REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

Inspecção sanitária na caserna

 De vez em quando, sem qualquer aviso, mandavam-se reunir os homens nas casernas, tal com vieram ao mundo. Começando no primeiro e assim sempre até ao último, dezenas de recrutas eram rápida mas cientificamente observados, o suficiente para detectar o inimigo, geralmente parasitas e blenorragias.

- Este ano o Phthirius pubis, de Lineu, atacou mais cedo e em força. – Comentava o tenente-médico, numa linguagem propositadamente erudita e bem-humorada que gostava de usar nestas ocasiões. Bem anafado de carnes e banhas, enfiado numa bata mal vestida e desabotoada, este clínico, um simpático bonacheirão para quem o conhecia de perto, punha na voz um volume e um timbre que deixava aterrados os pobres soldados. O cabo-enfermeiro que o acompanhava nestas inspecções também se divertia com o espectáculo.

Dirigindo-se a um dos magalas, de pernas peludas, bem afastadas, deixando ver a vermelhidão da zona pélvica, o nosso tenente-médico exclamava num tom de voz que enchia a caserna:

- Estás cheio de chatos, sacana de merda! Tens-te coçado que nem um sarnoso e não dizias nada, meu bandido. Porque é que não foste já à enfermaria tratar essa merda?

Olhando depois para o peito do rapaz, continuou:

- Com essa lã a chegar-te ao pescoço, estás aqui estás todo inçado dessa bicheza, meu grande sacana. Cabeça e tudo, meu piolhoso. Sai lá daqui e vai já tomar banho. Esfregas-te bem, da cabeça aos pés, com muito sabão. Tiras a espuma com água a correr com força e voltas a fazer o mesmo várias vezes. E não tornes a vestir a mesma roupa! A seguir vais à enfermaria, ao nosso sargento Simões, para que te dê um pacotinho de DDT. Diz-lhe que fui eu que mandei. Espalhas o pó por todo o lado onde haja pentelho e depois vais lavar essa roupa, que é para aprenderes a ser mais asseado, meu grande bandido. Levas a roupa da tua cama à lavandaria e pedes que te dêem lençóis lavados.

E, dirigindo-se à caserna, acrescentou bem alto para que todos ouvissem:
- Quem andar com comichão nos tomates, que venha para aqui, já! – E, após rápida confirmação da praga em mais uns tantos, gritou:

- Vai tudo para o banho e depois fazem o mesmo que aqui o … qual é teu número, bandido?

- 124, meu tenente.

- Fazem tudo o que o 124 fizer. Identifiquem-se aqui ao nosso cabo e amanhã quero vê-los lá no posto.

Ser apanhado com uma venérea dava direito a castigo. Todos os soldados sabiam que, depois de irem às meninas e logo que chegados ao quartel, deviam pedir, na enfermaria, uma bisnaga com a pomada própria para aquelas ocasiões.

Das primeiras vezes, o graduado de serviço ensinava-os a usar este desinfectante.

- Depois de urinares metes esta ponta na uretra - e mostrava a extremidade afilada da embalagem.

- Uré… quê, meu sargento?

- Uretra, sim, grande burro. Sabes tudo, menos aquilo que devias saber. Uretra é esse buraco aí por onde mijas. Em seguida apertas a bisnaga para a pomada entrar lá bem para o fundo da gaita. Depois arregaças-lhe a cabeça e, com o resto, besuntas tudo por dentro e por fora. E é assim todas as vezes que deres uma martelada! Não te esqueças!

O número do soldado ficava registado a fim de comprovar o cumprimento da respectiva medida profilática, bem expressa no regulamento do quartel. Esse registo despenalizava-o no caso de, apesar do cuidado, ter contraído a venérea.

Ao observar um outro soldado, o nosso tenente-médico que, todos sabíamos, agia como um pai da soldadesca, exclamou:

- Estás com um escarepe, meu desgraçado! Claro que não puseste a pomada da ordem. Qual é o teu número, bandido?

- 203, meu tenente.

- Estás lixado, rapaz. Vais apanhar um porradão que te acaba com a tesão, meu bandido.

E, dirigindo-se uma vez mais à caserna, gritou:

- Digam lá todos comigo, em voz que se oiça. «O 203 vai apanhar uma porrada por não ter posto a pomada». – E repetia o verso até a rapaziada o saber de cor. Voltando-se depois para o soldado infectado:

- Vais ser castigado, rapaz. Tenho muita pena mas é para aprenderes e para exemplo dos teus camaradas. Quando eu acabar a inspecção, vais ter comigo ao posto para começarmos a tratar essa merda.

A.M. Galopim de Carvalho. Professor jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
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