextual "fabrica" uma realidade que não existe enquanto tal no mundo, mas que é sobretudo da ordem da ficção. Consideremos agora a justiça poética. Sem essa espécie de justiça poética produzem-se juízos mecânicos. O modelo do "espectador judicioso" encontrar-se-á no leitor de romances. Entra com empatia na vida dos outros e é judicioso em virtude da ausência do interesse pessoal que caracteriza a nossa atitude perante acontecimentos que directamente ocorrem nas nossas vidas. Nussbaum, que afirma a necessidade de um "espectador judicioso", afirma também que ser juíz ou jurado requer as mesmas qualidades. Ser juíz ou jurado é como ser poeta - porque o poeta olha as pessoas na sua individualidade, em vez de as registar como meras unidades de cálculo. Platão considerava que a ficção literária era positivamente perigosa. Excluía-a da República por ser falsa e por despertar emoções que ele considerava atentatórias da razão. Nussbaum dá razão a Platão na medida em que ele se apercebe dos perigos inerentes à ficção - mas assinala aquilo em que verdadeiramente consiste o perigo. A literatura e as emoções podem guiar a razão naquelas regiões que são mais importantes para os seres humanos, mesmo se não sabemos se a leitura de romances torna realmente as pessoas mais humanas .