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No século passado, e provavelmente no anterior, dezenas de mulheres deram o seu habitual contributo à cultura da nossa sociedade, sem que do gesto tenha restado mais do que o indício que permitiu agora a Eugénia Vasques trazê-las à boca de cena. Eis um primeiro motivo de desaprovação da autora, manifesta na crítica à crítica de teatro, que se revela sexista entre preconceitos menores, como a hipervalorização de um valor de valor altamente dubitativo, como é a qualidade, em suma, aquele "não sei quê", como diria Benito Feijóo, tão inapreensível que nem substantivo tem que lhe confira alguma substância conceptual. Porque a mulher é discriminada, hoje e aqui menos do que ontem ou além, mas em todo o caso continua a ser objecto de alguma condescendência masculina, pela putativa excepção a uma regra que definitivamente a colocou entre a classe dos seres inferiores, e porque perseguir esse "não sei quê" que transmuta em ouro o chumbo das artes não leva mais longe do que dar razão a Feijóo, por muito mais extensa e variada a exposição do facto - sim, a maior qualidade de uma obra em relação a outra depende de "um não sei quê" diverso talvez do "não sabes o quê" -, enfim, devido a estes dois pecados capitais cometidos contra a mulher que faz teatro, Eugénia Vasques desviou-se de forma radical destes dois filões retóricos e meteu mãos à sua obra como trabalhadora de outra empresa. A empresa começa por ser um projecto de investigação de que o livro em epígrafe é um dos resultados, e acaba por revelar uma metodologia que produz frutos inesperados, como esse de nos desvendar uma lista de dezenas de mulheres a actuarem na cena escrita do teatro, quando neste país, todos o sabemos desde o liceu, só existe um dramaturgo, Gil Vicente, e uma peça de teatro, o "Frei Luís de Sousa". Ora não é aceitável o comentário que à lista ou mesmo ao livro de Eugénia Vasques se possa fazer de inocuidade por irrelevância dos escritos teatrais das mulheres. Posto de parte esse princípio preconceituoso, o que salta à vista é um outro ouro, daí que tenha começado por falar do contributo habitual da mulher para a cultura da nossa sociedade e não do seu contributo para um museu de teatro. O museu foi abolido em Portugal, pelo menos para mim, em 1977 ou 1978, na sequência da "Alternativa Zero" (veja o dossier Ernesto de Sousa, neste site), quando pela primeira vez fui confrontada com algo que era representação mas nada tinha a ver com salas de teatro - a actuação do Living Theatre nas ruas de Lisboa. Abolido o palco, abolida a fronteira entre actor e espectador, abolida a literatura como estruturação mais forte da obra, ficava claro o sentido do teatro para a vida, para a inter-relação sem equívocos de estar e representar, para o anseio de participação do público numa entre outras maneiras de viver, com ou sem esse colar de inapreensíveis estrelas que é o "não sei quê" do valor museológico da obra de arte. É esta opção do viver o teatro como dinâmica de uma cultura que Eugénia Vasques reinveste de sentido, ao dar atenção ao número das que se arriscaram e estiveram no momento próprio onde se sentiram chamadas. Ao deixar de lado metodologias que entronizam uma peça e um autor, lançando um véu funerário sobre o que decerto não foi em época nenhuma um cemitério da palavra em acto, a autora ilumina uma cena muito mais complexa, ainda que eventualmente sem mulheres, a dos mistérios, entremeses, carnavais, liturgias, celebrações, paradas militares, todo o teatro que é afinal a nossa vida. |
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