PASCOAL D'ARTAGNAN AURIGEMMA

MÃOS

magras
desmazeladas      
negras                    
                                 
mãos                         
entregues à bolanha
ao pau de pilão

mãos
de canseira
abandonadas
na eterna lenga-lenga
do duro labor

 mãos
 de inferno
 condenadas
 fuliadas
 p’ra lá
 p’ra aquele espaço
 longe
 onde basbaco
 e canseira
 e pobreza
 formam sociedade

 mãos pendidas no vácuo
 mãos porcas
 ah! desprezadas mãos!

                    Pascoal d’Artagnan,
in Poilão, Caderno de Poesias
In: Aldónio Gomes & Fernanda Cavacas, 1997

CANÇÃO DE CRIANÇA

Vento forte
vento norte
lá vem a criança
na sua esp’rança.

Vento forte
vento norte
lá vem a criança
na sua pujança.

Da tabanca erguida
toda ela de vida
lá vem a criança
na sua embalança.

Lá vem a criança
na sua bonança
lá vem lá vem
saudar alguém.

Lá vem a criança
na sua esp’rança
lá vem a criança
na sua pujança.

Lá vem a criança
na sua bonança
lá vem lá vem
beijar a mãe.

Ilha das Galinhas, 1967

Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do Centro Cultural Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial Inquérito, 1990.
 

BALANTÃO

Careca de você
bem parece
coisa pelada.

Balantão
você é mesmo
ferro de gente.

Veja aquele olhar
cobiçando sua armação.

Não tema não
você é mesmo
ferro de gente.


no paraíso de sua morança
mocinha banga
espera você.

Quer dar você
tudo de seu.

Quer dar
seu corpo inteiro.

Balantão
não tema não.

 

Catió — Campo de aviação
Junho de 1 971

Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do Centro Cultural Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial Inquérito, 1990

PRATO DE FOME

Uma mesa triste onde talher e tudo falta
p’ra vingar fome

Mão de alguém-menino
cvrre como esqueleto numa tigela de fome.

Alguém-menino
saído dum ventre feliz de parir.

Vida de amor de alguém-menino
talvez sonhando um futuro risonho
como tantas outras vidas sonharam.

Alguém-menino — alma simples
contemplando a certeza da revolução.

Nem pilão pila
colonial vida de pilão vazio.

 

Bissau, Safim, 1973

Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do Centro Cultural Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial Inquérito, 1990

O CANTOR MISERÁVEL DA NOITE NO CAIS

Eu sou o cantor miserável da noite no cais.

Estão ali
no cais
ansumane beco, infamará, bicinte cabupar, malam seidi, djodge
badiu, batipom cá
estão ali
uma data de anónimos
da noite no cais.

Barco veio: de onde?

Mar salgado saberia contar a história
de um gigante de vapor
que rompeu seu segredo
da Europa para cá.

Estão ali
uma data de anónimos
da noite no cais.

Para quê
aquela gente?

Gente para carrego de sacos fartos
e tantas caixas de whisky and coca-cola and beer
que o mundo galã há-de consumir
em noites diferentes
das noites no cais.

Irmão
eu sou o cantor miserável da noite no cais.

Porque no cais
encontro águas ensaudadas e mansas beijando estacas rogadilhas de
ostras calcárias
de bagres e barbos
de bentanas e esquilões
que menino pescador de cana e linha vai ali pescar.

Porque no cais
encontro o tronco forte do homem qualquer
untado de calor quente rolando corpo abaixo
como gotas de lágrimas amargas
espoliadas dum gesto forte de sofrimento longo.

Porque no cais
encontro a menina penina que não sabe viver para a seriedade
onde mastigaria — gulosa e galantemente —
outro pão de menos veneno.

Porque no cais
encontro o velho camarada que um dia
— levado pelo mar da revolta — tomou rumo naquele vapor tamanhão.
Ali aprendeu ele a abocar bem o cachimbo da esperança
e a dar riso franco ao mundo sórdido.

Porque no cais
encontro o ar erguido altivo e pantomineiro daquele patrão-mór
de olhar agudo e desconfiado
e do interessante fulano de tal
que manobra lindo seu guindaste «made in england»

Porque no cais
encontro migalhados: bicinte cabupar, djodge badiu, ansumane beco,
infamará,
malam seidi, batipom cá
e mais uma data de anónimos da noite no cais.

Barco veio: de onde?

Não interessa saber irmão
não interessa.

Se cais não houvesse
gente anónima não tinha no cais.

Nunca
nunca gente poderia ouvir
a história que mar salgado deveria contar.


Bissau, Plubá
Março de 1975

Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do Centro Cultural Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial Inquérito, 1990

BILHETE POSTAL

Lela — meu irmão das outras terras —
daquelas ilhas
da dolente morna

     — manda-me a ressalva
         de tuas mantenhas.

Com o coração em mãos de bronze
com beijos em lábios calados
com canduras em olhares de luz

— Eu saúdo-te

Namorando a morabeza dos oceanos
fraternalmente somos África

Nem outra coisa

Bissau, bairro de Sintra-Nema Novembro de 1983
186
 

Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do Centro Cultural Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial Inquérito, 1990

VITÓRIA PÁTRIA

Porque napalm
estílhaçou infantes sorrisos
quebrou encantos
ruiu sentimentos.

Porque aglutinou amores
luzes de caminhos justos

Não vão as luzes amortalhar-se...

Porque napalm
entrou na tabanca sangrou sangue
fulminou aprumos
em homens cabeça pátria.

Porque dividiu plantéis
da abnegada raça

Não vão os sóis amortalhar-se...

Somos o destino intransigente
limiantes incólumes da poritada razão.

Partiram-se as algemas do imperial napalm.

Nem mais napalm.

Bissau, cais do Pindjiguity
1984
Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do Centro Cultural Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial Inquérito, 1990

O CANTAR MISERÁVEL DA NOITE NO CAIS

...BARCO VEIO: DE ONDE?
NÃO INTERESSA SABER IRMÃO
NÃO INTERESSA.
SE CAIS NÃO HOUVESSE
GENTE ANÓNIMA NÃO TINHA NO CAIS.
NUNCA
NUNCA GENTE PODERIA OUVIR
A HISTÓRIA QUE MAR SALGADO DEVERIA CONTAR.


(poema de Pascoal D’Artagnan Aurigemma – Guiné,
inscrito num banco do jardim de Belem)
In: http://fotociclista.blogspot.com/2008_06_01_archive.html

O CHAPINHAR DO TEMPO

Tempo para nascer
e tambén tempo para viver
e morrer

É preciso tempo
para crescer nas coisas sérias
nas coisas mescladas de harmonia
tempo para amar a miséria
e as lágrimas derramadas
nos púcaros sagrados da esperança

É preciso tempo
para ser aquilo que não nos deixam ser
e também tempo para vencernos
as fadigas e indômitas teimas
vazadas em catadupas

É preciso tempo
para se provar à humana criatura
a nossa valia o nosso fervor
na castiça mas chata caminhada
marca vida

É preciso tempo
para se repudiarem
ódio e inveja
arrogância e altivez
e também tempo
para nos identificarmos
com os labirintos crassos
emergidos da dor incompreendida

É preciso tempo
para incondicionalmente
aliarmos os redondeis
e valermos nas tempestades
como também nas honras e lisonjas

Como o chapinhar do tempo
nós seremos e sempre
a filosofia garante do tempo presente.

Bissau, 8 de Fevereiro de 1988

In: http://cbissau.blogspot.com/2008/06/divulgacin-i-pasoal-dartagnan-aurigemma.html

http://www.didinho.org/

http://senegambia.blogspot.com/