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A. M.
GALOPIM DE CARVALHO

ALGUNS ASPECTOS DA GEOLOGIA DO ALENTEJO
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II Encontro Regional de Educação
APRENDER NO ALENTEJO
ÉVORA, 22-24 MARÇO 2004
 
No âmbito deste encontro científico-pedagógico "Aprender no Alentejo", e dentro do domínio das Ciências da Terra, ocorre acentuar que esta grande província do sul do País, o Aquém Tejo, como os naturais daqui lhe poderiam chamar (1), contém ocorrências geológicas únicas no território nacional, do maior interesse como temas de estudo e aprendizagem, não só nos aspectos científicos fundamentais, do saber pelo saber, como nos que se relacionam com o viver das gentes ao longo da História e, ainda, com o seu valor económico. Entre essas ocorrências sobressaem os Mármores de Estremoz, na vanguarda da indústria extractiva nacional, e a Faixa Piritosa que deu vida a São Domingos e Aljustrel e ainda anima Neves Corvo.

Estas duas formações integram-se no chamado Maciço Antigo Ibérico, substrato rígido da Ibéria, pequena parte do que resta de uma velha cadeia de montanhas. Esta importante cordilheira prolongava-se da Alemanha para ocidente, pela França e sul de Inglaterra, de onde inflectia para sul, pelo que é hoje o território de Portugal e de Espanha, continuando-se por Marrocos, no norte de África, e pelo continente norte-americano (em parte dos montes Apalaches) então ainda unido à Europa.

No sudoeste peninsular, o Alentejo é a região mais rebaixada do que resta desta velha cadeia, a que uns autores chama Hercínica (2) e outros, Varisca (3), que começou a elevar-se, há cerca de 380 milhões de anos, por enrugamento de sedimentos mais antigos depositados num grande oceano que então existia, em vez das terras que hoje pisamos, feitas de xistos, granitos, gabros, quartzitos, calcários, entre muitos outros tipos de rochas.

O trabalho da erosão, na imensidade do tempo que se seguiu à formação desta grande cordilheira, acabou por destruí-la, reduzindo-a à superfície planáltica que dá pelo nome de Meseta Ibérica, basculada para sudoeste. Nestes terrenos assim arrasados, onde persistem relevos mais resistentes à erosão, como as serras de S. Mamede e de Alcaria Ruiva, são visíveis os vestígios da dita cadeia, representada pelas camadas rochosas intensamente pregueadas e fracturadas.

Podemos então dizer que o Alentejo nasceu há umas centenas de milhões de anos, com começo numa grande cadeia de montanhas saída do mar e que é hoje, por vicissitudes várias, a região mais baixa e aplanada do país, a ponto de, em linguagem comum, se falar da "planície alentejana" em contraste com o norte montanhoso.

Nesses recuados tempos, a configuração dos continentes e dos oceanos era bastante diferente daquela que hoje todos conhecemos. Nessa época a Península Ibérica não existia nem, sequer, a maior parte da Europa. Tudo aqui era mar. Um grande e muito antigo oceano, a que os geólogos chamam Yapetus , no fundo do qual e durante algumas centenas de milhões de anos se acumularam sedimentos, com milhares de metros de espessura, oriundos das terras que o limitavam ou dele emergiam, à semelhança do que está a acontecer em qualquer dos oceanos actuais. Tais sedimentos, estejam eles transformados em xistos, mármores ou outras rochas que não vamos aqui discriminar, contêm fósseis dos seres vivos de então, todos eles indicadores do ambiente marinho em que viveram e a que sabemos atribuir uma idade, que é a mesma da dos sedimentos onde ficaram sepultados, ou seja, a das rochas onde hoje os encontramos.

Toda a gente fala da planície, da paisagem a perder de vista, dos campos de trigo, das intermináveis e rectilíneas rodovias. Então como é que se pode afirmar que estas terras faziam parte de uma cadeia montanhosa? A resposta a tal transformação é só uma: o efeito da erosão. Quando esta cadeia atingiu a sua maior imponência, há uns 300 milhões de anos, não havia Península Ibérica, nem sequer Europa. O que havia era um único e então recém-formado supercontinente que reunia, colados uns aos outros, antigos continentes de que podemos reconstituir parte dos contornos pelas cicatrizes de colisão que deixaram, sob a forma de outras tantas faixas montanhosas, à semelhança desta a que estamos ligados. Foi bem no interior desse supercontinente, conhecido por Pangeia, que, durante mais 100 milhões de anos, teve lugar a maior parte da citada erosão. É, pois, uma parte das raízes da cadeia hercínica que constitui o subsolo da Europa central e ocidental, incluindo a Península Ibérica.

Do mesmo modo que um qualquer edifício em ruínas deixa, nas respectivas fundações e noutros vestígios soterrados, os testemunhos da sua existência, do mesmo modo que uma árvore cortada rente ao solo é testemunhada pela respectiva raiz cravada e, às vezes, oculta no terreno, também as montanhas deixam no subsolo as suas raízes e essas são, entre outras, as camadas rochosas que inicialmente jaziam horizontais, e agora se apresentam dobradas, pregueadas, fracturadas, deslocadas e esmagadas. São essas deformações, bem visíveis nos taludes das estradas ou nas arribas do litoral, que nos permitem reconstituir os grandiosos relevos que aqui existiram. Também os granitos e outras rochas afins são testemunhos dessas montanhas. Geradas no fogo interior das suas entranhas, o afloramento destas rochas à superfície só foi possível porque a erosão varreu milhares de metros de espessura dos terrenos que lhes ficavam por cima e, portanto, os ocultavam.

Aos nossos olhos e à escala temporal das nossas vidas a erosão é um fenómeno muito lento, quase imperceptível. Todavia, o tempo geológico é enormemente dilatado e, assim, basta imaginar, por exemplo, uma taxa de erosão de escassas décimas de milímetro por ano, ao longo das centenas de milhões de anos que nos separam da cadeia montanhosa que aqui tivemos, para justificar este "ver ao longe" da paisagem alentejana.

Foi nas margens desse mar que, há uns 540 milhões de anos, em regime de tipo recifal, se acumularam as espessas camadas de calcário, posteriormente transformadas nos mármores das regiões de Estremoz - Borba - Vila Viçosa e de Viana do Alentejo, pedra nobre cuja exploração representa a maior parcela de toda a indústria extractiva nacional. Foi nesse mar que se acumularam milhares de metros de espessura de vasas essencialmente argilosas de que resultaram os xistos que fazem a pobreza dos solos esqueléticos alentejanos. Foi também nesse mar que teve lugar, cerca de duas centenas de milhões de anos depois, importante actividade vulcânica que deu origem às enormes acumulações de pirites e outros sulfuretos metálicos, ao ouro e à prata, desde sempre explorados na Faixa Piritosa do Alentejo, unidade geológica que começa nas proximidades de Grândola, passa por Aljustrel e Neves Corvo e se prolonga até Huelva, no país vizinho, depois de passar a fronteira em São Domingos.

Foi numa fase mais tardia desta evolução geológica que se geraram as rochas graníticas do Alto Alentejo, uma das suas riquezas, logo a seguir aos mármores. Pela mesma época se formaram os gabros e dioritos do Baixo Alentejo, rochas escuras com as quais se relacionam os bem conhecidos barros negros dos campos de trigo de Beja.

Os terrenos mais antigos do Alentejo situam-se na região de Arronches. São xistos com muito mais de 600 milhões de anos, correspondentes a terras que já existiam ao tempo do grande oceano Yapetus . Os terrenos mais modernos da referida cadeia situam-se no sudoeste alentejano, são ainda marinhos e datam de há cerca de 300 milhões de anos. São xistos com fósseis que nos indicam tais ambiente e idade. Verdadeiramente modernos são os terrenos da bacia sedimentar do Tejo-Sado, com cascalheiras, areias e argilas (barros). Esta região começou a afundar-se há uns 35 milhões de anos, ao mesmo tempo que foi permitindo a acumulação daqueles materiais arrastados pelos rios de então e de hoje.

Muitas outras particularidades marcam o Alentejo no tocante à sua constituição geológica, mas que, como é evidente, não cabem nos propósitos de uma visão geral dos seus aspectos mais marcantes. São muitas as referências a antigas e pequenas explorações de barros vermelhos, quer os resultantes da alteração dos xistos e de outras rochas do substrato, quer os depositados fluvialmente na vasta bacia do Tejo-Sado. Foram estes barros vermelhos que alimentaram uma cultura artesanal já bem evidenciada na cerâmica encontrada nas centenas de antas do Alentejo, nas lamparinas romanas de terra sigilata , nas construções de taipa e adobe, no tijolo, primeiramente seco ao sol e, posteriormente, cozido em fornos, e, a terminar, nas louças do Redondo, de S. Pedro do Corval (Aldeia do Mato), de Nisa, da Flor da Rosa, de Estremoz e tantas outras.

A ponta de Sines é o que resta de um aparelho vulcânico, de há 70 milhões de anos, que não chegou a encontrar saída para o exterior, tendo o respectivo magma ficado a meio caminho e, mais tarde, posto a descoberto pela erosão.

Explicada a razão de ser da planura alentejana e apontados os principais tipos de terrenos sobre os quais ela foi esculpida, deve acrescentar-se que nela persistem alguns relevos designados localmente por serras. Se a serra de S. Mamede, na vizinhança de Portalegre, com os seus 1025 metros de altitude, tem a sua expressão vigorosamente saliente na paisagem, outras, como, por exemplo, a serra de Grândola, resumem-se a porções de terreno posterior e levemente soerguidas acima da superfície geral. Tal é a visão do especialista. Todavia, para o homem que escalou a pé todos estes acidentes do relevo, na luta que travou pela subsistência, quaisquer cem metros de desnível já lhe mereciam a classificação de serras.

Não obstante a ideia generalizada de planície alentejana, que vem em muitos livros, nos jornais ou nas frases dos políticos, para o homem da terra o que não faltam aqui são serras. Serra de Marvão, serra d'Ossa, serra de Monfurado, serra de Portel, serra de Grândola, serra da Vigia, serra do Caldeirão são algumas, as mais salientes e conhecidas, de entre muitas outras, referenciadas na toponímia local. Todas elas correspondem a elevações pontuais, essencialmente de dois tipos, separadas por extensas áreas aplanadas. Ou bem que são relevos residuais, resultantes da existência de rochas mais resistentes à erosão, como os quartzitos, o que se pode exemplificar com as serras de S. Mamede e de Alcaria Ruiva, ou correspondem a blocos de terrenos limitados por falhas e soerguidos, como se se tratasse de teclas de piano mais altas do que as restantes, como é, nomeadamente, o caso da serra de Grândola, face à falha do mesmo nome, que a limita a norte, ou o da serra de Portel (Mendro), ladeada a sul pela falha da Vidigueira.

Porque é, então, que se fala de planície alentejana e que mais nenhuma região do país interior mereceu tal qualificação? Porquê tal diferença, sendo certo que tanto o Alentejo, à semelhança da Extremadura espanhola, bem como muitas das áreas planálticas do norte de Portugal ou do interior de Espanha fazem parte da já referida Meseta Ibérica? Antes de mais deve ser dito que o termo planície , da linguagem comum, não corresponde à planície, tal como é entendida por geógrafos. Em rigor, planície deve ser definida como uma superfície plana, rebaixada, no interior de um vale, como são a lezíria do Tejo, os campos do Sado e os das zonas vestibulares de todos os rios. Pelo contrário, toda e qualquer superfície plana limitada por vales ou por arribas e, portanto, suficientemente elevada em relação ao nível dos mares, mereceu, por parte dos mesmos estudiosos, o nome de planalto ou altiplano , o que é bem o caso da Meseta Ibérica, onde se inclui todo o sudoeste peninsular e, dentro dele, o Alentejo. E então, repete-se a pergunta: porque é que se fala da planície alentejana em contraste com o norte montanhoso? A resposta é simples. Arrasada a cadeia hercínica neste seu troço ibérico, a superfície então aplanada elevou-se mais pronunciadamente no sector nordeste do que no sudoeste, apresentando-se hoje basculada, à semelhança de uma barcaça desigualmente carregada.

Restringindo estas considerações ao território português, acontece que, a norte, relativamente perturbada por acidentes tectónicos locais (as tais teclas de piano desniveladas umas em relação às outras) e pelos rasgões da rede fluvial, a superfície da Meseta ocorre a altitudes superiores a 1000 metros. A mesma superfície geral, que não deixa de ser planáltica, anda à volta de 400 metros na Beira Baixa e desce do Alto para o Baixo Alentejo, de cotas na ordem dos 300 metros, no distrito de Évora, para outras, a cerca de 200, no de Beja. Nestas condições, a energia erosiva dos rios nas terras planálticas da Beira Alta, do Minho e de Trás-os-Montes é superior à que se verifica a sul. Os vales são muito mais escavados, provocando o serpentear das estradas. Neste quadro geográfico, a sensação de relevo ganha maior expressão nas terras do norte do que nas do sul.

A superfície alentejana a que alguns geógrafos e geólogos têm chamado peneplanície não corresponde ao conceito que a palavra encerra, isto é, o de uma quase planície, a caminho de o ser. Eu entendo, pelo contrário, que tendo sido uma vasta e mais perfeita planura, deixou de o ser. Por outras palavras, a "planície" alentejana não se encontra numa fase de aperfeiçoamento, mas antes em fase de degradação a partir de uma superfície bem mais plana, a mesma que a norte, e pelas razões apontadas, confere à paisagem aspecto, mas só aspecto, montanhoso. O próprio cume da serra da Estrela, conhecido por "planalto" da Torre, é ainda, visivelmente, no que diz respeito ao nosso território, a mais elevada das "teclas" do tal "piano desconjuntado" que nos tem servido de imagem.

A título de remate, pode dizer-se que esta aplanação resultou da dialéctica, sempre presente, entre as forças próprias do calor armazenado no interior da Terra, que abrem oceanos, deslocam continentes e fazem nascer montanhas, e as forças desencadeadas pela energia radiante que nos chega do Sol. Por via da erosão, estas forças vindas do exterior da Terra, modelam-lhe constantemente a face, ao contrário do que sucede com a Lua, onde não há nem suficiente calor interno nem erosão, e que, por isso, nos mostra o mesmo visual que tinha há 3 000 milhões de anos. E tenhamos consciência que os materiais que, no presente, continuam a resultar da erosão de todos os relevos da Terra, constantemente drenados pelos rios a caminho dos oceanos, se estão aí a acumular sob a forma de espessas camadas sedimentares para, daqui a muitos milhões de anos, quando estes oceanos se tornarem a fechar, gerarem, por estas e outras bandas, novas cadeias de montanhas e assim sucessivamente... até ao fim do tempo da Terra, previsto para daqui a quatro ou cinco mil milhões de anos, numa repetição do que tem sido a sua história desde que nasceu no seio do Sistema Solar.

Lisboa, 16 de Setembro 2004
A. M. Galopim de Carvalho
 

(1) Dois documentos assinados em Beja, em 1284, auto-situam-se no « Aaquem Tejo ». O termo, portanto, não é novo; é, pelo contrário, bem antigo. Em rigor, o termo Alentejo só faz sentido quando usado por estremenhos, beirões, minhotos ou transmontanos; nunca pelos que aqui nasceram e muito menos por algarvios.

(2) Do nome latino da Floresta Negra, Hercynia silva, na Alemanha.

(3) Do nome dos habitantes da antiga Curia Variscorum, hoje Hof, na Baviera.