O TEMPO EM GEOLOGIA

No dia-a-dia, o tempo mede-se em horas, minutos e segundos nos mostradores dos nossos relógios de pulso. Na História, mede-se em anos, séculos e milénios, usando para tal pergaminhos e outros documentos com significado cronológico. Na Pré-história faz-se outro tanto com base em objectos vários e fala-se de milhares e, nalguns casos, de milhões de anos.

A escala do tempo dilata-se ao historiarmos o passado geológico e ainda mais se recuarmos aos começos da Terra e do Universo, onde os milhares de milhões de anos marcam as etapas percorridas com uma imprecisão que se esfuma nessa “eternidade”. No decurso das nossas vidas revemos sem dificuldade o nosso tempo, o dos avós e até o da História, mas é com esforço que abarcamos ou evocamos a vastidão do tempo geológico. Como na História, também a Geologia necessita de documentos e esses temo-los nas rochas, quer sejam os fósseis que algumas delas encerram, quer alguns dos minerais seus constituintes. Porque de uma história se trata, a Geologia tem no tempo um dos seus pilares e esse tempo é aí encarado sob duas perspectivas distintas: a de tempo relativo e a de tempo absoluto.

Na primeira, que diríamos qualitativa, procura-se saber se um dado evento ocorreu antes, depois ou em simultâneo com outro, isto é, se lhe foi anterior, posterior ou contemporâneo. É por demais conhecido e hoje evidente um princípio fundamental, formulado no século XVII, pelo dinamarquês Nicolau Steno, que postula: “numa sequência sedimentar, qualquer estrato é mais moderno do que o que lhe fica por baixo e mais antigo do que o que se lhe sobrepõe”. Tal ordenação no tempo das rochas estratificadas é a mesma que se observa na pilha de papéis na secretária de um burocrata. Quais marcos do tempo, também os fósseis, escalonados na cadeia evolutiva da biodiversidade, nos permitem uma ideia do tempo relativo. Assim, e graças ao muito trabalho dos paleontólogos, sabemos, por exemplo, que as rochas sedimentares com fósseis de trilobites são mais antigas do que as que conservam ossadas de dinossáurios e que estas, por sua vez, são anteriores às que serviram de jazida aos australopitecos, nossos avós.

Na outra perspectiva, a quantitativa, o tempo tem o sentido de duração e, assim, refere o intervalo que medeia entre dois acontecimentos ou o que decorreu entre um deles e o momento presente, isto é, a sua idade. Uma das vias mais frutuosas na medição do tempo geológico nasceu com a descoberta da radioactividade por Henri Becquerel, em 1826, e ganhou corpo com os trabalhos sobre a constituição e funcionamento do núcleo atómico levados a efeito por Marie e Pierre Curie e muitos outros físicos. Tais avanços da ciência, com reflexos na medição do tempo, foram sabiamente aproveitados por vários investigadores, entre os quais o geólogo inglês, Arthur Holmes, do qual se diz que “só não foi prémio Nobel porque a Geologia não figura entre as disciplinas contempladas no respectivo regulamento".”

Executadas por rotina em muitos laboratórios de todo o mundo, as determinações de idade dos minerais permitiram-nos enquadrar, em termos de cronologia absoluta, as grandes etapas da história da Terra e da Vida, de há muito definidas em termos de idade relativa. Sabemos hoje que a Terra se formou há aproximadamente 4 560 milhões de anos, que os dinossáurios fizeram a sua aparição há cerca de 235 e que desapareceram de vez há 65 milhões de anos. Sabemos que o granito do Porto tem 560 milhões de anos, que o das Beiras tem à volta de 300 e o que o de Sintra, apenas 85. E a lista de rochas e de acontecimentos de que conhecemos a idade absoluta é imensa e não pára de crescer.

Falar de milhões de anos na história da Terra e conceber um tempo para trás da Criação do Homem foram conquistas, árduas e tantas vezes trágicas, da Ciência sobre o dogmatismo conservador e severo da Igreja. Para o tempo bíblico que, aliás, sobrepunham ao tempo da Terra e do Homem, os clérigos de então aceitavam uma cifra à volta de, apenas, seis mil anos e não mais.

James Hutton (1726-1797), considerado por muitos o pai do moderno pensamento geológico, ao reflectir sobre a formação das montanhas e sua destruição por efeito dos agentes erosivos, concebeu a Terra como uma máquina plena de energia e, praticamente, eterna. Tal concepção partia de um pressuposto seu, mais tarde desenvolvido por Charles Lyell (1797-1895), pressuposto que, na essência, procurava no presente a chave para desvendar os enigmas do passado. Conhecido por princípio do actualismo, os seus autores mostraram que os fenómenos geológicos foram os mesmos que conhecemos no mundo actual. Esta é, aliás, uma permissa básica da física que consiste na manutenção das leis naturais no espaço e no tempo.

Numa época marcada pela rigorosa observância aos dogmas impostos pela Fé, não era fácil chegar a esta realidade, que é a imensidade do tempo geológico. A meados do século XVII o arcebispo primaz da Irlanda, James Ussher, após aturada pesquisa das sucessivas gerações constantes do Velho Testamento, dava a conhecer ao mundo que o Céu e a Terra haviam sido criados na tarde de Sábado, dia 22 de Outubro do ano de 4004 a.C.. Era, pois, muito arriscado investigar o tempo geológico, pois isso questionava a Divina Génese, e a fogueira desencorajava os mais ousados.

Na Segunda metade do século XVIII, Georges Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788), procurava iludir a vigilância exercida pelos seus superiores eclesiásticos na Sorbonne, dizendo que os seis dias da Criação, constantes das Escrituras, deveriam ser entendidos como espaços de tempo dos quais o "Historiador Sagrado" não determinara a duração. Com este artifício apaziguador. Buffon estendia a 75 000 anos a idade da Terra. Tais números, ínfimos, face ao que era a sua convicção profunda, mas não revelada publicamente (na ordem de 3 000 000 de anos, conforme consta dos seus escritos inéditos), constituíam um desafio à versão da Igreja. Perseguido. Buffon foi coagido a retractar-se, em 1715, mas a semente estava lançada. Para os espíritos libertos havia um longo tempo anterior ao Homem, durante o qual a Terra evolucionara por conta própria. Era o tempo geológico a impor-se ao pensamento e a questionar o tempo bíblico.

Por essa altura, Georges Cuvier (1769-1832) havia demonstrado que, muito antes da aparição do género humano, a Terra percorrera uma longa caminhada evolutiva, deixando testemunhos (os fósseis) de sucessivos “mundos prévios” onde viveram seres diferentes dos que hoje nos rodeiam, todos eles extintos. Este ilustre naturalista dividiu o tempo da Terra em três épocas que baptizou de antediluviana, diluviana e pós-diluviana. A primeira era caracterizada por ele como uma época de escuridão, sem a presença do Homem, em que o planeta fora habitado por monstros hoje extintos e sujeita a fenómenos naturais, não explicáveis pela experiência do presente. As épocas diluviana e pós-diluviana constituem uma aceitação explícita da visão bíblica. Interpretadas à luz das Escrituras, estas duas épocas, marcadas pela presença do Homem, eram sede de acontecimentos semelhantes aos que observamos nos dias de hoje. Nesta óptica o tempo geológico reportava-se, apenas, ao antediluviano.

Foi exactamente contra esta concepção, abraçada pelos catastrofistas, que ganharam força, não só o actualismo de Hutton e Leyell, como também, e sobretudo, as suas convicções acerca da imensa dilatação do tempo geológico, duas ideia-força que puseram fim ao neptunismo de Abraham Gottlob Werner (1749-1817), da Academia de Minas de Freiberga, Alemanha. Defendendo que a terra estivera completamente coberta por um oceano primordial, e que nas águas desse oceano teriam estado dissolvidos ou em suspensão, todos os componentes minerais que formam as rochas, o neptunismo sucumbiu face às evidências das observações geológicas no terreno, mas teve o mérito de propor a primeira escala estratigráfica, embora, ainda, numa perspectiva de cronologia relativa vinda do tempo de Nicolau Steno.

Com base nas concepções da época, num misto dos dados observados e das crenças religiosas vigentes, consideravam-se primários os terrenos resultantes da Criação do Mundo e esses estavam no núcleo das montanhas, representados pelos granitos e outras rochas antigas. As rochas estratificadas, como os calcários, muitos deles com fósseis marinhos, testemunhavam a existência do Dilúvio, tal como a Bíblia o ensinava, constituindo os terrenos secundários. Finalmente, os terrenos terciários, ou recentes, eram representados por aluviões, areias de praia e outros depósitos, cuja formação decorrera na presença do Homem. Seguindo estas ideias, Werner extrapolou uma estratigrafia à escala do Planeta, posteriormente verificda incorrecta, mas que, dada a grande projecção do seu autor, fez época, irradiando por toda a Europa.

Posteriormente a Buffon, muitas foram as tentativas de cálculo da idade da Terra. Todas elas na ordem dos milhões de anos, as cifras encontradas ultrapassavam, em muito, os limites consentidos pelos textos sagrados, mas estavam ainda muito aquém da imensidade preconizada por Hutton e seus discípulos. Entre as muitas propostas ficou conhecida, pela negativa, a de Lord Kelvin (1824-1907). O grande prestígio deste eminente físico inglês levou a que os seus cálculos matemáticos, a partir de premissas termodinâmicas, arrasassem todos quantos necessitavam de um tempo muito mais dilatado para explicar as grandes transformações geológicas através de acções cuja lentidão era uma evidência. Rendidos aos cerca de 100 milhões de anos fornecidos pelas “ciências exactas”, os naturalistas viam-se coagidos a reformular as suas concepções e, entre eles, por exemplo, Darwin não conseguia encaixar a evolução das espécies numa parcela de tempo tão reduzida. Acontece porém que, embora correctos, os cálculos do físico inglês assentam em bases erradas. Ao tempo, a radioactividade estava a poucos anos de ser descoberta e, assim, os raciocínios de Kelvin não contaram com o aquecimento do interior da Terra, resultante desse processo natural. Sem essa fonte suplementar de calor, então desconhecida, os valores que encontrou ficaram muitíssimo abaixo dos 4 560 milhões de anos, hoje fixados e aceites pela comunidade científica.

Entretanto, o trabalho monumental empreendido pelos paleontólogos, ao longo do século XIX, permitiu um melhor escalonamento no tempo, baseado nos fósseis, e o estabelecimento de eras, períodos e outras divisões da história da Terra. Passou então a falar-se de uma era primária, paleozóica, ou de vida antiga, muito diferente da actual, de uma era cenozóica, de vida moderna, na qual animais e plantas eram já muito semelhantes aos que hoje conhecemos, e de uma era secundária, ou mesozóica, a meio das duas, dentro da qual viveram, entre muitos outros grupos, os dinossáurios. Na sequência destes estudos surgiram nomes como Câmbrico, Silúrico, Jurássico, Cretácico, Miocénico, Pliocénico e muitos mais que hoje formam a vasta e pormenorizada escala estratigráfica.

O caminho seguro para o conhecimento do tempo absoluto, que viria a dar razão a Hutton e seus seguidores, iniciado alguns anos mais tarde com o surgir da física nuclear, foi obra de muitos investigadores que trabalharam neste domínio ou que dele souberam tirar proveito. Nesta caminhada, coube a Holmes o mérito da primeira revisão da escala do tempo geológico. Mercê dos avanços no conhecimento geológico, dos progressos da física dos isótopos e das tecnologias de análise, dispomos hoje de uma escala cronostratigráfica na qual, com pormenor sempre melhorado, a litostratigrafia e a biostratigrafia estão agrupadas em intervalos de tempo de diferentes hierarquias cotados em valores numéricos referidos à unidade de tempo geológico adoptada, isto é, o milhão de anos, nada menos do que dez mil séculos.

24 de Setembro de 2002