OFÍCIO DAS TREVAS / Oitava cena
Maria Estela Guedes
03-12-2004
www.triplov.org

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CENA 8

Lucy e Yoruba, sozinhos, afagam as mãos

Lucy - O maior perigo disto é a manipulação ideológica da Natureza. Porque se não há regras, nenhum código ético na identificação dos seres, posso varrer uma fauna do mapa a meu bel-prazer, criar outra totalmente diversa. Como aconteceu com os répteis de Cabo Verde... Ora isso é tão perigoso como as metáforas. Mais perigoso que a engenharia genética, porque com o racismo ainda acabam por nos varrer a nós...

Yoruba (toca timidamente a mão de Lucy, compara-as) - Skin...

Lucy (faz-lhe uma festa na mão) - Skin head... Não tenhas medo, Yoruba... Somos iguais, somos irmãos, a pele não tem importância nenhuma...

Yoruba - Para os outros, tem... (tira um frasquinho do bolso, põe um pouco nas costas da mão dela, depois nas dele; ela cheira as mãos de ambos, deliciada) Almíscar, é importante...

Dangbé (gregoriano) - Cantamos nas trevas, vivemos nas trevas, ancorámos nas trevas... 

Afastam-se todos e deixam
Lucy e Yoruba sozinhos 

 

Lucy - Estou muito magoada... Não chegará o invisível passageiro? Toda a noite de vigília e ele não veio... Tenho pena... (estuda o mapa) Podíamos seguir esta rota... De qualquer maneira, temos sempre de passar por Cabo Verde... E mesmo que não tivéssemos, Cabo Verde é a minha via sacra... (começa a choramingar). 

Yoruba - Eis que a piroga lhe deu para soçobrar, Inna lil láhi wa inna ilaihi rájiun!... Ó perfume dos jardins do Éden, o que foi que aconteceu?

Lucy - Estão sempre a acontecer tragédias aos caboverdianos... 

Sylvia - Sim, mas não é por isso... Ora, que cena é esta? A comandante da nau Gabriel deixa-se naufragar? O que é que te deu assim de repente? 

Lucy - Nada, nada... Um amigo, o meu primei... Não, não quero falar... 

Yoruba - Por Allah, o primeiro amor... O primeiro amor dela era caboverdiano. E depois? Conta... Morreu? É natural, Lucy, o amor é às vezes tão passageira brisa... Ó gazela das ondas marinhas, abre o teu coração...

Lucy (chora) - Não há nada para contar, morreu... 

Yoruba (passa-lhe a mão pela cabeça) - Pelo Beneficente e Misericordioso, o que morreu foi o rapaz... Ó minha delícia, não chores...

Lucy - Não acreditei quando me disseram, fui a S. Vicente de propósito para me certificar... E era verdade, estive ali especada a chorar e a olhar para o fundo da água... Só rochedos brutos, só blocos negros de basalto... Os que mais amava já morreram quase todos... E agora o invisível não há meio de chegar... (sorri).

Yoruba - Que o meu Allah-tala eternize o teu sorriso! Ele está nos jardins do Éden, onde correm rios. Ali tem o que deseja. Nós só desejamos.

A cena escurece. Aparece o Sol dentro de um disco largo e negro,

no céu muito iluminado.

 

Lucy - E o sol se tornou negro como um saco de crina... Sol negro, bebo-te até à última lágrima...

Yoruba (vai para o altar, lê o missal) - Hic est enim calix sanguinis mei novi et aeterni testamenti mysterium fidei, qui pro vobis, et pro multis essunt, in remissione peccato... Laa Ilaa he Ilalaahu Muhammad rasul Allah! Não há deus a não ser um Deus único e Muhammad é o seu mensageiro... Laa Ilaa he Ilalaahu Muhammad rasul Allah! (reflecte). No islamismo não há este sacrifício, aliás o sangue é um alimento proibido... Compreendo o seu horror, é o dos ritos secretos do Benim...

Invisível - Laa Ilaa he Ilalaahu Muhammad rasul Allah!

Lucy - Não, não pode ser, o sacrifício não é esse! Sol negro, beijo-te profundamente na boca! - quem escreveu isto, o que quer dizer? Tenho medo... Yoruba, deixa-me ver o Livro, preciso de me orientar...

Yoruba - Só os muslins podem tocar no Alcorão! Toma lá este caderninho...

Lucy - Leitura do Al Fathia - Bissmilahir Rhamanir Rahim! Al-hâmdo li' Lláhi Râbbil-álamin, Arrahmáni' rrhaím, Máliqui yâumi' ddin! Iyyáca nâebudo wa-Iyáca naçtain! Ehdená' çeráta' lmustaquim, Çeráta' lladína aneâmta âlaihim, gâiri' lmaghdúbi âlaihim, walá' ddalin! Amin.

Dangbé (canto corânico) - Amin, amin! 

Sylvia - Que Ra seja glorificado quando se levanta no horizonte oriental!

Yoruba - Por muito alto a que ascenda o símbolo, o que é que está na raiz do sacrifício? Ó Allah, que não só me criaste belo por fora como por dentro! - o mesmo que nos sacrifícios humanos... Leitura do Evangelho segundo S. Lucas: E depois de tomar o pão, deu graças, partiu-o e distribuiu-o, dizendo: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim. Tomou da mesma sorte o cálice depois de cear, dizendo: Este cálice é o Novo Testamento em meu sangue, que será derramado por vós... Laa Ilaa he Ilalaahu Muhammad rasul Allah... Laa Ilaa he Ilalaahu Muhammad rasul Allah... Ó anjo deprimido, por muito que o corpo e o sangue percam sujeito e substância, por muito que S. Lucas seja o mais subtil dos quatro evangelistas...

Lucy - Apetece-me gritar por socorro! Tenebrário!...

Lucy - Tenebrário!...

Tenebrário - Sim?

Lucy - Como é que isto se interpreta? 

Tenebrário (inclina a cabeça, não responde).

Lucy - Ajuda-me, anjo da guarda!