2007 .....................................................................Maria Estela Guedes
"Estação Ardente", de Júlio Conrado

Vinte anos depois de encerrado um romance, o Sujeito volta a querer vivê-lo, e para isso, para reconquistar a mulher com quem mantivera uma ligação perigosa, cria uma corte de heterónimos - Ulisses, Leonel, Alcino (e Narrador) - que ao longo de um mês a vão tentar estimular. Uma mulher tão assediada, decerto reagiria. Apesar de se dizer que não há nada de mais morto que um amor extinto, a corte de nomes masculinos, coadjuvada por Vergílio Ferreira, a cujas Cartas a Sandra o Narrador recorre para também a estimular, apesar de extinta a flama na mulher, a corte de personagens masculinas escreve todos os dias uma carta a Sandra, durante o mês de Agosto de 2005.

Claro que o procedimento estrutural, o plano director do romance, só se entende como ironia, sátira a quantos pseudónimos e heterónimos se vão alimentando da carcaça pessoana na selva das letras portuguesas e mesmo mundiais. Mas também é uma auto-ironia lançada pelo autor sobre Narrador profissional e narradores/heterónimos, amadores. Ironia, porquê? Em primeiro lugar, ironia sobre a excessiva literatura que paira sobre um romance, ou excessivo romance que adorna a vida, isto é, ironia sobre as interligações inesperadas que podem ocorrer entre elementos pessoais e imaginários naquilo que em dado momento se escreve, vive - ou escrevive, para ser mais exacta. A dado passo, para explicar a situação psicológica da mulher ausente, essa Sandra que ele não deixou de amar vinte anos depois, Júlio Conrado invoca um comentário de Maria Gabriela Llansol sobre Regina, esposa de Vergílio Ferreira, para garantir que não é ela a musa dos romances do marido. A verdadeira inspiradora é a grande ausente, como em "Estação ardente". Este tipo de intrusões da literatura na vida, neste caso perceptíveis, constitui decerto os alicerces do romance, simplesmente o leitor não as consegue detectar, apenas pressente que está no interior do imbróglio psicológico de um romance que não mostra sinais de happy end, porque está a ser alimentado por um devir humano sem desenlace satisfatório à vista. O que define o imbróglio é a ignorância do sapiente Narrador ou Sujeito: ele não sabe o que está a acontecer, não sabe como sentir, não sabe como deve comportar-se, não faz a mínima ideia do que sente a mulher, do que ela pensa. Então, em vez de - na vida? - a interpelar directamente, lança-lhe umas emaranhadas redes de palavras na caixa do correio, que só servem para o pescar a ele mais ao seu exército engatatão.

Ironia pelo aparato técnico convocado para o romance, em especial pelo recurso à epistolografia, algo cujo esplendor literário Júlio Conrado sabe que pertence ao século XVIII. E provavelmente porque o Sujeito é mais tímido do que a fábrica de ajudantes deixa perceber: só a timidez e o medo do fracasso justificam a criação de várias personagens masculinas, todas elas destinadas a conquistar para ele, Júlio Conrado, ou, melhor dizendo, para o Narrador, uma mulher que, bem vistas as coisas, não é quem ele espera, sim uma desconhecida, vinte anos mais velha do que a eternamente desejada. Ironia porque ele, Júlio Conrado, sabe que é mais fácil escrever um romance do que reacender as cinzas do romance interrompido no seu auge, no século passado. Finalmente, auto-ironia na desmontagem do romance, do papel das personagens sedutoras, e no manifesto final de que o Narrador engana, põe os palitos ao Sujeito. Não que haja ironia na traição, sim porque, no romance Estação ardente, de Júlio Conrado, não se percebe bem qual seja a diferença entre Narrador e Sujeito, isto para já não falar das diferenças entre o Autor e os outros Fulanos - Leonel, Ulisses e Alcino.

Portanto ele sabe que não alcançará o objectivo na meta real - aquela mulher, a que dá o nome de Sandra, não se reapaixonará por ele, ela nem sequer existe. Então, se sabe, porque insiste?

A grande conquista não seria tanto da mulher, sim da companheira de Letras. O que o Sujeito deseja realmente é que ela escreva com ele o romance de ambos, e ela concede algum estímulo: certas cartas tocaram-na mais do que outras, a essas reagiu telefonando. É pouco, ele quer mais, um empenhamento maior, um romance a quatro mãos. Não há nada de mais grato para um artista do que a comunhão da arte com aquele que ama, e a maior comunhão é a criação a dois. Não se trata então de escrever um romance para reconquistar um amor acabado, sim de conquistar uma companheira de escrita, e de deslizar, ele, para o lado de dentro, onde encontrará então a sua Regina, que não é a Regina de Vergílio Ferreira nem a sua Sandra, sim uma Julieta de Romeu, ou uma Teresa de Simão, em suma, a ideal, e como tal messianicamente Desejada e Salvadora.

Por isso mesmo, Júlio Conrado é teimoso e escreve o seu romance por cartas. À maneira das Liaisons Dangereuses, mas também à maneira dos namorados de há quarenta anos e anteriores. A carta tem muito mais força do que o e-mail, o telefone, telemóvel, o chat, o messenger. Tem uma força de memória que apanha a maior parte da cultura europeia, e é de cultura, a cultura do amor, a cultura do sexo, a cultura literária, é em última instância da cultura do romance que trata Júlio Conrado, nesta obra que ganhou merecidamente o Prémio Vergílio Ferreira de 2006.

Carta nº 10 ("Estação ardente", pp. 39-42)

Tenho algumas fotografias tuas, mas o que procuro nelas não está lá.
Vergílio Ferreira, Cartas a Sandra

Querida Sandra:

Das duas únicas fotos que tenho tuas, uma é recente e imprópria para consumo: foi tirada no Blues Café, quando jantávamos. Não aguentaste o flash, o resultado foi uma caricatura de ti. Para esquecer. A outra é uma foto de grupo, no restaurante do Ómega. Para recordar. Curiosamente cheguei àquela mesa com diferente companhia. Tinha feito uma intervenção no congresso um tanto irreverente, a criatura estava lá, marcou-me em cima, pendurou-se-me no braço quando me dirigia para o local do jantar de encerramento. O protocolo determinou, porém, que ficássemos ao lado um do outro, eu e tu. Ainda bem. Eu já andava de olho em ti (a partir de um almoço na cervejaria frente à Gulbenkian, num dos dias do congresso). Abstive-me de exteriorizar regozijo por teres ficado perto de mim. Mas fiquei contente. Foste a minha eleita dessa noite, a outra teve de se contentar com quem lhe calhou por perto e que, vim depois a sabê-lo, não foi escolha recíproca. Não fora o facto de termos dançado muito e de, enquanto dançávamos, te ter descoberto como pessoa (até aí foras uma colaboradora dos trabalhos do congresso com quem me limitara a manter contactos de rotina administrativa) e talvez me dispusesse, num dos dias seguintes, a telefonar à outra. Porque ela tivera artes de, durante o jantar, me passar as suas coordenadas (nome, morada, telefone, estado, disponibilidade). Mas o amor esvoaçava por ali e não era a minha atiradiça admiradora aquela que me enchia os olhos. Eras tu.

O baile que se seguiu ao jantar teve muito picante. A tua amiga próxima aceitou dançar com o convidado negro enquanto o marido foi à casa de banho verter águas. Era de força, a tua amiga próxima. Minha amiga, igualmente. Mas muito intimidante. Há quem assegure que ela simpatizava comigo acima da conta. Nas reuniões preliminares da CE do congresso terá sido muito evidente a terceiros sintomas dessa empatia extra. Nunca me apercebi de interesse assim tão descortinável à vista desarmada. Nunca lhe encorajei avanços quer porque me relacionava com ela no mais completo estado de candura, quer porque mulher de temperamento à flor da língua não "fazia" o meu género, como diz o outro. E episódios de alguma destemperança afectavam uma vez por outra a normalidade do seu comportamento. Reconhecia-lhe capacidade de trabalho e invulgar inteligência. Foi sempre, repito, de uma simpatia extrema comigo. Então como vão as ratas?, perguntou-me um dia numa pausa do congresso com aquele seu desbragado pendor para o calão ordinário que cultivava como um tique snobe. Assim fiquei a saber que na sua grelha classificativa tinha reputação de esturdioso. Metia-me medo, confesso, a tua amiga próxima.

Voltando ao pé de dança com o convidado preto e ao parido que fora verter águas à casa de banho... Este último, primeiro estupefacto, depois violento, resolveu fazer uma cena ao ver a mulher naquela promiscuidade racial. Arrancou-a dos braços do outro e a festa de encerramento do congresso terminou naquele mesmo instante para os dois, que abandonaram o restaurante em alta discussão, com o pobre convidado sem saber onde se acolher para se resguardar da tempestade.

O nosso pé de dança foi diferente. Cedo te dei a entender que não tencionava largar-te o resto da noite. Enlacei-te e encostámos os rostos. Achei-te muito... compreensiva, não hostilizaste nenhum dos argumentos "dançarinos" que te propus e tinham algum volume, rapidamente percebi que o teu corpo se solidarizava com o meu e que a convergência se prolongaria até onde quiséssemos. Mais tarde, em conversa sobre esse momento, dirás: Senti-te. Sentimo-nos. Sentíamo-nos enquanto dançávamos ao som de músicas lentas, mansas, dessas que fazem sonhar. A minha mão premia-te as costas, repousava na tua anca ou ousava chegar discretamente ao seio. Os nossos ventres uniam-se, os pélvis procuravam-se, os meus lábios arriscavam tocar-te o pescoço e a orelha. Reagias cordialmente a essas "investidas". Estavas obviamente a gostar.

Nunca me disseste se o que beberas nessa noite te quebrara de alguma maneira as defesas, tu que eras tão vulnerável ao vinho branco: um copo, vim a sabê-lo depois por ti, era o suficiente para te desarmar. Gostaria de ter estado no miolo dos teus pensamentos enquanto dançavas comigo e me sentias. Já fiz essa interpretação em ficção, condicionada, como já te disse, à táctica romanesca, e muito provavelmente deformada em relação ao que verdadeiramente se passava contigo, na altura a braços com tantos problemas de desfecho incerto. Certo é, porém, que mesmo que o que te tivesse motivado fosse viver um bom bocado que te aliviasse da pressão desses problemas, o que se passou a seguir confere a esse baile uma dimensão fundadora cujo esplendor o tempo, à medida que passa, sedimenta e mitifica.

Para mim, o tempo dos bailes acabou ali. Nunca mais voltei a dançar assim.

Beijo grande

10 de Agosto de 2005 Leonel
















JÚLIO CONRADO

ESTAÇÃO ARDENTE

Prémio Vergílio Ferreira 2006

Lisboa, Campo da Comunicação, 2007

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