::::::::::::::::::::::::Floriano Martins:::::::
ÚLTIMO BOLERO
1. Inviolável virtude
Vens do fogo: a casa nua, o corpo vazio.
Um pé no imprevisto, afagas uma tensão
constante: piedade a quem te chama.
Vencido o esmalte das visões: sombras
emergidas de semblantes esgotados.
Vulto luzindo em seu feixe de obsessões.
Sexo com que me apertas, gatilho de noites
e pastagem de uma agitação de luzes.
Nunca te vi tão linda como a espreguiçar-se
excitando a combustão: um seio lendário
em sua marca de olho de peixe e o transe
de ancas ensopadas de ritmo desesperado.
Incêndio nos ombros e improviso de lábios.
Nenhum deus jamais decifraria teu riso.
2. Oração rarefeita
Em versos que sabem repetir-se, desperta lentamente
a tua noite acumulada em meu peito: folhagem abrigada
à beira do abismo, e então me sentes, de bruços,
flagrante de peixes escavando nuvens na acústica do mar
que embala teus sonhos: elegias que a todo instante
acariciam o cenário de mamilos, feixe de ritos,
luzes em pranto encontradas sob a pele, suores louvados.
Dorso apegado ao entusiasmo, com suas encostas
folheando estrofes do fogo aceso no excesso de risos.
Ali onde eu espero que a tua eternidade me acalme,
um bailado de ancas faz da noite um gato na janela
a revelar em seu olhar o último andar onde renasces.
Roubas o limiar de rumores, as dissonâncias do amor.
Não te escondes jamais atrás de um segredo.
3. Na pele salgada do tempo
Eu bebo a soma de teus rios, quando abres
o escândalo rascunhado pelo próprio punho
e um corpo banhado em murmúrios se agita
escondido do destino numa velha escrivaninha.
Ali dentro compartes idiomas esquecidos,
ruínas disfarçadas, rótulas místicas,
um remorso retirado de cena antes mesmo
que compreendesse o papel que lhe cabia.
Eu me embriago com teus vapores sem pausa,
sombras de onde se avista a maré escancarada
de tuas ânsias. Dali também vejo o rastro
de vultos perseguidos pela angústia, a tua
árvore decaída em susto e mistério, a minha
vida subitamente enterrada em sábio alvoroço.
4. Relendo um esboço perdido
A tua caligrafia vibra em meu corpo,
suspende as distâncias, elude o mito
do amor inocentado sem tumulto.
A meiguice de tua escrita me esvazia.
Eu me lavo com tuas palavras, e navego
a insensatez de suas virtudes: falam
através de mim em impetuoso idioma.
Por onde viajo há mil anos me eleges,
sempre o mesmo homem relendo sombras,
como se em transe a pele fizesse aflorar
uma outra agonia, vômito de vertigens,
um novo hóspede de teu fogo, anjo tremente
com seu manuscrito arrebatado e sutil.
De um súbito naufrágio em teu seio renasço.
5. Vislumbre peregrino
O teu sorriso fala comigo pelo corpo todo.
Lábios os teus lábios vastos de noite lasciva
trançada em pelos de lâmpada, fiação de algas
exaurindo as margens do mundo que me pões
pelo avesso em uma surdina de engodos.
Beijo a palma de teus sonhos, o instrumento
anunciado no extravio de páginas com que
esvoaças as ancas em um ardil de ânsias.
O teu sorriso ancorado em um bosque suspenso,
estrondo de penumbras e letras desfeitas, tudo
revirado dentro da casa que interrompes
com a tua nudez ateada em grutas e desertos.
Mascas um salmo enquanto me percorres,
toda a franqueza do êxtase em teu sorriso.
poemas & imagens: floriano martins
junho/julho de 2007

 
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