O LIVRO INVISÍVEL DE WILLIAM BURROUGHS
FLORIANO MARTINS

INDEX

Livro invisível
When you hear sweet syncopation
Pode repetir?
O que estamos fazendo aqui?
O que sente pelas mulheres?
That's the way

O LIVRO INVISÍVEL DE WILLIAM BURROUGHS

(Palco às escuras. Ao canto direito acende-se a luz de uma luminária sobre uma mesa tomada de papéis, garrafa de vinho, copo, cinzeiros. Sentado ali está Conferencista a remexer nos papéis. Acende um cigarro, põe vinho no copo, bebe. Nisto vão entrando no palco Burroughs 2 e Burroughs 3, ambos com sobretudo e chapéu, pegando duas cadeiras espalhadas e sentando na outra extremidade. Conferencista segue arrumando seus papéis, como se nada estivesse acontecendo ao seu redor. De um ponto à esquerda da platéia ouve-se uma voz de Burroughs 1, compassadamente. Durante todas as cenas, sua voz será ouvida de distintos lugares da platéia.)

BURROUGHS 1 – Não há nenhum outro lugar para se ir

O teatro está fechado

Cortem linhas de música

Não há nenhum outro lugar para se ir

O teatro está fechado

Cortem linhas de palavra

Esmaguem as imagens de controle

Esmaguem a máquina de controle

(Burroughs 2 inicia um diálogo com Burroughs 1. Conferencista permanece arrumando seus papéis.)

BURROUGHS 2 – Sim, a vida é um corte. Toda vez que você caminha rua abaixo, ou mesmo olha pela janela, sua consciência é continuamente cortada por fatores fortuitos. Tento tornar isto explícito cortando palavras. Esta é a minha teoria sobre arte. A arte está alertando o homem sobre si mesmo, ressaltando os fatos atuais da percepção.

BURROUGHS 1 – Mas diga-me, meu caro Burroughs 2, acaso a capacidade de ver o que temos à frente é uma forma de escapar da imagem-prisão que nos rodeia?

BURROUGHS 2 – Decididamente, sim. Porém muito pouca gente tem esta capacidade, e cada vez serão menos, conforme passe o tempo.

BURROUGHS 1 – Por que?

BURROUGHS 2 – Por uma razão: a absoluta barreira de imagens a que estamos submetidos acabará embotando-nos. Recorde, em comparação, que há cem anos havia poucas imagens. As pessoas viviam em um entorno mais simples, em um meio ambiente camponês, tropeçavam em poucas imagens, e essas poucas eram vistas com bastante clareza. Porém se alguém é bombardeado, sem descanso, com a propaganda inscrita nos caminhões ou taxis que passam…

BURROUGHS 1 – …com as imagens da televisão e dos jornais…

BURROUGHS 2 – …sim, com as imagens da televisão e dos jornais, esse alguém acaba embotado. Forma-se uma névoa permanente diante dos olhos e já não se vê nada.

BURROUGHS 1 – E o que se deveria ver?

BURROUGHS 2 – Que não há nada interposto entre uma pessoa e a imagem. Um granjeiro vê suas vacas de verdade: vê o que tem diante de si e o vê bem claro. Não é um problema de hábito: o problema é que algo se coloque entre alguém e a imagem, de tal forma que o impeça de vê-la. Não quero dizer que o granjeiro tenha nenhum tipo de identificação mística com a vaca, mas sim que sabe quando a vaca não está bem. Ele sabe tudo o que se refere à vaca, a forma com que a vaca lhe é útil e como se encaixa em seu meio ambiente.

BURROUGHS 1 – Todo esse desejo de clareza não entra em conflito com as infinitas possibilidades exploratórias de teu método de criação?

BURROUGHS 2 – Quando a gente fala de clareza na escritura, de uma forma comum, refere-se à trama, à continuidade, à apresentação, ao nó e ao desenlace, à adesão a uma ordem lógica. Porém as coisas não ocorrem por acomodação a uma ordem lógica. Nenhum escritor que pretenda aproximar-se do que verdadeiramente ocorre na mente humana e no corpo de seus personagens pode restringir-se a uma estrutura tão arbitrária como a ordem lógica. Joyce foi acusado de ser ininteligível, e note que se limitava a apresentar apenas um nível de fatos mentais: o monólogo consciente sub-oral. Penso que é possível criar acontecimentos polinivelados e personagens que o leitor possa compreender comprometendo seu ser orgânico.

(O diálogo é interrompido pela voz de Burroughs 3, à direita.)

BURROUGHS 3 – A estrada é tortuosa e improvável. A passagem hoje fácil é a ratoeira de amanhã. O caminho óbvio é, a maior parte das vezes, o caminho dos tolos. E cuidado com os caminhos do meio, os da moderação, do bom senso e do cuidadoso planejamento. Contudo, isso não quer dizer que não haja sempre tempo para a moderação, o bom senso e o planejamento. Pode-se afirmar que qualquer plano de imortalidade que não dependa do prolongamento da vida do corpo físico, do seu remendo e conserto, como se faz com carros antigos, é a pior forma de planejamento que existe. É como apostar em um favorito e dobrar a aposta quando ele perde. Em vez de uma pessoa se separar do corpo, a pessoa passa o tempo a afundar no seu próprio corpo, tornando-se assim cada vez mais dependente dele: dependente de cada respiração roubada aos pulmões transplantados, de cada ejaculação do renovado falo, de cada excreção dos intestinos novos. Só que o caminho das transplantações atrai idiotas que se farta. Assim é que são muito poucos os peregrinos que chegam vivos à cidade da Última Oportunidade. Preguiça, indulgência, álcool, vícios de toda ordem, velhice, estupidez, tudo isso são obstáculos. Mas a falta de uma coragem especial é a principal barreira, a única que é insuperável: a coragem de enfrentar o opositor, o inimigo final. Sem tal coragem, nunca se chega à Última Oportunidade. Nem se consegue voltar ao princípio. E para se sair da Última Oportunidade é necessário ser o vencedor de um duelo travado até à morte.

BURROUGHS 1 – Quem fala?

BURROUGHS 2 – O que diabos importa?

BURROUGHS 1 – Quantos de vocês estão aqui?

BURROUGHS 2 – O que diabos importa?

BURROUGHS 1 – Quantos?

BURROUGHS 2 – Nem se consegue voltar ao princípio.

BURROUGHS 3 – Nós, poetas e escritores, somos muito arrumadinhos. Desaparecemos nas noites do pirilampo, um passeio e um apito de comboio ao longe. Vivemos dentro da empregada que descasca um ovo cozido para alguém convalescente há muito curado. Vivemos no último e no maior dos sonhos da humanidade.

BURROUGHS 2 – O que diabos importa?

BURROUGHS 1 – Quem fala?

BURROUGHS 3 – Eu vivia em um quarto no bairro nativo de Tânger. Não tomava banho havia um ano, nem trocava minhas roupas ou as tirava do corpo, exceto para espetar uma agulha de hora em hora na carne de madeira fibrosa e cinzenta do vício terminal. Nunca limpei ou espanei o quarto. Caixas de ampolas vazias e lixo se empilhavam até o teto. Luz e água tinham sido cortadas havia tempo por falta de pagamento. Eu não fazia absolutamente nada. Conseguia olhar para a ponta dos meus sapatos oito horas seguidas. Só me movia quando terminava a provisão de droga. Se um amigo ia me visitar, eu ficava sentado, sem me importar que ele tivesse entrado no meu campo visual, ou que saísse dele. Se morresse ali, na minha frente, eu ficaria a olhar para o meu sapato, à espera de poder revistar seus bolsos. Você não? Pois eu nunca tinha droga suficiente. Ninguém jamais tem.

BURROUGHS 2 – Eu estava simplesmente pronto para me acabar.

BURROUGHS 1 – Alguém raramente aparecia?

BURROUGHS 2 – Tolo.

BURROUGHS 3 – O que restava para ser visitado?

BURROUGHS 2 – O que diabos realmente importa?

(Apagam-se as luzes sobre as duas cadeiras, enquanto no centro do palco, mais ao fundo, um filete de luz incide sobre um caixote no qual se encontra um boneco de ventríloquo. Ouve-se então a voz de WB, em off, lendo “T‘ ‘ain’t no sin”. Enquanto isto Burroughs 3 perambula por todos os lados do palco, imitando com deboche o jeito de WB ler. Ao final do poema, ouve-se sua própria voz, relendo o poema de maneira bastante caricatural. Ao concluir a leitura, retorna a seu lugar.)

 
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