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A.M. GALOPIM DE CARVALHO - O SAL NA HISTÓRIA DA TERRA E DO HOMEM
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A palavra sal foi-nos deixada pelos latinos (sal, salis), que tanto a empregavam para designar o produto material extraído, por evaporação, da água do mar, como para aludir, em sentido figurado, à vivacidade, à finura cáustica, ao espírito picante, ao bom gosto, à inteligência. E foi assim, com estes dois sentidos, que o sal entrou na nossa linguagem quotidiana, da menos à mais erudita. Tal não aconteceu com o halós dos gregos, cuja passagem pela Península, muito anterior, não teve nem a duração nem a importância da ocupação romana. Apenas no jargão científico e tecnológico dispomos de vocábulos construídos com base neste outro étimo. Diz-se que um solo é halomórfico quando salgado, que um organismo é halofílico quando suporta bem a presença de sal, chama-se halite ao sal-gema, halogenetos aos minerais salinos e haloquinese à deformação tectónica induzida pela presença de rochas salinas no seio das sequências afectadas. Hiper-halino, hipo-halino, termo-halino, euri-halinos, esteno-halinos, etc., são mais alguns desses termos, nestes casos usados em oceanografia. Em química, sal é um composto resultante da interacção de um ácido com uma base, como, por exemplo, a do ácido clorídrico com a soda cáustica ou da acção de um ácido sobre um metal, exemplificada pela reacção do mesmo ácido sobre o estanho Cloretos, sulfatos, brometos, iodetos, carbonatos, fosfatos, etc. são sais. Porém, todos eles necessitam de um qualificativo que os distinga dos restantes. Sal amargo ou sal de Epson – cloreto de magnésio Sal de Bertholet – clorato de potássio Sal de Fischer – cobaltonitrito de potássio Sal de fósforo – fosfato de sódio e amónia Sal de Glasser – sulfato de potássio Sal de Glauber – sulfato de sódio Sal de la Hiquerra – sulfato de magnésio -Sal de la Rochelle – tartarato de sódio e potássio Sal de Vichy – bicarbonato de sódio. Só o cloreto de sódio dispensa esse cuidado. Basta-lhe a palavra sal dita ou escrita isoladamente. É este o constituinte essencial quer do sal marinho , ou sal de cozinha, quer do sal-gema extraído das entranhas da Terra. No século XI, o médico persa Ibn Sina (Avicena) estabeleceu a primeira classificação mineralógica com base nas características directamente observáveis (cor, forma, brilho, fragilidade, etc.) e de outras determináveis, entre as quais a fusibilidade. Assim, separou pedras e terras , minerais fusíveis e sulfurosos , metais e sais . O grupo dos sais vai persistir separado dos restantes, quer nas diversas classificações ou sistemas dos alquimistas, quer nas de Valério e de Bergman, nos finais do século XVIII, numa época em que a química e a mineralogia se completavam e confundiam. A sistemática mineralógica em uso nos dias de hoje, iniciada com Dana na primeira metade do século XIX, separa os sais em várias classes, entre as quais a dos halogenetos ou halóides , onde figuram cloretos, iodetos, brometos e fluoretos. A seguir à água, o sal é o composto mais abundante à superfície da Terra, na maior parte dissolvido na água dos oceanos, onde entrou, primeiro, na sequência da diferenciação planetária que deu origem à crosta, à atmosfera e à hidrosfera e, depois, em resultado da alteração química das rochas e transporte para o mar dos respectivos produtos. Os sais dissolvidos nas águas fluviais (0,16%, em média) contribuíram, assim, ao longo de milhares de milhões de anos de reciclagem (evaporação, precipitação e regresso ao mar), para o actual teor salino dos oceanos, em média, na ordem dos 35 g/l. Um tal teor permitiria que, posto a seco, este sal envolveria o planeta com uma espessura estimada em cerca de 50 metros. Define-se por salinidade a quantidade de sais dissolvidos na água, expressa em gramas por litro ou em permilagem. Junto ao litoral, a salinidade é mais baixa do que no interior dos oceanos, em virtude da diluição assegurada pelo desaguar constante dos rios; diminui com o aumento da pluviosidade e da latitude, sendo muito baixa nos mares gelados. No Golfo de Bótnia a salinidade é de cerca de 7 g/l, em contraste com os 38 a 40 g/l registados no Atlântico. No Mar Morto o valor da salinidade atinge 192 g/l, valor próximo do do Grande Lago Salgado (Utah) ultrapassa os 203 g/l. Nos oceanos e mares, o sal tem quota parte na dinâmica das massas de água, uma vez que as diferenças da salinidade induzem correntes de densidade à semelhança das criadas pelas diferenças de temperatura. Certamente, porque a vida surgiu no mar, a água e também o sal são partes integrantes e vitais dos organismos. E nós não fugimos a esta regra. Temos sal em todos os líquidos orgânicos: nas lágrimas, na saliva, na urina e no sangue, cujo teor é de 6,5 g de cloreto de sódio por litro. Respeitados os limites aconselhados pela profilaxia médica, o sal é-nos, assim, absolutamente indispensável, a nós e aos animais, em cujas rações também se inclui o sal. O sal-gema , assim lhe chamavam os romanos, é uma entre as várias rochas salinas originadas por precipitação de sais, na sequência de evaporação excessiva das águas marinhas retidas em lagunas e de águas de lagos salgados no interior de áreas continentais de tendência árida. Numa visão muito esquemática, poderão comparar-se estes grandes evaporadouros naturais às salinas artificiais ou marinhas, que não são mais do que tanques que se enchem de água do mar, ou de fontes de água salgada, e se aguarda a precipitação dos sais por evaporação. Essencialmente constituído por cloreto de sódio, numa percentagem que ronda os 95%, o sal-gema contém geralmente outros sais e “impurezas” várias (argilas, óxidos de ferro, matéria orgânica) que perfazem, no total, os restantes 5%. Também se lhe chama sal-pedra ou sal da mina , uma vez que é no interior da crosta terrestre que o procuramos e exploramos. O sal-gema e as outras rochas com idêntica origem, entre as quais o gesso (CaSO 4 .2H 2 O), representam cerca de 3% das rochas sedimentares, um pequeno grupo a que se deu o nome de evaporitos , em virtude do seu modo de formação. O cloreto de sódio natural é conhecido entre os mineralogistas sob o nome de halite, desde 1847, ano em que o alemão Glocker o baptizou a partir do étimo halós , nome grego do sal. Esta espécie mineral caracteriza-se pelo hábito cúbico dos seus cristais e pela clivagem fácil e perfeita segundo as faces do cubo. Transparente e incolor quando pura, pode, no entanto, apresentar-se com colorações várias (cinzenta, amarelada, avermelhada) em função da presença das citadas “impurezas”. De fraca densidade (2,16) e de baixa dureza (2,5), é bastante solúvel em água. Na reserva salina da água do mar estão contidos, em valores médios, aproximados, 77,7% de cloreto de sódio, 10,9% de cloreto de magnésio, 4,7% de sulfato de magnésio, 3,5% de sulfato de cálcio. Os restantes 3,2% correspondem a diversos outros sais, entre os quais sulfato de potássio, cloreto de potássio, carbonato de cálcio, brometo de magnésio, iodeto de potássio. Se, por evaporação, a temperaturas na ordem dos 30ºC, a salinidade subir para cerca de 115 g/l (3,5 vezes o valor normal) inicia-se a precipitação do gesso. A halite só faz outro tanto para concentrações na ordem das dez vezes mais, ao passo que o cloreto de potássio (silvite) e outros sais mais solúveis suportam concentrações ainda maiores (20 vezes) sem saírem da fase líquida. São conhecidos exemplos de sedimentação salina actual. Um deles é o Kara Bogás , a leste do mar Cáspio. Este golfo tem uma comunicação muito estreita com o grande mar interior que o alimenta permanentemente em água salgada. As condições de clima locais, subáridas quentes, tornam a evaporação particularmente intensa e, nestas condições, a precipitação salina é ali, praticamente, constante. É o que acontece também no Lago Assal (Somália), e no Piano de Sal (Eritreia), duas áreas quentes e secas onde entram águas marinhas e aí se evaporam. O mesmo processo tem lugar nos lagos de altitude com clima frio e seco dos planaltos boliviano e tibetano. São também exemplo destes evaporadouros naturais as extensões de sal no Vale da Morte, na Califórnia, o Grande Lago Salgado , que deu o nome à cidade de Salt Lake City, no Utah, e todas as ocorrências semelhantes de que está pejado o Oeste americano, numa vastíssima região referida por Basins and Ranges , do México ao Nevada, na qual esses lagos temporários (playas ou bajadas, do castelhano que aí se falou) são nota dominante, à semelhança dos shots do norte de África, sebkra (ou sebkha) na designação magrebina. Foi em salinas naturais deste tipo, existentes no passado, mais ou menos longínquo, da Terra, que se formaram as camadas de evaporitos intercaladas nas sequências sedimentares, entre as quais as de sal-gema e que, à semelhança do sal marinho, constituem importantes reservas desta valiosa matéria-prima com aplicação nas mais variadas indústrias. São conhecidas ocorrências de sal-gema em várias latitudes e épocas, com destaque para as bacias: irano-paquistanesas do Pré-câmbrico; de Elk Point (Oeste do Canadá) e Salinas (Michigan, EUA), de idade siluro-devónica; de Zechstein (no norte da Europa) e de Delaware (Texas, EUA), desenvolvidas durante o Pérmico; de Williston (Montana, EUA), com uma sucessão de evaporitos escalonados entre o Devónico e o Jurássico; e a Mediterrânea , hoje submersa, acumulada durante o Miocénico superior (Messiniano). A importância do sal-gema no registo sedimentar é tal que, por exemplo, foram propostas designações estratigráficas como Saliferiano (d'Orbigny, 1852) e Haloriano (Mojsisovics, 1869), dois termos alusivos ao sal, pelos quais se referiam a fácies salina do Triásico superior da Europa (220 a 210 Ma), entretanto caídos em desuso. Considerado o recurso mineral de mais longo e variado uso pela humanidade, o sal-gema determinou a localização de núcleos urbanos e nações, no interior dos continentes, onde dificilmente chegava o sal marinho. É uma entre as cinco mais importantes matérias-primas com lugar cimeiro na moderna indústria química, ao lado do enxofre, do carvão, do petróleo e do calcário. As séries evaporíticas apresentam, às vezes, grandes espessuras de sedimentos que, por natureza, são próprios de pequenas profundidades. As rochas evaporíticas, em especial o sal-gema, são pouco densas e muito plásticas. Esta características contribuem para que grandes massas de sal ascendam da profundidade, através de zonas de fraqueza, sob a acção da pressão das rochas sobrejacentes. Tais massas ascendentes deformam as camadas superiores em corpos abobadados, constituindo os anticlinais de sal, diapiros ou domos salinos, a que correspondem grandes espessuras verticais de sal, na ordem de milhares de metros, valores que nada têm a ver com a espessura das camadas originais. Estes domos correspondem a corpos cuja “intrusão” poderemos comparar a uma chaminé gigantesca (não necessariamente de forma cilíndrica) que concentra o sal ascendente “espremido” da sua jazida original. Chama-se tectónica diapírica ou haloquinese ao conjunto de deformações relacionadas com a plasticidade das grandes massas salinas. A deformação alpina da serra da Arrábida está relacionada, em parte, com esta modalidade de tectónica, mercê da presença, ali, deste tipo de massas salinas, em profundidade. As áreas diapíricas revelam anomalias gravimétricas negativas, devido à menor densidade das rochas evaporíticas, comportamento que auxilia a sua localização. Os diapiros são ainda matéria de interesse na prospecção petrolífera, dado que muitas concentrações de hidrocarbonetos correspondem a reservatórios armadilhados (imobilizados) por algumas destas estruturas. Alguns diapiros podem estar arrasados pela erosão e, nestas condições, as rochas salinas afloram. A continuação da actividade erosiva acaba geralmente por rebaixar a área que lhes corresponde, relativamente às formações envolventes, mais resistentes, originando formas deprimidas que facilitam o encaixe da rede fluvial e constituem os vales tifónicos de que é grandioso exemplo a planura dos campos da região das Caldas da Rainha, rodeada de relevos. Em Portugal, as rochas salinas e, entre elas, o sal-gema, surgem na base do Jurássico, no andar Hetangiano também conhecido por Complexo de Dagorda. Estas ocorrências distribuem-se, em grande parte, ao longo de uma faixa nas fronteiras do Maciço Antigo com as orlas ocidental e meridional. À semelhança do que acontece actualmente no Mar Morto, entendido como um embrião de um oceano em abertura a partir de um rifte, consideram-se as formações salinas portuguesas relacionadas com um ambiente lagunar precursor da abertura do Atlântico Norte, há cerca de 200 milhões de anos. A exploração do sal-gema, em Portugal, começou tarde e continua a fazer-se numa escala muito inferior às suas potencialidades. Situação que resulta, por um lado, da sua igualmente grande riqueza em sal marinho, de boa qualidade e com uma tradição que remonta aos primórdios da sua história e, por outro, porque a importação de sal ainda é uma realidade entre nós ditada pelas regras do mercado, cada vez mais globalizado. Embora se conhecessem, de há muito, fontes salgadas, como as de Porto Moniz (Leiria), Fonte da Bica (Rio Maior) e Tavira, os estudos com vista à localização das jazidas de sal-gema em Portugal, datam dos finais do século XIX, começos do século XX, levados a efeito por Paul Choffat, ao serviço da então Comissão dos Serviços Geológicos (antiga designação do actualmente extinto Instituto Geológico e Mineiro). Sucederam-lhe os trabalhos de Carlos Freire de Andrade, nos anos trinta, logo seguidos de uma importante campanha de sondagens destinadas à prospecção de petróleo. Destes e de outros trabalhos resultou a localização de sal-gema em Verride, Monte Real, Fátima, Torres Vedras, Montijo, Pinhal Novo e Loulé. Por outro lado, a prospecção geofísica revelou a existência de fortes anomalias gravimétricas, certamente relacionadas com diapiros salinos em profundidade, nas regiões de Vagos, Mira, Cantanhede, Alhadas, Soure, Porto de Mós, Santa Cruz, Sesimbra, Albufeira e Lagos. Todas estas localidades aguardam estudos que visem a sua exploração. No âmbito da produção mineral nacional são particularmente importantes as explorações de Torres Vedras e de Loulé. A primeira, mais precisamente em Matacães, iniciada em 1957, realiza-se por dissolução controlada do sal, por injecção de água no corpo salino, sendo a salmoura (água+sal) enviada por pipe line até às instalações fabris, na Póvoa de Santa Iria, através de um percurso de cerca de 52 Km. Em Loulé, o sal é explorado a seco, em mina subterrânea num domo salino, e varia desde sal-gema, quimicamente puro, muito bom, a um sal cheio de impurezas. De grande beleza, os vários quilómetros de galerias, a mais de 230 m de profundidade, amplas (10 m de largura por 4 m de altura) e desprovidas de humidade, oferecem óptimas condições ambientais aos asmáticos, que ali descem em busca de alívio. A mina concessionada à Clona, Sais Alcalinos, tem reservas para milhares de anos de exploração. O sal que se extrai é dirigido à indústria química, em Estarreja. Na Fonte da Bica (Rio Maior) há poços de água salgada abertos em terrenos formados por rochas salinas do Complexo de Dagorda. Esta água é lançada em tanques (talhos), em número de 470, e aí evaporada, em cerca de seis dias, no verão, precipitando o sal. Este processo de exploração vem desde tempos imemoriais. A repartição desta salmoura pelos salineiros obedece a um regime tradicional conhecido desde o século XII, escrupulosamente respeitado. Um litro de água do poço comum que abastece as salinas contém, em média, 220 g de sal (com 96% de NaCl), isto é, 6,3 vezes mais salgada do que a água do Oceano Atlântico. Existe aqui, hoje em dia, uma forte componente industrial na produção e armazenagens, estando as antigas “casinhas” de madeira a funcionar num tipo de comércio artesanal, muito virado ao turismo. Em 1177 os Templários adquiriram 1/5 da água retirada do poço aos seus proprietários Pero de Aragão e Sancha Soares. Mais tarde, D. Afonso V foi proprietário de cinco talhos, além de que lhe pertencia1/4 da produção dos restantes marinheiros (salineiros). A produção nacional de sal-gema, em 2000, foi de 585 mil toneladas (sal de mina e salmouras), o que está aquém das nossas necessidades de consumo, pelo que, nesse ano, a importação foi de 125 mil toneladas, com proveniências diversas (Espanha, França, Israel, etc.). Entre as principais minas de sal-gema, a nível mundial, merecem referência as de Vieliczka, na Polónia, explorada há mais de um milénio, Wurtemberg e Stassfurt, na Alemanha, Saltzburgo, na Áustria, Cardona, em Espanha e muitas outras nos Estados Unidos, na China, no México, etc.. O sal-gema alimenta uma vasta indústria química (Póvoa de Santa Iria e Estarreja) com vista à obtenção de um grande número de produtos que, por sua vez, são base de outras tantas cadeias de transformação. Entre os primeiros produtos destas cadeias destacam-se cloro, sódio, ácido clorídrico, hipoclorito de sódio (lixívia), carbonato de sódio, soda cáustica, etc., etc., que alimentam muitas indústrias e actividades relacionadas com vidro, cerâmica, alimentação, medicamentos, pecuária, borrachas, plásticos, sabões, detergentes, papel, têxteis, etc.. Ainda no âmbito da geologia relacionada com o sal, merecem referência as salsas ou “vulcões de lama”, de que há bons exemplos em Timor. Expelindo lamas salgadas, ao estilo das erupções lávicas, estas estruturas são o escape de gases associados a jazigos petrolíferos, em estados avançados de erosão e, portanto, próximos da superfície. Estes gases ao serem libertos para a atmosfera, arrastam os sedimentos argilosos empapados pelas águas de infiltração, borbulhando à superfície, onde os derramam como mantos lamacentos. Chamamos salinas tanto às ocorrências naturais de concentração de sal em relação com lagos ou lagunas, como às instaladas pelo engenho humano, que também designamos por marinhas , dado que começaram por ser instaladas na orla do mar. Salinas é também o nome que demos a algumas fontes de água salgada de que temos exemplos em várias nascentes e poços, no Vale do Lena, em Maceira do Liz, em Águas Santas (Vimeiro), na Roliça (Óbidos), na Fonte da Bica ou Marinhas Velhas de Rio Maior. As antigas “Termas Salgadas da Batalha”, do tempo da ocupação pelos Filipes de Espanha, foram um aproveitamento deste tipo de ocorrência. Mais raramente, chamámos salina a um entreposto comercial de sal. Carregal do Sal deve o nome a uma planta abundante na região – a cárrega – e à presença deste armazenamento de sal, para ali transportado em carros de bois, desde a foz do Dão, onde chagava por barco, vindo da Figueira da Foz. Salinas é ainda hoje nome de muitas localidades marcadas pela presença de sal e cuja ocupação humana teve início na respectiva exploração. Como topónimos conhecemos salinas, no Oeste Americano (Califórnia), na Argentina, no Equador, em Marrocos, em Angola, entre as fozes dos rios S. Nicolau e Manaia e, no Brasil, onde também há uma cidade no Pará, de nome Salinópolis. Salácia, a urbes imperatoria, hoje Alcácer do Sal, deve às suas importantes salinas o nome romano que manteve até à ocupação pelos árabes, que fizeram dela a capital da província de Al Kassr , associando a presença do imponente castelo ( Alcaçar ), com mais de trinta torreões, à importância da salicultura que ali encontraram e desenvolveram. Salreu, perto de Estarreja, conserva a memória de antigas salinas, do mesmo modo que Sal Rei, uma vila da ilha da Boa Vista, em Cabo Verde, arquipélago onde os primeiros colonos baptizaram com o nome de Sal a ilha Llana (antigo nome dado pelo seu descobridor, António Noli, em 1460) de grande secura e planura, propiciando a formação de salinas naturais. Para comercializar (exportar) este sal, foi ali construída a primeira via férrea portuguesa, desde a grande salina da Pedra de Lume até ao ancoradouro, onde barcos ingleses o carregavam. O comboio era à vela, aproveitando a energia do vento. Na falta deste, a tracção era feita por burros. Pela sua situação geográfica, na margem de um oceano com um teor de sal dos mais elevados (38 a 40 g/l), um clima estival quente, seco e ventoso, muito favorável à evaporação e, ainda, uma orla litoral extensa, com numerosos abrigos relacionados com estuários de pequenos e grandes rios, Portugal foi, desde tempos muito antigos, um importante produtor e exportador de sal, uma actividade económica que entrou em recessão com o advento da refrigeração dos produtos alimentares. Esta inovação tecnológica levou ao abandono de muitas das artes de conservação pelo sal, vindas de longe e das quais conservamos testemunhos, por exemplo, nas salgadeiras romanas de Tróia e da Comenda, na foz do Sado, onde se salgava o peixe com destino a vários pontos do Império. António Sérgio acentuou a importância da salicultura na economia portuguesa desde o tempo da romanização e durante os primeiros séculos da nacionalidade e Virgínia Rau publicou vários estudos sobre a história do sal português. Luís Cadamosto, navegador e comerciante veneziano, do século XV, ao serviço de Portugal, descreveu como se trocava o sal por ouro entre os nativos nas costas da Guiné. No século XVI há notícias de terem chegado ao Tejo e ao Sado mais de 250 barcos, sobretudo alemães e holandeses, em apenas seis dias, para carregarem sal. Chamou-se Sal de Santa Maria a um imposto pago pelos proprietários da barcos. D. Sebastião decretou o monopólio da exploração salina para custear a malograda expedição de 1587. Os pescadores do Norte da Europa, onde o clima é desfavorável e a salinidade do mar é fraca (7,2 g/l, no Báltico), abasteciam-se aqui de sal a caminho da pesca do bacalhau na Terra Nova. Restaurado Portugal em 1640, a dívida aos estados que nos ajudaram a expulsar o domínio espanhol foi paga com sal, então considerado o melhor de toda a Europa. Nessa época punia-se com a pena de morte todo o marnoto nacional que ousasse ensinar aos galegos, nossos concorrentes, a arte das salinas. As nossas salinas proliferaram nas embocaduras dos principais rios, do Lima ao Guadiana (Castro Marim), sendo actualmente ainda importantes as de Aveiro (iniciadas no século X), da Figueira da Foz, do Tejo (em Alcochete), de Setúbal e da Ria Formosa, esta última responsável por 50% da produção nacional de sal, considerado de óptima qualidade. A importância do sal está bem testemunhada no Museu do Sal, em Alcochete, uma lição sobre a salicultura portuguesa e a vida dos salineiros ou marnotos. Em termos ambientais, o abandono da actividade salineira e a destruição das salinas está a pôr em risco a sobrevivência de muitas aves migratórias que aí fazem escala. Na construção da Ponte Vasco da Gama, no Tejo, a preservação das antigas salinas do Samouco fez-se pela expropriação e recuperação desta área, com vista à preservação da importante fauna que alberga, tendo sido criada, em 28 / 22 / 2000, a “Fundação para a Gestão do Ambiente das Salinas do Samouco”. No nosso dia-a-dia e na tradição de um saber antigo, salga-se o bacalhau e temperam-se com sal as azeitonas, os queijos e os enchidos. Salsicha e salpicão são, como o nome indica, enchidos temperados com sal. Ainda se prepara, com muito sal, a massa de pimentão, no Alentejo; está-se a perder o atum em salmoura e quase já se perdeu a sardinha de barrica, a carne e o toucinho da salgadeira e os queijinhos guardados no sal. Lá fora, salga-se o arenque, prepara-se a choucroute e conservam-se o caviar e os ovos de galinha (na China), que assim podem durar anos. São inúmeras as referências ao sal na história da humanidade. Na Mesopotâmia partilhava-se o sal à mesa como símbolo de convivência amistosa. Para gregos e romanos, o sal era uma das oferendas mais apreciadas. Estes ofereciam a mola de sal aos lares, espíritos divinizdos. O rei da Síria cobrava tributo de sal sobre as explorações adjacentes ao Mar Morto e as grandes minas de sal da Índia setentrional já eram exploradas no tempo da Alexandre. No Tibete usaram-se “pães de sal” como moeda de troca e, no sistema fiscal do Oriente tiveram importância e nome os impostos sobre o sal. Heródoto narrava sobre as caravanas que se dirigiam aos oásis do sul do deserto líbio transportando o sal, tráfico que se mantém na Saara de hoje. A bíblia está repleta de referências ao sal, entre as quais as alusivas a rituais religiosos com e sem sacrifícios. No Mediterrâneo, desde o antigo Egipto à dominação árabe, passando por fenícios, gregos e romanos, a produção e o comércio do sal estiveram na vanguarda das relações entre os estados. O sal constituiu monopólio em muitos deles. Em Roma, as salinas eram do estado, que as arrendava. Nos exércitos distribuíam rações de sal a que chamaram salário, um procedimento que, mais tarde, no tempo do Império, foi substituído por um soldo para comprar sal. A importância deste produto era tal que se construíram estradas – Via Salaria – para transportar o sal das salinas litorais para a região dos sabinos. Tiveram o nome o “Sal de Palmira” traficado entre o Golfo Pérsico e os portos da Síria, e o “Sal de Tadmar”, entre as costas do mar Egeu e as da Rússia, no mar Negro. Na Arábia praticava-se a “comunhão de sal”, comendo sal em companhia, o que era considerado uma cerimónia sagrada. No Sião e no Laos, as parturientes lavavam-se com água e sal para se protegerem contra o sortilégio e em Marrocos deitava-se sal nos lugares escuros para afugentar os maus espíritos. Nos países nórdicos colocava-se sal junto ao berço das crianças para as proteger do mal e, entre os teutões os juramentos eram pronunciados metendo um dedo no sal. A sua importância está ainda patente no “Tabu de sal” que consistia na abstenção de sal imposta em determinadas ocasiões. Os romanos falavam de sal sapientia como símbolo da sabedoria, na continuação de um conceito antigo. No baptismo cristão e por influência dessa tradição, o padre, ao colocar sal na boca do catecúmeno, diz: “ Recebe o sal da sabedoria; que ele seja para ti uma propiciação para a vida eterna. Amen!” . Jesus conferiu a esta substância o mais elevado significado espiritual, ao chamar Sal da Terra aos apóstolos e isso explica que haja sal na água benta e na água gregoriana usada na consagração das igrejas e altares. Noutros contextos, o sal foi símbolo de excomunhão e castigo. O Marquês de Pombal mandou arrasar o palácio onde viveram os Távoras e cobrir de sal o respectivo terreno. Para obter confissões, o torcionário fazia ajoelhar os detidos sobre sal grosso espalhado pelo chão. O sal, em sentido figurado, na boca de poetas e prosadores tanto é a graça, a finura de espírito, a palavra ou o gesto estimulante, como a amargura e o sofrimento. É o contrário da sensaboria. É o salero , dos nossos vizinhos espanhóis. “Morreram-me os amigos que eram a nossa riqueza e o sal da nossa vida” , escreveu Maria Amália Vaz de Carvalho. É de Fernando Pessoa o verso “Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal” , talvez inspirado na trova popular “Ó ondas do mar salgado, Nesta quadra o sal é dor, é sofrimento, mas é prazer, graça e condimento espiritual nesta outra: “És pequena, não faz mal. Talvez como expressão de amargura, António Gedeão, no poema A malta das naus , cantou: “O meu sabor é diferente. Também no universo dos adágios e de expressões comummente utilizadas, o sal afirma a sua grande importância. Apenas alguns, de uma recolha muito incompleta, apresentada sem qualquer tipo de ordenação: Pão sem sal (pessoa sem vivacidade, sem graça). Também entre os contos tradicionais se pode testemunhar a importância do sal. Um rei, desejando aquilatar o amor de suas filhas, pediu-lhes que o expressassem. A mais velha falou primeiro e disse: - Eu quero tanto ao meu pai, como o dia quer ao Sol. O rei ouviu e gostou. A segunda afirmou: - Eu quero tanto ao meu pai como os prados querem à chuva. O rei ouviu e também gostou. E a mais nova disse: - Eu quero tanto ao meu pai como a comida quer o sal. O rei ouviu e não gostou. De castigo mandou-a para as cozinhas. Muito triste, a princesa chorou, chorou, até que a velha cozinheira foi em seu consolo: - De hoje em diante não se põe sal na comida do rei. E assim se fez. Dia após dia o rei ia perdendo o gosto pela mesa e até pela vida. Chamou então as filhas e disse-lhes: - Estou doente. Sei que vou morrer. Perdi a alegria, nem a comida me sabe bem. Foi então que a princesa castigada explicou: - Meu pai. A causa dessa tristeza é a falta do sal que nunca mais se pôs na sua comida. E, para que saiba que assim é, vou-lhe preparar uma refeição com o sal que lhe é devido. À mesa, diante daqueles manjares, o rei comeu, comeu, riu e comeu e riu outra vez, como já não fazia havia uns tempos. Então compreendeu o sentido da frase que a filha mais nova lhe dissera. Abraçou-a e pediu-lhe perdão por castigo tão injusto. E ... uma anedota entre as muitas que se contavam aludindo a personalidades maldosamente rotuladas de menor inteligência. Numa visita ao interior do Brasil, um político, entre as muitas queixas das pessoas figurava a carência de sal, um dos produtos mais desejados pelas famílias. Sua Excelência ia ouvindo e anotando no seu elegante livrinho de notas. Volvidos uns tempos, de passagem pelo mesmo local, inconformados, elementos da população insistiram no seu pedido. - Sal, senhor. Não ouviu a nossa súplica, continuamos sem sal. - Mas eu, chegado ao meu gabinete, dei imediatamente ordem para que vos fossem enviados vários sacos com sal – justificou-se, incomodado. - Sim, nós recebemos uma porção de sacos, mas eram de cal. - Cal? – interrogou-se, passando a mão pela testa, em jeito de procurar explicação e, após uma pequena pausa, exclamou – Já sei! Fui eu que me esqueci da cedilha! E, para terminar, uma referência à presença do sal no nosso quotidiano, através de um conjunto de vocábulos, dos mais vulgares aos mais eruditos: Salada, no feminino é um prato de vegetais em cujo tempero entra o sal, mas no masculino, salado, significa salgado, do mesmo modo que salão é terreno salgadiço, salgadio ou salino. Salário, já o dissemos, foi ração de sal e é hoje significado de remuneração. Salé é carne salgada e saleiro tanto é o recipiente onde se guarda o sal, com o qual salpresamos ou salpicamos os alimentos no prato, como é o homem que vende sal ou o que o produz, isto é o salineiro ou marnoto. Mas saleira é o barco de fundo chato, do Vouga, que transporta o produto do seu trabalho, e salero, no dizer de espanhóis e também de portugueses, é graça, vivacidade. Salga é o acto de salgar , que o que os nossos pais faziam aos toucinhos e outras carnes, após a matança do porco, e às sardinhas que acomodavam em barricas para abastecer as populações do interior. Salgadnhos comemo-los como aperitivos ou fazem o almoço frugal de muitos e salganhada ou salmonada é a falta de arrumo, é confusão. Salgados são as terras baixas, alagadiças invadidas por águas cuja salinidade ou salugem as torna salgadiças , sendo nestas baixas que, preferencialmente, se instala a salicultura ou salicicultura . Salicáceas são as plantas de uma família botânica e salinómetro é o aparelho que mede o teor de sal. Salícula ou salífero é o terreno que produz sal. Salmoura é água mais ou menos saturada de sal, como a que conserva o atum e salmoeira , a vasilha. É ainda a água salgada que percorre o pipeline de Matacães até à Póvoa de Santa Iria, e salmurdo é sinónimo de sonso ou matreiro. Salobra ou salmaça diz-se da água mais ou menos contaminada com sal. Salsa, como adjectivo, é o mesmo que salgada ; como substantivo é a erva que usamos como tempero de muitas confecções culinárias, mas é também sinónimo de molho. E, para terminar, salsicha e salpicão são nomes de enchidos temperados com sal. Lisboa, 5 de Dezembro de 2003 |
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