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Disse certa vez Octavio Paz, em seu Corriente alterna (1967), que "a dificuldade da poesia moderna não provém de sua complexidade […], mas sim de que exige, como a mística e o amor, uma entrega total (e uma vigilância não menos total)". Esta entrega total será a condição legítima para a anulação de distinções entre real e imaginário, conforme defendia André Breton. Ambos concordariam que o assunto se resolve mais do ponto de vista de uma ética do que propriamente de uma estética. A necessária subversão da linguagem aqui se aplicaria em um sentido mais amplo, não limitado apenas às relações entre forma e significado. Trata-se de uma afirmação de contradições, desdobrando-as até que operem como reveladores de uma realidade outra. Desde a modernidade, o poeta não pode mais ser o ingênuo fazedor de versos, cabendo-lhe uma sensibilidade mais apurada que lhe permita a descoberta contínua de novos elos entre sua própria identidade e a percepção da presença do outro em sua criação. Nesta simples conduta radica toda a aventura moderna da poesia. A partir de seu desencadeamento, a linguagem poética se reconfigura, estabelecendo novos códigos, afirmando-se como o contradiscurso que a caracteriza em sua raiz. A noção de contradiscurso está ligada à maneira como percebemos o mundo à nossa volta. Se nosso entendimento limita-se a uma condição binária, a formulação de um contradiscurso será a simples contraposição ao discurso dado. Por outro lado, se o compreendemos como uma entidade triádica, onde a presença dos opostos é mediada por uma instância que tanto pode ser sua soma como sua anulação, então o contradiscurso necessita aprofundar seu raio de ação, ciente de que tanto percepção de imagens quanto formação de idéias são aspectos que se encontram ligados a uma aceitação de contradições, formulações que podem ser recortadas por associações, golpes do acaso, acomodações, vislumbres etc. Quero particularizar estas observações preliminares abordando um momento isolado e até hoje não mensurado em meu país no tocante à afirmação de idéias e convite ao diálogo levados a termo pelo poeta Cláudio Willer no decorrer de toda uma vida, mas sobretudo em seus três livros de poesia, todos acompanhados de manifestos que optam por uma refração à mera exposição ou imposição de vertentes estéticas ou ideológicas. Em três ocasiões - Anotações para um apocalipse (1964), Dias circulares (1976) e Jardins da provocação (1981) -, ladeou a própria poesia com a exposição do pensamento acerca das questões que lhe pareciam fundamentais tanto ao entendimento da Modernidade quanto à maneira brutal como esta mesma Modernidade estava sendo aviltada no Brasil, seguramente em nome de uma oligarquia que, esquizofrênica, tem nos cerceado uma relação mais direta com a história. O que me parece essencial na recuperação dos referidos manifestos não é tanto o fato de um poeta brasileiro estar se dispondo a refletir sobre as questões básicas que orientam (ou distorcem) a contemporaneidade - este fato, por si só, já seria fundamental, uma vez que vivemos em uma sociedade cuja tônica é que seus componentes se abstraiam de responsabilidades para com ela -, mas antes que o que afirma ao longo de três décadas mantenha-se como um quadro praticamente inalterado. Ou seja, não houve tomada de consciência atrelada à sua indispensável ação (ou mesmo reação) no que diz respeito ao comportamento do poeta brasileiro ao menos no decorrer desse período que abrange a reflexão de Cláudio Willer. Talvez esta afirmação (minha) cause um certo impacto, se pensarmos em uma sempre relativa difusão de nossa poesia no exterior. Inúmeros aspectos, desde a eclosão dos ismos no princípio do século, propiciaram distorções no entendimento do papel que deveria passar a desempenhar o poeta em nossa sociedade, o mesmo valendo para a própria concepção de novas afirmações estéticas. O que Cláudio Willer põe em discussão nos manifestos é que não se pode distinguir nosso comportamento ético de seu correspondente estético. Quando uma cultura referenda a produção como condicionante para a afirmação de seus valores, já temos aí uma distorção. Em nosso caso, se pode acrescentar um fator ideológico, não na limitação binária usual, mas antes em uma perspectiva que nos define desde a colonização portuguesa: um nepotismo tão arraigado que chega a fazer-se cinicamente imperceptível ou levianamente aceitável. Nos três manifestos, Cláudio Willer aborda aquelas preocupações que eram suas, naturalmente, correlacionando-as aos itens de ocasião. Em 1964, iniciávamos nosso período histórico sob a guarda de um regime militar. Mesmo assim, Willer já destacava que "analisar a posição de cada uma dessas escolas e tendências seria a tarefa exclusiva e jamais executada da crítica literária", ao referir-se a uma necessidade natural de brasileiros perceberem o que se passa no resto do mundo. Doze anos depois, abordava uma fraude em nosso sistema educacional, que permitia intencionalmente o analfabetismo e a conseqüente desarticulação verbal de toda uma juventude. Naquela ocasião, já afirmava que "o culto esotérico das logorréias tecnocráticas, os cacoetes dos economistas, administradores e semiólogos" eram formas que incapacitavam qualquer diagnóstico lúcido em relação à época. Cláudio Willer era uma voz praticamente isolada naquela ocasião, onde a poesia brasileira mesclava aderência e isolamento, em nada sendo possível uma perspectiva de subversão de linguagem. É curioso observar que Octavio Paz tenha se deixado encantar pelo Concretismo, chegando a declarar que "em 1920, a vanguarda estava na América Hispânica; em 1960, no Brasil", uma contradição no mínimo estranha em quem igualmente dizia que o entendimento das vanguardas cabia mais a um plano moral do que intelectual. Fato é que não havia moral alguma, em uma conjuntura ética, seja no manifesto ou em sua decorrência, no que diz respeito ao Concretismo. Talvez Paz estivesse, naquela ocasião, por demais fascinado por um make it new em si e que lhe tenha despertado ainda mais a atenção o fato da novidade vir do Brasil ou dos Estados Unidos. Com que exemplo de subversão ficamos? Em um dos manifestos, Willer chama a atenção para o fato de que "a poesia é ao mesmo tempo transitória e essencial, ela reporta-se aos fundamentos, ao concreto que está por detrás das aparências, e simultaneamente aponta para seu próprio fim, para seu desaparecimento como forma autônoma de arte ou de comunicação". Diante disto, como considerar, por exemplo, o Concretismo na condição de uma vanguarda, quando se mostrava em duplo desacordo com essa referência aqui citada? A base do Concretismo não dizia respeito a uma afirmação estética, uma vez que ali se verificava a supressão do elemento humano - Adolfo Casais Monteiro observava na época que abstraído o elemento tempo caía por terra toda a concretude buscada -, mas antes a uma abstração do discurso. Eqüivalia a potencializar um radical intelectual que não encontraria jamais correspondente no plano coloquial. A condição básica de instauração do Concretismo no Brasil não diz propriamente respeito ao fascínio pela novidade de deslocamento de signos, sua intelectualização exacerbada das teorias epistemológicas em voga, impurezas de tal ordem. Sua afirmação entre nós se dá como uma confirmação de uma tradição atrelada à submissão formalista, onde a poesia se realiza tão-somente como um entramelado de fibras que resultam apenas em uma perspectiva formal. Ao ignorar o outro, se ignora a si mesmo e, por conseqüência, a própria condição de atuação nos domínios de tempo e espaço que nos toca viver. Em uma relação binária já aqui mencionada, o brasileiro jamais conseguiu entender a si mesmo senão medido por esse absurdo. Mesmo assim, se poderia considerar uma frase de Casais Monteiro, quando diz que "o mal da poesia são os falsos poetas que toda a gente entende e não os revolucionários que toda ou quase toda a gente considera ininteligível". Embora entendendo o que fala Monteiro, é importante lembrar que o poeta busca mais do que uma comunicação, ou melhor, busca uma afirmação dessa perspectiva de comunicação. A dúvida que nos anima é até que ponto teria sido fraudada uma perspectiva de contradiscurso como característica de nossa cultura. Recorrer aos manifestos de Cláudio Willer apenas afirma sua agudez envolvendo os tópicos essenciais de nossa explanação. Logo no primeiro deles, Willer refere-se a "um equívoco na condenação de posições de isolamento, de marginalidade, de individualismo e intransigência frente ao engajamento político", lembrando que "este tem implicado uma série de concessões, de nivelamentos, em suma, em um conformismo e uma acomodação apenas dispondo de outro nome e justificados pela promessa de uma mudança social a longo prazo". O manifesto do poema-práxis, proposto por Mário Chamie em 1961, mencionava uma "realidade escolhida" como área de interesse para a construção de um poema, ou seja, apostava em uma dissensão entre dialética e vivência. Por outro lado, aspectos como onirismo e percepção aguçada da realidade jamais foram bem vistos em nossa tradição literária, e a própria concepção de experiência individual sempre esteve nublada por uma leitura equívoca de experiência coletiva, uma situada em contraposição à outra. Cabe aqui recordar com Willer um comentário de Willer a propósito de Stekel, "de que a sociedade não pode ver livremente concretizada em indivíduos aquilo que seus membros reprimem". A menos que tomemos por base a exceção e não a regra, a tradição poética brasileira vincula-se a um formalismo inócuo e exacerbado, raras vezes encontrando-se com a conhecida proposição de Maiakovsky, de que não há arte revolucionária sem forma revolucionária. Embora o manifesto do Concretismo situe parcialmente o Dadaísmo entre seus precursores, nem de longe se pode vincular a vanguarda brasileira àquela "atitude metafísica" ou ao "espírito profundamente anárquico" que, segundo Duchamp e Breton, respectivamente, caracterizava Dadá. O Brasil de então se escondia das perseguições ideológicas, ou aderia às inúmeras variantes reacionárias de ocasião. Uma vez mais nosso alardeado perfil passional encontrava mais facilidades na imitação do que na fundamentação de uma afirmação ou resistência cultural. No segundo manifesto, Willer chama a atenção para o fato de que a poesia não pode se desvincular de seu componente social, situando que "perder isto de vista leva invariavelmente ao formalismo, ao cultivo de alguma proposta estética como fim em si, desvinculada das reais condições sociais e históricas com as quais se relaciona", observando ainda que tal circunstância "passa a ser consumismo, o culto reacionário de algum modo de expressão pretensamente contracultural, porém desvinculado de qualquer ação concreta contra esta mesma cultura". O próprio Willer acrescenta o risco constante de se "estabelecer uma vasta confusão entre antecedentes e conseqüentes", o que nos leva a exemplificar a risível "permanência livre da negatividade permanente" defendida pelo Poema-práxis, ou a obsessão por transplantar para áreas de concepção dualística da realidade a síntese do hai-kai, efeito distorcido de um "método ideogrâmico" defendido pelo Concretismo. O consumismo a que se refere Willer revela-se na relação de dependência subjugada entre criação e produção, o estilo invariável com que imprensa e mundo editorial se sustentam em meu país, culto maçônico ao corporativismo, coadjuvantes de uma menos realidade - em contrapartida ao sentido de mais realidade defendido pelo Surrealismo -, à qual se encontra hoje inteiramente comprometida toda a nossa expressão artística ou, como queiram, produção cultural. Vivemos uma realidade absolutamente mascarada. Nossa obsessão pelo cinema, por exemplo, limita-se a um plano competitivo, uma estratégia de mercado. O grande negócio em que se transformou a canção popular quase eqüivale à exportação de jogadores de futebol. A única ideologia possível chama-se mercado, com seu pressuposto formalista, ao qual aderimos integralmente. Em momento algum se percebeu no Brasil que não há maneira saudável de compactuar com os estatutos de uma sociedade repressiva. Hoje o país se descaracteriza a olhos vistos. Mesmo uma imagem criada no exterior, se pensarmos na bossa nova ou no futebol, tende à sua distorção ou diluição. Uma vez mais o que estava presente nos três manifestos de Cláudio Willer se repete. Os mais jovens poetas brasileiros que possam ser mencionados como tais inscrevem-se já em uma tradição formalista, nosso parnasianismo perene, inesgotável, e se drogam daquela "realidade escolhida" como pequenos burgueses satisfeitos da emanação de seus discursos, ainda que sem relacionar-se com o resto do mundo. Talvez a terra mais inóspita à poesia se chame Brasil. Não que não tenhamos grandes poetas. Mas que somos súditos em demasia. E nosso comportamento se mescla àquela presunção que conspira contra o enriquecimento de uma idéia, sua fundamentação e propagação. Nossa idéia aqui era abordar uma fraude sistêmica no que se poderia chamar de contradiscurso. Uma absurda falta de caráter consubstancia um perfil nacional. Livros como El laberinto de la soledad ou El nicaraguense, respectivamente de Octavio Paz e Pablo Antonio Cuadra, situam um padrão de reação a tópicos internos e externos de uma cultura. Penso que Cláudio Willer, de alguma maneira, se aproxima deles, por uma razão simples: nenhum outro poeta no Brasil tomou para si a tarefa de considerar como indissociáveis as relações entre poesia e sociedade. De volta ao início, nossa idéia de modernidade esteve sempre mais ligada à complexidade formal, uma vez que nosso beletrismo jamais cedeu à visceralidade exigida pela poesia moderna. Willer tem razão: quando parecemos inovadores o somos tão-somente de um ponto de vista tangencial, ou seja, pendemos "mais para o polo da ironia, da sátira e da paródia, do que da criação de novos códigos, de um verdadeiro contradiscurso". Tal condição avança e hoje determina uma relação quando muito tangencial entre poesia e sociedade. Nossos poetas seguem escapando de si mesmos, acreditando-se herdeiros de uma tradição que os afasta de um diálogo franco com outras culturas. Creio que juntamente com os tolos que se acreditam partícipes de uma revolução da linguagem a que intitulam neo-barroco, os brasileiros que se excedem em uma debilidade meramente descritiva de cenas ajudam a compor um quadro de estigmatização que afirma, em nosso caso, uma identificação voluntária com essa tradição formalista, aristotélica, causal, que define a poesia brasileira ao longo dos tempos. | |
Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta e tradutor. É um dos editores da revista Agulha (www.revista.agulha.nom.br). | |