PARA UMA LEITURA PLURIDIMENSIONAL DA PASTORELA DE
JOÃO AIRAS DE SANTIAGO

Publicação original na Brotéria, 114 (3), 1982
Agradecemos ao director da revista a autorização para reeditar o texto.
João Airas de Santiago - Pastorela


O leitor do século XX terá de enfrentar uma infinidade de problemáticas suscitadas pela leitura de uma pastorela medieval galego-portuguesa e da lírica trovadoresca. Referimo-nos apenas a alguns problemas de teoria e de conteúdo.

A pastorela define-se, por vezes, como confluência dos géneros narrativo-lírico e narrativo-dramático, por apresentar interligação dos modelos da pastorela provençal, predominantemente dramática, e da galego-portuguesa, essencialmente lírica, acrescida da presença de elementos narrativos.

Um problema teórico importante, relativo ao género lírico e dramático, é a presença ou ausência de mimese. Aristóteles inclui apenas a épica e o drama na teorização da mimese (1). K. Hamburger (2) nota que a obra ficcional é essencialmente mimética, permanece dentro de si própria, não se refere ao autor e possui uma «estrutura simbólica fechada em si» (3). A mesma autora afirma que a ausência de mimese da realidade, na lírica, define-a como «estrutura simbólica aberta», referindo-se ao sujeito de enunciação, ao eu-lírico (4) . Assim, ao tentar discernir o género de uma pastorela, que poderá ser predominantemente lírico, terá de verificar-se simultaneamente a presença do eu-lirico, expresso de forma pessoal ou não, e a ausência de mimese.

A leitura sociológica da pastorela é sempre possível, mas não redutora, porque, se a poesia trovadoresca se inseriu num contexto social determinado, e nela podemos detectar a presença de códigos sociais, inseriu-se também numa tradição espiritual, exegética e/ou poética e/ou vivencial onde confluem a tradição céltica, a herança da poesia médio-latina, a influência provençal e a tónica espiritual da cultura galega dos séculos XI e XII.

A tradição espiritual que acabamos de referir justifica a presença do símbolo na poesia galego-portuguesa, como em vastas áreas da literatura medieval (5) .Símbolo como «sinal natural», como realidade conhecida que leva ao conhecimento de outra desconhecida ou menos conhecida» (6) e que, não excluindo a interpretação naturalistica de um espaço poético, suscita uma interpretação simbólica (7), porque a realidade desconhecida do símbolo exprime vivências espirituais das relações do homem com o cósmico e o divino. O leitor moderno terá de se despojar de uma concepção de símbolo como «processo de abstracção» (8), ou da sobrevalorização da componente abstracta do símbolo, para tentar integrar-se no universo medieval e/ou galego-português, profundamente marcado pelo concretismo simbólico, distanciado do leitor pelo espaço-tempo de oito séculos. A leitura simbólica é complexa, suscita algumas reservas e deve ser feita quando o próprio texto e contexto a determinar.

A hermenêutica emerge do próprio texto. O leitor deverá conciliar a sua escolha de instrumentos de análise com a especificidade do texto que deixa emergir pistas de interpretação. Conciliar um trabalho crítico racional, e de selecção de instrumentos de análise, com uma atitude de abertura ao texto. Estar sempre atento e evitar a sua projecção no texto ou a excessiva projecção do texto na sua leitura. Trata-se de um esforço de constante discernimento.

A leitura seguidamente apresentada da pastorela de João Airas de Santiago insere-se num itinerário pessoal e constante de tentativa hermenêutica do texto literário, apoiado em alguns contributos da história literária medieval, da crítica aplicada e aplicável à leitura de textos galego-portugueses, da teoria dos géneros literários e do simbólico na criação literária. Tentámos discernir várías dimensões de leitura, respeitando a «estrutura simbólica aberta» (9) do próprio texto. Outras leituras seriam possíveis. Como se trata de dimensões e não de círculos concêntricos de leitura, a unidade poderá encontrar-se dentro de cada dimensão, não obrigatoríamente na sua interligação, senão deixariam de ser perspectivas diferentes de leitura.

A pastorela compostelana, criada pelo clérigo Airas Nunes de Santiago, no reinado de Afonso IX de Galiza e Leão, está profundamente vinculada à tradição das cantigas de amigo galego-portuguesas e inclui, no seu modelo, a própria cantiga de amigo, cantada pela pastora. Diferentemente da pastorela ultra-pirenaica, que apresenta diálogo entre o cavaleiro e a jovem pastora, a pastorela compostelana reduz o encontro a uma proposta amorosa do cavaleiro, que é ou não aceite pela pastora.

João Airas renovou a pastorela compostelana com elementos provençais, no célebre poema "Pelo souto de Crexente". Introduziu a alba (10) nas duas primeiras estrofes e o diálogo nas duas últimas. O tom de recato e de submissão do cavaleiro que é o primeiro interlocutor podería contribuir para que este poema fosse incluído entre as cantigas de amor, de acordo com a doutrina da Arte de Trovar do Concioneiro B. O código social da reputação da pastora tem implícito um dos aspectos mais relevantes da pastorela provençal, que é o confronto de classes concretizado no debate entre a pastora e o cavaleiro, com vantagem moral para a pastora.
Além da interligação dos modelos provençal e compostelano, é notória a confluência dos géneros dramático e lírico, com predominância quase redutora do género lírico, assim como a presença da narrativa. O poema suscitou-nos gradativamente a análise dos elementos narrativos, uma leitura dramática (11) e uma leitura do universal lírico, concentrada na poética do espaço e na simbólica.

I. Anállse dos elementos narrativos
O narrador refere-se a um acontecimento passado do qual foi testemunha. O ponto de visto é o do eu-narrador de hoje que adquiriu o conhecimento do facto passado através da sua experiência visual de ontem: «Ua pastor vi andar, v. 2).

O narrador é também actor da narrativa, manifestando os limites e a probalidade do seu conhecimento da realidade circundante («não sei tal qu'i stevesse / que en al cuidar podesse / senon todo en amor, vv. 12-14), contemplando a beleza da jovem (ali! stivi mui quedo, v. 15), hesitando em abordá-la (Não ousei, v. 16; empero dix'a gran medo), apesar da sua vontade de ser amigo dela (quis falar, v. 16). A dialéctica passivo-activa do comportamento do eu-narrador bifurca a sintaxe narrativa da pastora (12).

Os tempos verbais não exprimem uma comunicação real entre as personagens. Se, no primeiro segmento narrativo (as duas primeiras estrofes), predomina o imperfeito-narrativo-descritivo do passado, na fala das duas personagens predomina o futuro hipotético («se mi ascuitardes», v .19) , o futuro intencional «falar-vos-ei». v .17, «aqui non starei», v .12), o futuro eventual «quando mandardes», v. 20, «os que aqui chegaram, v. 26; «vos aqui acharem, v. 27). O único tempo presente é o imperativo, que exprime a rejeição da proposta amorosa, pela pastora, em dois versos seguidos «non estedes mais aqui, / mas ide-vos vossa via», vv. 23-24). Além da rejeição há um pedido formulado pela jovem no futuro exortativo («faredes mesura i»). A possibilidade de comunicação verbal durativa, no presente, é desviada e não chega verdadeiramente a realizar-se.

A unidade da narrativa é conferida pela consciência do eu-narrador, identificado com o eu-lírico, unificador e unificante.

2. Uma leitura dramática
O texto poderia dividir-se em dois actos que correspondem aos dois segmentos narrativos :

.I acto - estrofes 1 e 2: uma jovem pastora, única personagem, aparece ao longe, a cantar, ao romper da aurora, nas margens do rio Sar, perto de Santiago. As aves cantam de amor, nas árvores que estavam perto do rio e da personagem.

.II acto - estrofes 3 e 4: o narrador, depois de ter mantido a distância da personagem, dirige-lhe, a medo, algumas palavras, prometendo que se retira quando ela «mandar». A pastora pede-lhe que siga o seu caminho, receando que alguém possa vir a comentar, inventando, algo sobre esse encontro.

O esquematismo desta leitura pressupõe o carácter relativamente simétrico da estrutura dramática. No entanto, a mimese das palavras, própria do género dramático, é desviada, porque o diálogo, apesar de preencher um terço do poema - onze dos vinte oito versos -, é interrompido. Assim o género dramático parece dar lugar à experiência vivencial englobante do eu-lírico.

3. Poética do espaço-tempo-personagens
No universo lírico do poema, a poética do espaço está unida à poetica do tempo da madrugada, tempo de renovação ciclica e iluminadora.

O souto, ou bosque de castanheiros, espaço sombrio e misterioso, sugere o distanciamento da pastora (13) que cumula a distância, criando novo espaço de beleza do seu canto («alçando voz a cantar», v. 4) e do seu gosto («apertando-se na saia», v .5). Existe uma alternância espaço cósmico-céu (implícito), raios do sol «raia do sol», «l'alvor»), espaço circundante e envolvente da personagem feminina «pelo souto»), das personagens imaginárias, preocupadas com o amor «não sei que tal i'stevesse / que en al cuidar podesse / senon todo en amor», vv. 12-14) e do próprio narrador convertido em personagem («ali estivi eu», v. 15). O distanciamento do narrador da personagem feminina («muit' alongada da gente», v. 3) é acidentalmente atenuado pelas palavras que redundam no espaço do silêncio.

A harmonia espaço-tempo circundantes e emergentes de personagens portadoras e criadoras de sentimentos, de breves palavras e de silêncio, pressupõem e acentuam a comunhão do eu-lírico com o cosmos, a contemplação da beleza, do amor universal e da beleza da mulher. Os locativos «aqui» (v. 21), «ali» (v. 15), «i» (v. 12), a referência ao souto e às «ribas do Sar» não parecem definir um espaço real ou mimético, mas um espaço poético, onde existe um centro de irradiação luminosa, um local de permanência e de passagem do eu-lírico contemplativo, quiçá visionário.


4. Uma leitura sImbólica
O espaço da visão, assim como a circunstância focada, são vistos e filtrados pelo narrador, são simbolizados (14) - o que permite uma leitura marcada pela intersubjectividade autor-leitor .

O espaço da alba (15) de João Airas está impregnado de símbolos que se acumulam na primeira estrofe, como uma concentrada energia poética - bosque «souto», v. 1), canto «alçando voz a cantar», v. 4) , raios ( «raia», v. 6) , «sol» (v. 7) , margens («ribas». v .7) , rio («Sar», v .7) -decrescendo em quantidade na segunda estrofe - «aves» (v. 8), «alvor» (v. 9), canto «todas de amor cantavam», v. 10), «ramos» (v. 11). A interpretação dos símbolos, pela ordem em que aparecem no texto, procura acompanhar o percurso do autor .

O autor vê a pastora solitária, afastada dos homens («muit' alongada da gente», v , 3) , num bosque de castanheiros. A sacralidade do bosque, como morada misteriosa do divino está associada à sacralidade da floresta que, na tradição céltica, à qual se vincula a cultura galega, representava um santuário; na natureza, o bosque é também simbolo de concentração de vida, renovação e contemplação.

Nesse lugar ameno, está presente a água, simbolo de fecundidade, o rio, simbolo do devir da existência humana e as margens do rio. As margens (16) indicam a existência de dois domínios diferentes, que separam a pastora do autor.

A pastora vive da contemplação, do canto e do «andar» no bosque, longe «da gente». O texto não explicita visualmente as duas margens, nem a localização exacta da pastora em relação ao autor.. Sabe-se apenas que o autor esteve presente («ali 'stivi eu», v, 15) e que tentou dirigir-lhe a palavra; por isso, apesar da interpretação simbólica das margens não parecer incoerente, porque todo o poema vive de separação virtual e real, apresentamos contudo as nossas reservas à mesma interpretação, pela falta de explicitação do local em que ambas se encontram, em relação às margens.

O canto, arte da preferência da cultura galega e elemento relevante das cantigas de amigo, cria, neste poema, um espaço sonoro englobante - canto da jovem e canto amoroso das aves, Trata-se também dum simbolo universal de vibração harmonizante e profunda das criaturas com o criador.

As aves, não especificadas no texto, simbolizam estados de alegria e comunicação espiritual. O voo exprime não apenas beleza, mas a procura de harmonia interior. Os ramos acrescentam, à simbólica implícita da árvore, a vitória, o triunfo da vida e do amor. O tempo cíclico da madrugada simboliza a pureza da luz, o tempo paradisiaco da «simprez inocência» (17).

Todos os símbolos do poema parecem convergir na harmonia do humano com o cósmico, na sintonia de vibração de vida. A visão da mulher, da Beleza, da luz, do amor é dada no ponto do instante contemplativo em que a pastora e o autor se deixam impregnar de reservas de energia amorosa e luminosa, no silêncio. Depois da experiência contemplativa, o autor é convidado a seguir o seu caminho.

Esta breve análise procura demonstrar, sobretudo, que uma pastorela medieval se presta a vários niveis de leitura, harmonizando a leitura aberta com a abertura do próprio eu-lirico do poema que lhe confere unidade no plano narrativo, que converte os elementos dramáticos à lirica. Em cada uma das leituras se tentou discernir idêntica capacidade unificante e unificadora do eu-lirico, capacidade que é essencialmente contemplativa.

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(1) Aristote. Poétique, Les Belles Lettres. Paris.
(2) K. Hamburger, «Do Problema do Simbólico da Criação Literária» in A Lógica de Criação Literária.
(3) Ibid., pp. 254-256.
(4) Ibid., p. 256.
(5) Mário Martins, Alegorias e Símbolos na Literatura Medieval Portuguesa. Brotéria, Lisboa, 1972; Estudos de Cultura Medieval, Verbo, Lisboa, 1009.
(6) Manuel Antunes. História da Cultura Clássica, policopiada, 1961-62, p. 39. (7) Vide interpretação simbólica do cervo e da fonte, na edição crítica de Fero Meogo, da autoria de Ferrin.
(8) Helder de Macedo, «Uma Cantiga de D. Dinis. In Stephen Reckert e Helder de Macedo, Do Cancioneiro de Amigo, Assirio e Alvim, Lisboa. p. 52.
(9) Designação de K. Hamburger. op. cit., p. 256.
(10) A terminologia alba, de origem provençal, designa as cantigas de amigo cujo percurso narrativo se situa no tempo da madrugada. A sua génese é difícil de determinar. Segundo Rodrigues Lapa, a alba terá tido uma origem «profundamente ritual, litúrgica, pela sua forma, o próprio misterioso do seu sentido. a sua filtração através do Cristianismo que a purificou. Cfr. Prado Coelho. Dicionário de Literatura, vol. I.
(11) L. S. Picchio in A Lição do Texto I, Edições 70, Lisboa, 1979, também faz leituras dramáticas de pastorelas. Consiste em tentar discernir, na pastorela, uma estrutura que se aproxima de uma peça de teatro.
(12) Cfr. S. Reckert, "Cinquenta Cantigas de Amigo", in S. Reckert e Helder de Macedo, Do Cancioneiro de Amigo, p. 177.
(13) A juventude da "pastora" é um elemento da cantiga de amigo, mas não é um elemento especifico da pastorela. Por outro lado, "pastor", feminino, no inicio das pastorelas, tinha possivelmente o significado de «moça», «jovem». Cfr. L. S. Picchio, op. cito, p. 48, nota 27.
(14) Cfr. distinção entre significação e simbolização. in J. Prado Coelho. Problemática da Leitura, INIC. Lisboa. 1980, p. 30.
(15) Duas primeira estrofes da pastorela.
(16) J. Chevalier e A. Gheerbrandt, Dictionnaire des Symboles. vol. II. Seghers, Paris, p. 331.
(17) Camões, Os Lusíadas. IV, 98, 6.