2008.....................................................................Maria Estela Guedes
Duas palavras simples

Como facilmente se verifica, a leitura dos poemas de "Chama de água" seleccionados para o TriploV (1), nada de substancial altera ao que temos escrito sobre Fernando Botto Semedo, em especial no caderno sobre as cores (2). Temas obsessivos continuam a ser a infância, uma infância cada vez mais correlacionada com o hospital, a brancura, Deus - um Deus que apodrece - as flores, e os anjos de outros livros parecem ter-se transformado agora em santos. Decerto um angelismo e uma santidade forçados pela adversidade. Estes elementos constam de todos os livros, com a ressalva de que "Chama de água" os sublima: o livro é muito mais estilizado e depurado do que os anteriores, e ao mesmo tempo mais aberto à compreensão dos problemas que sugere.

Fernando Botto Semedo é um caso singular na nossa literatura, não só pela qualidade do que escreve, mas também pelo seu comportamento. O poeta leva uma vida social retirada, quase não sai do perímetro da sua casa na Estrada de Benfica, vive exclusivamente para a poesia e para a música que ouve na Rádio. Lê, ouve música e entende que a sua existência só se justifica pelos livros de poemas que publica. Não procura editores, ele mesmo edita os livros, todos eles com capa pessoal, em que sobressaem os seus desenhos, de características atormentadas e infantis. Há algo também de infantil na sua poesia, não pela temática da infância, sim pela atitude, assumida igualmente por José de Almada Negreiros, nos seus tempos, a de busca de uma simplicidade, naturalidade e génio primordiais, por isso infantis, à escala da Antropologia. Essa busca é de resto típica de movimentos como o surrealista e de poetas mais recentes que os da geração de Orpheu, como Carlos de Oliveira. Com a diferença de que a infância genuína daqueles poetas, infância biográfica, colorida, feliz, em nada se parece com a de Fernando Botto Semedo: a deste encerra acidentes que levaram a criança ao hospital, implica feridas corporais insanadas que hoje constituem a alma em tormento do poema.

O que acho mais pertinente comentar a propósito da poesia de Fernando Botto Semedo é a falibilidade e a efemeridade tão grandes de certas linhas de leitura, oriundas da teoria literária, que por vezes nos cegam, a ponto de não vermos coisas tão evidentes como a marca do autor no texto. Os poemas de Fernando Botto Semedo são prova de que é totalmente irrelevante e frívola uma interpretação fundada na presunção de que eles dizem tudo, de que são um universo fechado, para nada sendo necessário o conhecimento do autor e do contexto em que escreve, ao delinear as suas brancas e nupciais paisagens de cemitério.

Se interpretarmos os textos sem nenhum instrumento biográfico, ficamos a saber muito pouco, e nem sequer teremos a percepção da beleza lancinante de uma poesia que é muito mais ferida e triste do que a de António Nobre, e de que é nessa infinita tristeza que se erguem as delicadas e belas figuras de anjos, crianças e santos da poética deste parente de António Botto, que a ele em nada se compara, excepto em que ambos são poetas.

No caso de Fernando Botto Semedo, a biografia ajuda a entender as razões das suas paisagens imaginárias, as razões da sua dor e melancolia. Noutros autores, por exemplo os antigos, aqueles de quem pouco ou nada sabemos, a ignorância do contexto histórico e da biografia não permite saber qual a intenção com que fazem determinados enunciados. Não sabendo isso, também não saberemos quando escrevem com ironia, e a ironia consiste em exprimir o contrário do pensamento. Neste estado da leitura, a interpretação dos textos falha a cem por cento. E assim, aquilo que tomamos por manifesto de ignorância própria de um passado remoto, entre qualquer outra hipótese, pode bem ser uma paródia com que esse remoto passado nos passa sem querer um atestado de indigência intelectual.

Não podemos suprimir fontes de informação, nem com as melhores intenções ideológicas. A riqueza da cultura, manifesta aqui na exegese dos textos, decorre da diversidade dos instrumentos e fontes à nossa disposição para a tarefa, nunca da exclusão delas. A exclusão da figura do autor resulta sempre em redução da amplitude política, histórica, sensual e emotiva da sua criação literária. Já basta não sabermos tanta coisa, não é preciso ainda por cima excluirmos da leitura aquilo que conhecemos.

Meg, Britiande, 21.03.08

 

 

 

FERNANDO BOTTO SEMEDO
Chama de Água
Ed. do Autor
Lisboa, 2008

(1) Fernando Botto: Chama de água

(2) Maria Estela Guedes, A poesia na Óptica da Óptica. Lisboa, Apenas Livros Lda, Col. Naturarte, nº 9, 2008.

 

Fernando Botto Semedo no TriploV
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