Floriano Martins
PEQUENO BOSQUE DE IMITAÇÕES

 

Dios estaba en la puerta.
Cuidaba de no envejecer.
César Moro

Pobre deus o que desconhece
Que a morte não se repete.
F. M.

Sobre a mesa o corpo iluminado, com volteios de quem domina o abismo. Corpo-isca, em rasgos que tangem as margens, a areia faminta da pele. Horizonte cindido em compostos de um mesmo desatino.

Começo a refazê-lo pelas sombras. Por onde a noite se diz noite em seus disfarces e o olhar supõe conter todas as formas. Sua nudez reconhece os vestígios da imaginação. Soletro o bulício de cada momento revisto pela memória.

Eu o tenho pela primeira vez em minhas mãos e me surpreende encontrar meu nome esmaecido em seus tecidos. Releio agora esta peregrinação absurda traçada como um jogo, a bússola desfalecida, o escombro de palavras sussurradas em algum encontro deixado para trás.

Este corpo imóvel sobre a mesa possui irrequieta linguagem. Um coro voraz de sentidos reinventados, batuque incessante de imagens reconstituindo seus crimes.

O que lhe resta ainda vem das entranhas: a morfina do sorriso, o altar abandonado de seu púbis, traços rochosos nos joelhos, fendas esboçadas no dorso.

Eu faço cantar a sua torre esquecida, balcão de cinzas, mortes anunciadas em jardins e casebres. Um corpo assim reunido de uma ponta a outra de sua intempérie, em minhas mãos nesta mesa fria. E descobrir-me parte de sua vida sem que de outra maneira jamais o soubesse.

Tão indolentemente nua. Violentada em sua beleza e agora violenta em si e imponente. Inútil e perigosa.

 

Tudo o que atravessamos neste corpo é desolação. Sonhos que regressam de um labirinto gasto. A alma com seu cárcere alimentado por um teatro de vigas insones.

 

Abro seu peito e uma solidão arenosa revela os livros da insônia. Folhagem de cenas estremecidas, domínios retalhados por um ofício demente. Como convencer a memória do valor de certos segredos pouco atrativos?

 

No corpo sobre a mesa distingo frases aflitivas que percorrem o tremor da memória. Quantos mortos em mim serão seus? Segredos entornados fora de cena. Como não pensar em seu sexo enquanto o costuro?

 

Um tumulto de imagens abastece o mundo. Tudo muda de lugar. A dor não está mais aqui. Com quanto mais nitidez o observamos mais nos sentimos confusos em relação ao que supomos ser.

 

Rios incendiados, folhagem de angústias, infâmia mascando seus planos. Até mesmo o esquecimento enlouquece ao reler as vísceras do inconsciente.

 

Não suporto mais esquecer ou lembrar. Toda opção é uma pira funerária, leviana, cadáveres boiando em um salão de espelhos. Os corpos se amontoam em um só e ninguém tem piedade de nós.

 

Quantos mortos passaram por aqui desde que remendo-os para que se tornem menos impróprios? Tantos, e jamais me recriminaram o método.

 

A memória é um mecanismo de repetição, ou ramo de insistências, como um negócio bem gerido. Dissecamos suas reações, ajustamos plaquetas, laudos, sombras, despojos… De nada adianta. Vagamos no assombro de cada ato. Como se já não fôssemos parte de nós.

 

Identificamos o que vemos, sem compreender a frustração que nos iguala. Ainda leio seus nomes saindo do fogo, enquanto disseco vícios como um pequeno bosque de imitações. Como exorcizar a memória no estado em que se encontra?

 

Este corpo se repete em mim com seu abandono sem limites. Costuro o ventre despedaçado, e penso no quanto deve ter simplificado o amor em sua vida. A morte se expressa sempre a cântaros, o que a vida raramente consegue.

 

Corpo sobre a noite, mesa fria, árvore do ofício, a fiação exangue com que me desalenta e enfim me tem como um navegante dedicado de suas visões e irreconhecíveis conjuros. Terei amado tanto esta mulher que já não me reconheço nela?

[Março de 2007]
Prosa poética & colagens: Floriano Martins [Brasil]
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