REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

O Herculano

Chamo-me Alexandre Herculano, exactamente como o grande escritor e historiador do século XIX e confesso que nunca li nada do que ele escreveu. Comecei cedo a ganhar o pão que comia e o trabalho encheu todo o meu tempo. Tenho 66 anos e ainda sou mestre numa oficina de reparação de automóveis. Faço de tudo, mas a minha especialidade era bate-chapas, arte que está a desaparecer porque o mercado assim o determina. Ninguém manda retirar uma amolgadela. Substitui-se a porta, o capô ou o guarda-lamas e pronto. Está o serviço feito. Comecei a trabalhar aos 15 anos, como aprendiz e tive sorte com o patrão. Pagava-me mal mas deu-me cama, mesa, roupa lavada, o que permitiu sair de casa e começar vida nova. Quando acabei a tropa já igualava com ele. Casei e também tive sorte nesta outra estrada da vida. Tenho dois filhos, já homens maduros, que me deram quatro netos que são o meu encanto. Vou trabalhar enquanto puder e faço questão de ver bisnetos. Sou bom português, respeito as leis e dou-me bem com toda a gente. Sou apenas isto, não mais do que isto e posso dizer que, tirando o meu tempo de rapaz, a vida não me foi madrasta. Devo tudo o que sou à minha professora na classe especial integrada na Escola Primária do meu bairro.

Julgo saber que a malta que nos governou depois do 25 de Abril, acabou com este tipo classes. Andámos de cavalo para burro. E não é só na escola. É em tudo. E agora, com esta rapaziada no governo, estamos pior do que nunca.

Na altura, eu tinha 13 anos e ela era uma senhora na casa dos 25 ou 26 anos, mas mais parecia uma menina, bonita, alegre e bondosa como uma santa. Foi uma luz que entrou na minha vida e na dos outros rapazes daquela classe, uns 15 ao todo, cada um com os seus problemas. Uns bem  educados e cumpridores mas burros como uma porta, outros mal comportados como eu. Eu era o pior de todos. Era o que se podia dizer, um “corrécio”, com castigos vindos de todo o lado, uns atrás dos outros, em casa, na escola e na polícia. Toda a gente me afastava ou se afastava de mim, uns porque me desprezavam, outros porque me temiam. Os meus amigos, ou melhor, os rapazes com quem andava, eram desgraçados como eu. Formávamos um bando de pequenos malfeitores caminhando a passos largos para a maioridade e para a prisão. As prisões estão cheias de homens que foram rapazes que cresceram como eu.

Eu usava o cabelo cortado à escovinha, o que deixava ver as cicatrizes das pedradas que apanhei em guerras de rua com outros rapazes da mesma condição de abandono. Por isso, no grupo, eu era o “moças”. Fazíamos tropelias de toda a espécie e roubávamos o que estivesse ao alcance da mão. Ao sair de casa, perdi o contacto com esses meus companheiros, nem sei que caminho levaram. Eu, felizmente, encontrei o caminho certo que fez de mim o homem que sou, e isso devo-o a esta minha professora.

Cresci pobre e sem carinho de mãe que se limitou a dar-me de comer e de dormir, mas nem sempre. Foram muitas as vezes que tive de me desenrascar para matar a fome, pedindo ou roubando. Sempre vesti roupas usadas que me davam e, sempre que a minha mãe precisava da minha cama para uma das hóspedas receber a visita de um  senhor qualquer, eu ia dormir na escada, mal enrolado numa manta. Nunca conheci o meu pai mas conheci muitos homens que iam lá a casa. Alguns davam-me uns tostões, o que sempre me permitia comprar qualquer coisa para comer e, algumas vezes, cigarros “Provisórios” ou “Definitivos”, que eram os mais baratos e dos quais se vendiam um, dois ou três, conforme o dinheiro que a gente tivesse no bolso.

Foi assim que cheguei à adolescência, reprovando ano após ano, fazendo gazeta, batendo nos colegas, atirando tinteiros aos professores, dando pontapés nas contínuas, dizendo palavrões. Não tiveram conto as vezes que a minha mãe foi chamada à escola e, nesses dias, depois dos castigos que lá me davam, já sabia que quando chegasse a casa levava uma sova de criar bicho e não jantava.

Quando esta nova professora chegou à minha escola, eu mal sabia ler e escrever e as contas eram uma dor de cabeça. Era por isso que fora ali criada uma classe especial e eu era um dos quinze “atrasados mentais”, como alguns diziam. Mas eu não era burro. O meu problema era não gostar da escola nem dos professores, que me enchiam de porrada. Esta raiva e o meu mau comportamento não me deixavam aprender. Com esta professora tudo mudou. Foram dois anos que deram uma volta à minha vida. Passei a gostar de aprender e aprendi muito com ela. Passei a gostar das aulas e nunca mais fiz gazeta, Todas as manhãs estava à espera dela na paragem do eléctrico, a uns cinquenta metros da escola. E fazia questão de ir bem lavado e penteado.

Um dia, estando eu a reinar com o meu companheiro de carteira, vi a professora ao meu lado e, de imediato, fiz aquele gesto automático de pôr o cotovelo à frente da cara para a proteger do tabefe do costume, mas em vez disso ela passou-me a mão pela cabeça, dizendo:

- Eu não bato em meninos. Nunca bati e não é agora que vou começar a bater.

Nunca esqueci este «eu não bato em meninos», nem o tom daquela voz, nem a festa que me fez na cabeça. Por muitos anos que eu viva não vou esquecer. Nunca ninguém me tratara assim. Nunca ninguém me chamara menino ou me fizera uma festa. Quando a gente falava a gritar ela dizia sempre:

«Não oiço nada. Só oiço quando se fala baixinho. E temos de andar como os gatos. Sem fazer barulho. Quando um menino quiser ir fazer xixi, levanta-se, não precisa de pedir licença. Só precisa de não fazer barulho. Sai devagarinho e volta como saiu».

Um belo dia, o Mário, um alarve como, mais ou menos da minha idade e com uma história parecida com a minha, danou-se por não conseguir fazer o trabalho que lhe tinha sido dado e, esquecendo-se que estava na aula, largou um palavrão dos mais ordinários que se ouviu em toda a sala. Ainda me lembro qual foi. Ficámos todos parados e calados, à espera da reacção da professora, reacção que recordo como se fosse hoje:

«Eu conheço esse nome e muitos outros e até sei escrevê-los». Disse a senhora sem se zangar. «Quem os diz tem de os saber escrever. Anda, Mário, vai escrever no quadro isso que disseste».

Ele contava, depois, que nunca sentira tanta vergonha. Já o tínhamos escrito muitas vezes com carvão nas paredes da rua e feito desenhos a condizer, mas escrevê-lo ali na aula, à frente da professora, é que era mais difícil. Não teve outro remédio senão cumprir aquela ordem. Mas a verdade é que nos serviu de lição. Nunca mais as nossas bocas se abriram para dizer obscenidades dentro da aula.

Na nossa aula só um vivia numa família como devia ser. Era um franzino, muito magrinho e com pouca saúde. Todos os dias ia uma empregada levá-lo e buscá-lo, que lhe carregava a mala e o saquinho com o lanche. Quando, no recreio, ele começava a comer, a malta nem queria olhar. Eram só coisas boas. Ele, às vezes, repartia com um ou outro e nunca ninguém lhe fez mal. Todos o protegiam.

No último dia antes das férias do Natal, do ano em que a conhecemos, a Dona  Isabel, assim se chamava, chegou à aula e, para nossa grande surpresa, trazia para cada um dos alunos, um pente desses de trazer no bolso, novinho em folha, e um frasquinho com água-de-colónia. A malta começou logo, mesmo ali, a pentear-se a perfumar-se e foi, então que ela disse:

«Assim, ainda gosto mais de vocês».

Foram muitos os dias que eu e mais uns dois ou três igualmente pobres íamos para a escola sem ter comido o que quer que fosse. Ela saia, mandava-me a mim, que era o mais matulão, ficar a tomar conta aula, ia a um serviço da tropa que havia ali ao lado e lá arranjava maneira de nos trazer de comer.

No fim do primeiro dos dois anos em que frequentei a classe especial, mercê da sua maneira de ensinar e do carinho que me dava, a mim e aos outros, eu já lia no livro da terceira classe, já fazia contas e problemas.

Naquele ano houve as eleições em que o Humberto Delgado só não ganhou porque a trafulhice nas urnas foi muita. Ganhou o Américo Tomaz e ficou tudo na mesma. Durante a campanha os ânimos andavam exaltados e a polícia, quando era preciso, arriava forte e feio, fosse homem ou mulher. Neste estado de coisas, eu e mais dois ou três alunos, dos mais grandalhões da aula, tínhamos medo que fizessem mal a esta nossa professora que era para nós mais do que uma mãe. Pendurávamo-nos no primeiro eléctrico que apanhava, ficávamos com ela na paragem, â espera do segundo, que a levava a casa no Príncipe Real. Esperávamos na rua que ela assomasse à janela e nos fizesse adeus. Depois, correndo e à pendura, voltávamos ao bairro. A malta sentia-se no papel de guarda-costas e ai de quem lhe fizesse mal. Púnhamos-lhe as tripas ao sol.

Por duas vezes, uma em cada ano, levou-nos a visitar a Fábrica da Favorita, onde vimos fazer chocolates e outras guloseimas. Um dos donos da fábrica era conhecido dela e no final da visita dava a cada um de nós um saco com muito do que lá se fazia. Era uma festa.

No dia da primeira visita que fizemos, o director da Escola entrou na nossa aula, estava ela a explicar o que íamos ver e a dizer como nos tínhamos de comportar.

«A senhora vai sair com eles?» começou o estupor por dizer numa voz que deu para ouvir. «Nem sabe no que se vai meter!» ao que ela respondeu:

«Sei muito bem. Fique descansado».

E lá fomos e voltámos todos, sem sobressaltos. Ela pagou os bilhetes dos que não tinham dinheiro para o transporte. Hoje eu sei, pelos meus netos que nestas saídas as crianças têm de apresentar um papel com a autorização dos pais e que se faz um seguro para o que der e vier. O que me parece bem. No meu tempo não havia esse cuidado. Mas felizmente nunca tivemos quaisquer problemas.

Comportámo-nos igualmente bem nos dias em que fomos à fábrica de bolachas da Nacional e quando fomos ao Jardim Zoológico. Neste dia, a professora conseguiu que o mesmo serviço da tropa arranjasse um farnel para cada um.

Ainda me lembro do que vinha no saquinho que nos deram: Uma carcaça com manteiga e mortadela, outra com marmelada, meia dúzia de bolachas, uma maçã e uma garrafinha com um sumo. Grande professora! Foi o melhor dia em todos os anos de escola. Vimos a bicharada toda, corremos, cantámos e enchemos a barriga de coisas boas. Tudo na maior.

Um dia, terminada a aula, já na rua, a professora ia a caminho da paragem do eléctrico que levava de volta a casa, e três ou quatro de nós, como de costume, uns metros atrás dela. Nesse tempo ainda havia padeiros, de cesta à cabeça, a distribuir pão, porta a porta, pelos fregueses. A dada altura, o raio do homem começou a meter-se com ela, e não te digo nada. Corremos o gajo à pedrada com as pedras soltas do passeio, que são sempre muitas, que ele pôs a cesta no chão e largou a fugir. Depois fomos nós que nos pirámos, mas só depois de gamar uma porção de carcaças.

 

A.M. Galopim de Carvalho. Professor jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
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