A BORDO DO FIORE

No convés do paquete no qual viajava com regularidade nos cruzeiros que consagrava ao Mediterrâneo e às Caraíbas, Dina passeava ondulando o seu corpo sem uma direcção definida. Herdara uma fortuna inesperada de vários antepassados seus que não tinham herdeiros directos. Não sabia frequentar muitos espaços que alternassem com os paquetes de luxo. Procurava a todo o custo esquecer-se que o seu avô tinha sido pescador e esse exercício de anti-memória esvaziava as suas resistências às surpresas do quotidiano, optando pelos espaços dos paquetes a bordo. Era difícil aceder ao vazio da sua memória e às cascatas do seu parasitismo. O eco que recebia vinha em particular da sua amiga Dasy que se aproximava dela, no convés do Fiore, naquela tarde de verão já sem esperança de ar fresco ou brisa que atenuasse a vida e a viagem.

Dasy deixava sobressair a sua silhueta de carcaça de bailarina viajante a todos o que poderiam sonhar que ela estivera em palco, algumas décadas atrás. Só ela é que conhecia todos os bailarinos e todos os coreógrafos mundiais e sobretudo só ela é que sabia tudo e tinha sempre razão.

Os pais de Dasy tinham emigrado do Sul de Itália para a Alemanha onde conseguiram tornar-se negociantes em cinco anos e acrescentar uma fortuna em marcos à que já possuíam em liras.

Era o estatuto da moeda e do saber narcísico em excesso que moldavam o comportamento de Dasy. Conseguia que todos se comportassem como ela determinava. Quem queria ser inteligente, cultivar a estupidez ou ficar sem colesterol podia recorrer às suas artes. Todos os que gostavam de a imitar sentiam-se confortados. Conseguia que os incautos se instalassem no estatuto da proa hirta e ondulante que infalivelmente domina os fracos. Sabia de cor como angariar amizades consoante as suas conveniências.

Quando uma pessoa já tinha esgotado todos os modos de a ajudar, porque ela mudava com frequência de país e precisava sempre de ajuda, Dasy afastava-se para ir conquistar outros que lhe servissem para a próxima etapa. Todavia o seu inegável amor à beleza e o cumprimento semanal das festas de caridade temperavam o vazio dos seus passeios solitários e o tédio da sua permanência em cruzeiros.

No convés do Fiore, Dina e Dasy combinavam encontros próximos que as demarcasse do espaço saturado dos paquetes.

- Sabes, Dina, ainda tenho esperança de voltar a encontrar uma antiga aluna que me ajude a encontrar uma sala com espelhos quando eu me fixar num país que vou escolher e onde já tenha trabalhado. Tenho de tomar uma decisão. Não posso ser viajante de cruzeiros toda a vida.

- Compreendo, Dasy, mas não vai ser fácil. Tens alguma preferência?

- Gosto de todos os países e todas as culturas, mas estou mais à vontade nos países menos evoluídos.

- Por quê, Dasy?

- Porque não gasto tanto tempo a cozinhar o meu charme.

- Então procuras um país onde tenhas menos trabalho para conseguires quem te ajude?

- Penso que sim. Já viajei muito e sei como é arriscado estar a mudar tantas vezes de país. No fundo, não tenho verdadeiras raízes.

- Então por que não regressas à tua terra natal, Dasy? A tua família veio da Normandia para a Sicília e até tens um nome inglês. Não podias ser mais internacional. Depois os teus pais emigraram para a Alemanha.

- Por isso mesmo, sinto que quase não tenho raízes. E à medida que a vida vai avançando, sinto que não gostaria de morrer longe do meu país. Todas as noites me lembro de Palermo e faço muito esforço para não chorar.

E Dasy continuou a hesitar, sem saber que país escolher. O comandante do Fiore também hesitava entre ir para Malta ou Tenerife. Dina persistia na sua ginástica de anti-memória. Arrepiava-se de frio outonal quando se lembrava que o seu avô tinha sido pescador. O excesso de mimo e de protecção criaram-lhe uma visceral alergia ao gingerale, não sabia que companheiro escolher e foi mudando de filosofia como quem muda de camisa. Quando alcançava um objectivo, nele enraizava a dúvida pouco metódica, numa encruzilhada de carreiros de formigas cujas direcções não conseguia controlar.

A bordo do Fiore, instalava-se o tédio e o pânico. O comandante pedia uma reunião com os passageiros para ver se mantinham ou não a rota prevista. Marcos, liras e francos rolavam nas mesas, estantes e bancos dos escritórios próximos do convés, além dos que estavam registados em milhares de cheques. Eram tantos os rios de dinheiro que o Fiore poderia aportar onde os passageiros, por maioria ou unanimidade decidissem, desde que não houvesse colisão com o tráfego marítimo previsto para aquele estio quase eterno. E todos ficavam parados e perplexos sem saber que rota lhes seria mais conveniente.

- Por favor, já não é a primeira vez que os senhores passageiros hesitam em manter a rota. O que se passa outra vez no nosso paquete? - interrogava o comandante.

- Vamos todos pensar, dizia Dasy, já a meio caminho da sua escolha do país para o fim da vida

- Eu não queria passar perto do Algarve, murmurava Dina. Ai que arrepio no peito, que frio que não suporto. Como é possível, nesta tarde tão quente?

Dina não queria pensar em Lagos nem passar pela costa do Algarve. Era o berço onde o avô consertava as suas redes nos fins de dia, para se entregar de noite à rota certa da pesca e do pão.

O comandante aceitou a proposta de Dina e seguiu para Guadalupe, como estava previsto, depois de ter ouvido todos os passageiros com a maior paciência. Todos se atarefavam para enfrentar as piscinas e as praias para onde viajaram vezes sem fim, ao sabor do tempo.