REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

Programas e manuais escolares, professores, exames e cidadania

Uma pequena troca de opiniões que  teve lugar há dias, no Facebook, envolvendo programas escolares, exames e professores, levou-me, uma vez mais, a partilhar com todos os amigos o que penso sobre este complexo e delicado assunto. 

Referindo-me unicamente à área do conhecimento na qual me movimentei, ao longo de décadas como professor, estou em crer que todos os males de que enferma o nosso ensino básico e secundário na disciplina de Geologia começam nos programas oficiais, da responsabilidade do Ministério da tutela e das equipas que, oficialmente, os elaboram. Continuam na formulação dos questionários propostos nos pontos de exame, ao que parece, especialmente concebidos para conduzirem a respostas curtas de fácil e rápida correcção. Igualmente da responsabilidade deste Ministério e das equipas indigitadas para o efeito, estes questionários estão, assim, muito longe de permitirem a avaliação dos examinandos em termos da sua maturidade e capacidade expositiva, bem como da sua real preparação no que respeita as matérias do respectivo programa. Um tal condicionalismo leva os autores dos livros escolares e as editoras a produzirem manuais onde os conceitos, tantas vezes estereotipados, acríticos e, uma vez por outra, imprecisos, se sucedem.

Seguidores quase à letra de uma pedagogia segundo a qual, mais do ensinar através da exposição discursiva, o professor deve estimular os alunos a descobrirem o conhecimento, estes manuais copiam-se e recopiam-se a partir de outros que enfermam da mesma filosofia. Pouco ou nada munidos da componente cultural essencial a quem tem por missão ensinar, alguns destes autores revelam-se, ainda, deficientemente habilitados na componente científica das matérias versadas.

A principal missão do professor, a mais nobre e para a qual foi (ou deveria ter sido) preparado, é facultar aos seus alunos não só o conhecimento, mas os meios e os caminhos que lhes permitam atingi-lo, pois só esse conhecimento convenientemente assimilado o valorizará como profissional e como cidadão. Porém, as amarras do programa oficial, o obediente e acrítico manual escolar e o espectro do exame final contrariam qualquer acção dos bons professores, no que toca o ensino vivo da disciplina. Não custa a admitir que entre as preocupações do professor, tem particular relevo a de habilitar os seus alunos para a avaliação a que, necessariamente, têm de ser submetidos no final do ano lectivo. E, aí, os manuais de ensino, com perguntas e respostas estereotipadas, acabam por se sobrepor ao adequado e necessário tratamento das matérias. Convenientemente adquirido e interiorizado, o conhecimento destas matérias confere dimensão cultural à geologia, forma cidadãos mais conscientes da sua posição na sociedade e defensores activos do ambiente e do nosso património natural. Conduzir os alunos tendo por objectivo principal, muitas vezes o único, prepará-los para transporem a barreira chamada exame, leva-os a ver nas respectivas matérias algo de desinteressante e enfadonho, a cumprir para efeitos de avaliação escolar e, de seguida, lançá-las no caixote do esquecimento. De imensa e inesgotável que parecia, ao tempo de Colombo, Gama e Cabral, a Terra tornou-se pequena e frágil aos nossos olhos. Constante e progressivamente agredida pelo imenso, anónimo, insaciável e incontrolado mundo dos cifrões, este nosso condomínio está a dar sinais preocupantes de esgotamento de recursos e de degradação ambiental. Há, pois, que defendê-lo e, para tal, é imperioso conhecê-lo, cabendo à escola e aos professores um papel fundamental.

Muitos dos professores incumbidos de ensinar Geologia nas nossas escolas são licenciados em Biologia, sem qualquer preparação académica na área das ciências da Terra. Devo, no entanto, salientar que nas muitas escolas que visitei e continuo a visitar por todo o país, como convidado, fazendo palestras para professores e/ou alunos, participando em debates ou em outras actividades, conheci licenciados em Biologia que, mercê de intenso estudo autodidático, se revelaram tanto ou mais interessados e competentes no ensino da Geologia, do que muitos dos seus pares licenciados nesta disciplina.

Já o disse e volto a dizer que é preciso elevar a cultura geológica dos portugueses e isso começa na escola. De há muito que venho alertando, em textos escritos e em conversas públicas, para a pouca importância dada ao ensino desta disciplina nas nossas escolas dos ensinos básico e secundário. Quem, a nível político, decide sobre o maior ou menor interesse das matérias curriculares referentes a esta disciplina, desconhece a real importância deste domínio do conhecimento como motor de desenvolvimento e bem-estar, mas também como componente da formação integral do cidadão.

Salvo uma ou outra excepção, a falta de cultura geológica dos portugueses é uma realidade transversal, das elites intelectuais sobejamente eruditas ao mais iletrado dos cidadãos. Os nossos concidadãos sabem dizer granito, basalto, mármore, calcário, xisto, barro, petróleo, gás natural, quartzo, feldspato e mica, mina, vulcão, montanha, planície, mas ignoram a origem, a natureza e o significado destas entidades como documentos da longa história que nos antecedeu nesta “bola colorida”. O conjunto de conhecimentos inerentes a esta história tem todas as condições para despertar a curiosidade dos alunos, abrindo-lhes as portas aos múltiplos domínios de um programa convenientemente elaborado por quem tenha competência científica e cultural para o fazer.

A Geologia, insisto em repetir, não pode deixar de ter uma dimensão cultural ao dispor do cidadão comum. Os professores devem ter consciência desta realidade quando se dirigem aos seus alunos, uma vez que não estão só a fornecer bases para eventuais candidatos às licenciaturas na área da Geologia (sempre raros ou inexistentes numa qualquer turma escolar), estão, sobretudo e na maioria dos casos, a formar cidadãos para quem essas bases são fundamentais em termos de preparação global.

E porque não ligar estes conhecimentos às nossas origens, onde e em especial o sílex e o barro foram alvo de procura e utilização, e à sucessiva ocupação do território por outros povos e civilizações (fenícios, gregos, cartagineses, romanos e árabes), em busca do ouro, do cobre e do estanho? E porque não associar a nossa História à realidade física (leia-se geológica, geomorfológica, mineira, sismológica) do país?

Quarenta anos de ensino teórico e/ou prático de diversas disciplinas (da Mineralogia e Cristalografia à Geologia, passando pela Paleontologia e pela Geomorfologia) na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, dos quais, dezasseis também na Faculdade de Letras (em Geografia) e, ainda centenas de aulas ou lições nas escolas (dos jardins de infância às secundárias) de norte a sul do território continental, das Ilhas e de Macau, mostraram-me, à saciedade, que aprender a gostar de saber, qualquer que seja o nível no sistema educacional, é uma das chaves que abre o caminho ao sucesso escolar. O professor tem de ter saber (por vocação própria ou porque para tal foi preparado) levar os educandos a gostarem das matérias que têm, por dever, transmitir-lhes. Tem de os incentivar a terem prazer no convívio com ele e, assim, sentirem a escola como algo importante nas suas vidas. A experiência também me ensinou que, em especial, face aos alunos mais crescidos, há outras ferramentas ao alcance do professor para os conduzir no referido sucesso. Uma, é conseguir inculcar neles a consciência do dever cívico de estudar, levando-os a tomarem consciência do privilégio que têm de usufruir da condição de estudante numa sociedade onde milhares de jovens permanecem privados dela. A outra chave não menos importante é estimular-lhes a autoestima. Por outras palavras, o professor tem de ter artes para fazer dos seus alunos jovens que têm gosto em aprender, que frequentam a escola com prazer, que encaram o estudo como um dever de cidadania e têm brio na sua condição de estudantes. Para tal, tem de conseguir estabelecer com eles uma aproximação de confiança e afectividade mútuas que lhe permita actuar, com êxito, nestas vertentes. Foi assim, durante quarenta anos, a minha relação com os muitos milhares de alunos com quem troquei saberes e afectos.

Essa tripla condição, que está ausente num número infelizmente muito grande dos rapazes e raparigas das nossas escolas, podemos imaginá-la, por exemplo, nos alunos ucranianos que, na viragem do século, aqui chegaram com os pais, aquando das primeiras vagas de imigrantes vindos de um país de Leste, onde esses valores, devo concluir, são uma realidade.

O poder do feiticeiro reside na ignorância dos seus irmãos tribais”. Trata-se aqui de um dito que, na nossa sociedade e no nosso tempo, nos adverte para o facto de que só o conhecimento nos defende dos opressores.

É esta realidade que os professores devem fazer sentir aos seus alunos, em especial aos mais desprotegidos e atingidos pela exclusão social que grassa em tantas escolas marcadas pela suburbanidade crescente que caracteriza as sociedades desenvolvimentistas. O Sistema promove e alarga o fosso entre os que estudam, e assim aspiram e conquistam o direito à cidadania, e os outros. E nestes outros estão os do trabalho precário e a grande maioria dos que caem na marginalidade.

É uma obrigação do professor transmitir esta mensagem aos seus alunos, na batalha contra o insucesso escolar. Cegos e alienados por “valores” vazios, sabiamente alimentados pelo mesmo Sistema, muitos dos alunos das nossas escolas básicas não se apercebem que estão a consentir serem vítimas de uma segregação a prazo, sendo necessário que alguém lhes abra os olhos. E esse alguém, à falta da acção dos pais, tem de ser o professor. Para tal, repito, há que saber ganhar a confiança dos alunos e, também, o seu afecto. Feliz do estudante que gosta da convivência com o seu professor e duplamente feliz se esse professor estiver à altura do seu papel que, para além de educacional, é, também e sobretudo, social.

A.M. Galopim de Carvalho. É professor catedrático jubilado pela Universidade de Lisboa, tendo assinado no Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências desde 1961. É autor de 21 livros, entre científicos, pedagógicos, de divulgação científica e de ficção e memórias. Assinou mais de 200 trabalhos em revistas científicas. Como cidadão interventor, em defesa da Geologia e do património geológico, publicou mais de 150 artigos de opinião. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural, entre 1993 e 2003, tempo em que pôs de pé várias exposições e interveio em mais de 200 palestras, pelo país e no estrangeiro.
Blogue: http://sopasdepedra.blogspot.com/