O LIVRO INVISÍVEL DE WILLIAM BURROUGHS
FLORIANO MARTINS

INDEX

Livro invisível
When you hear sweet syncopation
Pode repetir?
O que estamos fazendo aqui?
O que sente pelas mulheres?
That's the way

O que sente pelas mulheres?

BURROUGHS 1 – O que sente pelas mulheres?

BURROUGHS 3 – Um personagem de Joseph Conrad as definiu melhor do que ninguém. Diz ele que as mulheres são uma perfeita calamidade. Creio que foram um erro básico e que todo o universo dualista nasceu a partir deste erro. As mulheres já não são necessárias para a reprodução.

BURROUGHS 1 – Não foi Artaud quem disse que a sexualidade é uma barreira que impede a aproximação do homem e da mulher?

BURROUGHS 3 – Não me interessa essa aproximação. Não a vejo como barreira. Creio que toda a orientação anti-sexual de nossa sociedade está basicamente manipulada por interesses femininos. Porque manter submersa a sexualidade faz parte de seus interesses. São os interesses das mulheres que são anti-sexuais.

CONFERENCISTA – The naked lunch chegou a ser considerado por Norman Mailer como um trabalho alucinatório escrito por um gênio. Por sua vez, Burroughs admite que jamais o teria escrito sem haver passado por aquele incidente da morte de sua mulher. Certa vez declarou sentir-se forçado à conclusão apavorante de que nunca teria se tornado um escritor sem a morte de Joan. Disse então: "Vivo sob a ameaça constante de possessão, uma necessidade constante de escapar da possessão, do controle. De maneira que a morte de Joan me pôs em contato com o invasor, com o espírito feio, que me manobra em uma luta vitalícia na qual não tenho a escolha de não participar."

BURROUGHS 2 – Bill, você se interessa por insetos?

BURROUGHS 3 – O velho escritor vivia em um vagão reconvertido ao pé do rio, em um depósito de lixo. O lixo na realidade era um ferro-velho pertencente a uma companhia para a qual ele trabalhava na condição de guarda. Comandante de um depósito de ferro-velho. Por vezes punha um boné de velejador. O escritor já não escrevia. Tinha um bloqueio mental. Acontece.

CONFERENCISTA – 11 de agosto de 1997. Poucos minutos atrás ouvi as notícias sobre a morte de William Burroughs. Nascido em fevereiro de 1914, Burroughs cresceu em St. Louis, dotado de uma fascinação por armas e crime, além de uma inclinação natural por romper todas as regras surgidas à sua frente. Não se ajustando à sociedade burguesa, embora concluindo um curso em Harvard, Burroughs abandonou tudo e experimentou inúmeros e intrigantes estilos de vida, sempre com o apoio financeiro de seus pais. Logo no início dos anos 30 viajou para Nova York, decidido a procurar por sua liberdade junto a um mundo de criminosos e viciados. Tornou-se então viciado em heroína. Ao conhecer Lucien Carr este logo lhe apresentou uma multidão de jovens loucos e inconformados, estudantes na Universidade Columbia, entre os quais Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Joan Volmer, com quem acabaria se casando. Embora fosse bem mais velho que os demais, causou grande impressão por sua inteligência e um acurado cinismo mundano. Além disto, despertava atenção sua convivência com criminosos. Burroughs, entretanto, não havia ainda começado a escrever. Foi uma época de grandes experimentações, drogas, homossexualismo, transgressões de toda ordem. Mas Burroughs logo viajaria para o Texas, onde tentaria a vida como fazendeiro, plantando laranja, algodão e maconha. A visita que lhe fez Kerouac e outros amigos encontra-se descrita em On the road, em cenas inesquecíveis. Perseguido pela polícia, em função das drogas, Burroughs levou Joan e as crianças para o México, onde acabaria se dando o absurdo fato que mudaria sua vida. Ao exibir para amigos uma arma, anunciou seu ato a Guilherme Tell, pondo um vidro na cabeça de Joan e a matando com um único tiro. Após o incidente, as crianças foram viver com os avós e Burroughs vagou por vários lugares na América do Sul, logo indo parar em Tânger. Vivia ali enquanto seus amigos mais próximos, Kerouac, Ginsberg e Gregory Corso, agitavam Nova York com a Beat Generation. Após um período de grande agitação e repercussão, Ginsberg e Kerouac foram encontrar-se com Burroughs em Tânger, e ali o ajudaram a organizar a pilha de histórias sujas que vinha escrevendo, inteiramente à toa. O título acabou sendo sugerido por Kerouac. Assim nascia The naked lunch, O lanche nu, livro que tornaria Burroughs uma celebridade. Logo em seguida, através de um método que ficaria conhecido por cut-up, Burroughs iria compor uma série de romances a partir de retalhos de vários textos e anotações de viagem. Embora não sendo considerado originalmente um beatnik, seu nome encontrou-se sempre vinculado, de uma forma ou de outra, a essa geração. Era uma figura extremamente polêmica, irritantemente provocadora, sendo odiado, em particular, pelas mulheres, pois sobre elas publicou inúmeras e sórdidas generalizações. Sua escritura crua e o humor corrosivo, com uma instigante ênfase dada à liberdade pessoal, incluindo-se aí as abordagens homossexuais e do mundo das drogas, tornaram-no tanto atraente quanto repulsivo. Muito admirado no mundo da música pop, com parcerias surpreendentes com Laurie Anderson e Tom Waits, entre outros, chegou a gravar um disco juntamente com Kurt Cobain, vocalista do Nirvana. Seus textos sobre mídia colocaram-no em um centro de atenções compartilhado por personalidades como Timothy Leary, Marshal McLuhan e Andy Warhol. No dia 2 passado, aos 83 anos de idade, morreu Burroughs, de uma parada cardíaca. Sua vida foi constantemente confundida com um sórdido sentido de obscenidade, tendo sido tachado de paranóico e moralista. Muitos defendem que sua desconcertante atuação marca um momento, juntamente com toda a geração Beat, de grande importância na cultura estadunidense, não por suas realizações, mas antes como um exemplo lastimável de sua degeneração. Crítico feroz do way of life, Burroughs escreveu romances e contos em que o realismo exasperado se mescla a experiências estilísticas que o aproximam de James Joyce. Seus temas mais constantes são a burocracia estatal, a guerra, o homossexualismo, as drogas, os vícios, a tirania psiquiátrica, tudo visto sob uma ótica sombria. Ele mesmo sintetizou sua obra…

BURROUGHS 3 – O velho escritor disse.

CONFERENCISTA – Como disse?

BURROUGHS 2 – Toda a minha obra é dirigida contra aqueles que estão determinados, por estupidez ou por desígnio, a fazer explodir o planeta ou torná-lo inabitável.

CONFERENCISTA – Como o pessoal da publicidade…

BURROUGHS 3 – Como o pessoal da publicidade… estou interessado na precisa manipulação da palavra e da imagem para criar uma ação, não a de sair para comprar uma coca-cola, mas a de criar uma mudança na consciência do leitor.

BURROUGHS 3 – Eu trabalho para o buraco negro

Onde nenhuma lei é válida.

BURROUGHS 3 – Os velhos romancistas, como Walter Scoth, passavam o tempo a escrever para se livrarem das dívidas… louvável… em um escritor a tenacidade é atributo precioso. Por isso que Bill desata a escrever para se livrar da morte.

BURROUGHS 1 – Da morte?

BURROUGHS 3 – A morte, segundo ele, eqüivale a uma declaração de falência espiritual… Tem de se ter o cuidado de evitar esse crime que é o encobrimento de fundos e rendimentos… Um inventário suficientemente detalhado mostra muitas vezes que os fundos, os rendimentos e os valores colaterais são consideráveis e que a declaração de falência afinal não se justifica. Um escritor tem sempre de ser meticuloso e escrupuloso no que respeita às suas dívidas.

BURROUGHS 1 – E qual tem sido seu trabalho?

BURROUGHS 3 – Eu trabalho para o buraco negro

Onde nenhuma lei é válida.

Trabalhando para o buraco

Eu faço uma mula parir

Sou espião não convidado

Alma errante sem dado

Irrompo aqui

Irrompo ali

Não tenho meta humana

Sou singular

Não tenho eu humano

Nem humano paga meus impostos

Ou liberta meu eu

Sou fechadura sem chave

Uma singularidade

Eu trabalho para o buraco negro

Onde nenhuma lei é válida.

BURROUGHS 1 – Em que consiste tal singularidade?

BURROUGHS 3 – Há trinta anos Burroughs escreveu um livro intitulado O rapaz que esculpia animais de madeira. A história dizia respeito a um rapaz aleijado que esculpia animais de madeira e lhes dava vida através de certos rituais masturbatórios. Quando as criaturas voltaram a ser de madeira, então conseguiu dar-lhes uma vida final através de sua própria morte. Os animais fugiram e espalharam-se. O livro o tornou famoso. Foi cruelmente atacado e extravagantemente elogiado. Burroughs nunca mais escreveu.

BURROUGHS 1 – Burroughs nunca mais escreveu?

BURROUGHS 3 – O velho escritor já não conseguia escrever porque tinha chegado ao fim das palavras, ao fim daquilo que pode ser feito com palavras.

BURROUGHS 2 – Nunca se possui verdadeira coragem antes de se perder a coragem. Mas perder de modo abjeto, completo… desatado a fugir, rastejar. E não há alteração que se compare à da coragem reconquistada. E por isso é que é quase sempre fatal.

BURROUGHS 1 – E como se transcende?

CONFERENCISTA – E se não há mais nada para se transcender, por que então se perambula por aí, à espera de que?

BURROUGHS 1 – Como?

CONFERENCISTA – É o que diz precisamente um trecho de seu romance As terras do poente

BURROUGHS 3 – Psiu…

BURROUGHS 2 – Nunca se luta frontalmente contra o terror. Essa de termos de nos dominar é uma grande merda. Quanto mais nos dominamos, piores as coisas se tornam. Deixem o medo entrar e observem-no: de que cor é? Que forma possui? Que nos encharque e se despeje. Dar um passo atrás, isso sim. Fingir que não o vemos. Agir normalmente, como se fosse banal.

CONFERENCISTA – Não resta dúvida de que o terror agudo e o aborrecimento mortal são duas coisas incompatíveis.

BURROUGHS 2 – [virando-se para Burroughs 3] Quer fazer esse merda se calar.

BURROUGHS 3 – [virando-se para Conferencista, põe um dedo na boca, pedindo silêncio.]

BURROUGHS 2 – Há imensas maneiras de nos distanciarmos do medo. O melhor é ficar calado e deixar o medo falar. Logo veremos que o que há a fazer, é consoante o que ele disser. A morte não gosta de ser vista de tão perto. A morte tem sempre de extrair reconhecimento surpresa: “Tu?!” É a última pessoa que se esperava ver e, simultaneamente, quem mais poderia ser?

BURROUGHS 3 – A morte…

BURROUGHS 1 – Quem é?

BURROUGHS 2 – Quem mais poderia ser?

(Apagam-se as luzes sobre as cadeiras, acende-se o filete de luz sobre o boneco de ventríloquo. Ouve-se então, em off, a voz de Burroughs lendo “That’s the way”.)

 
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