É uma antologia de poetas, acompanhada por um historial da irrupção, expansão e prática do surrealismo na América de língua portuguesa e castelhana, o que nos propõe nesta obra Floriano Martins. Não são muitos os poetas representados, mas decerto serão os mais representativos, e neste aspecto confio na sensibilidade poética e conhecimento de causa do autor, que não só tem comentado as obras como dialogado com muitos surrealistas, críticos e historiadores do movimento fundado pelo autor de "Nadja" e "L'amour fou": Aldo Pellegrini, César Moro, Enrique Molina, Emilio Adolfo Westphalen, Octavio Paz, Enrique Gómez-Correa, Juan Sánchez Peláez, Ludwig Zeller, Juan Calzadilla, Roberto Piva, Sérgio Lima e Raúl Henao. A ligação ao surrealimo francês é muito estreita: alguns grupos de poetas, como o Mandrágora, no Chile, surgiram com apoio directo de André Breton e Benjamin Péret, que lhes publicaram textos na célebre revista VVV (ou triplo V...) e aceitaram obras nas suas exposições colectivas. Fecham o livro algumas entrevistas, aliás pelo corpo da introdução também aparecem fragmentos de outras, cujo conteúdo Floriano Martins designa por "Amparo crítico" - elas fornecem de facto depoimentos teóricos e históricos importantes. Um dos seus objectivos, ao publicar este livro, diz o autor, foi o de contribuir para a formação de uma rede possível de diálogos entre as culturas brasileira e hispano-americana. Pelo que toca ao TriploV, só vejo vantagens em ampliar a rede à Europa. Afinal esses poetas são na maior parte nossos desconhecidos. Floriano Martins informa que o título "O começo da busca" forma quiasmo com o de Octavio Paz, "A busca do começo", uma obra em que o escritor mexicano reuniu textos sobre o surrealismo. Se Octavio Paz buscava as fontes matriciais, Floriano Martins entende que essa busca ainda mal principiou, que a presença do surrealismo no Brasil não só é desconhecida como deliberadamente ocultada pelas instâncias críticas ortodoxas e pela política da cultura oficial, de cariz nacionalista, que estrangula a emergência de uma arte não só cosmopolita como armada de poder corruptor. O aspecto mais importante do livro é o de mostar, não que o surrealismo existiu na América do Sul, sim que ele permanece vivo e actuante, embora com difusão cerceada pelo sistema vigente. Esta vitalidade não resulta apenas de sobrevivências, grupos de jovens têm continuado a agremiar-se sob o lema surrealista maior da liberdade-libertação. Por isso a antologia é da maior actualidade, e move à reflexão e à análise comparativa com as literaturas europeias. Floriano Martins dá-nos a imagem de um movimento que não está ainda remetido para os confins da História, nem passou a fenómeno assimilado pela ortodoxia. Em Portugal, desde talvez os anos sessenta do século passado, não é possível agremiar os escritores debaixo de novos ideários comuns nem atrelá-los a nenhuma nova liderança intelectual. O mais que pode existir é sobreviventes neo-realistas ou surrealistas, e entre estes é pacífico citar Mário Cesariny, porém já se ergueriam clamores do próprio Luiz Pacheco se o mencionasse, a ele que, sozinho, creio, abraçou o movimento abjeccionista, uma rejeição muda de Herberto Helder, um ar de cândida surpresa de António Barahona, etc.. A escrita automática não só é uma impossibilidade prática como foi abandonada pelos surrealistas, mas poetas que não se identificam com o surrealismo sempre acham valor acrescido em informar que dado poema seu foi escrito segundo essa técnica, e continua vigente esse outro valor adstrito, o da espontaneidade, que consiste em não corrigir textos, para os deixar falar na sua pureza virginal, mesmo quando a correcção não seria suficiente para evitar que o mudo interlocutor os remetesse mentalmente para o recycle bin da sua exigência crítica. A literatura portuguesa viva de mais alto nível, a referenciar-se a movimentos com os quais apresente algum ponto de contacto, é ao movimento modernista português e ao surrealismo. Nenhum novo movimento eclodiu depois dos citados, havendo até quem atribua à substituição dos cafés pelos bancos um dos motivos do estiolamento. O café era lugar de tertúlia, de divulgação de inéditos aos amigos, de diálogo. Seja ou não a falta de tertúlia o motivo para a inexistência de novos rumos colectivos, é facto que se torna cada vez mais difícil juntar presencialmente as pessoas, é facto que as pessoas se refugiam nos seus jardins de liras privadas, desconfiando de tutelas mentais, de poéticas susceptíveis de cristalizar em formatos, e reagindo contra ideias que em geral são farrapos de ideologias. Mas significará isso uma geral orfandade artística? O escritor nasce escritor num campo de batatas, sem nenhuma interacção com a cultura artística, passada e coeva? Por exemplo, ao correr dos olhos apanhamos no livro de Floriano Martins esta informação: em 1967 publicava-se em São Paulo o primeiro número da revista A Phala, dirigida por Sérgio Lima, ligado ao movimento surrealista no Brasil. Não é A Phala a revista publicada na Assírio & Alvim, em Lisboa, por Hermínio Monteiro, infelizmente falecido no ano passado na força da idade? Que figura tutelar aconselhava Hermínio Monteiro e é o mais importante poeta português publicado nessa editora, e de resto em qualquer outra? Herberto Helder, como se sabe. Não é decerto por acaso darwinista que A Phala portuguesa se chama assim, tal como não é pelo mesmo acaso que se confunde com a VVV o TriploV. Octavio Paz, vejamos. Mais do que como poeta, ele é ensaísta enraizado na minha memória desde os tempos da Faculdade, por muito que o tempo nuble os caminhos para ela e aqueles a que consciente ou inconscientemente conduz. Na realidade, antes de alguém ousar pôr Portas no campo ou Peras nos ulmeiros (títulos de livros de ensaios seus), antes de um poeta ousar balbuciar "dadá", imitando o infante (a criança, o que ainda não fala), nenhum de nós se lembraria de pôr ovos como as galinhas, nem de qualquer outra criação igualmente inesperada, passível de ser tomada pelo juízo comum como manifestação de perturbações mentais. Não quer isto dizer que tais liberdades sejam novas em absoluto. Se buscarmos os começos, sempre encontraremos algum precursor em Homero, Apuleio ou em Gil Vicente. Mas essas não são liberdades sancionadas por um grupo de artistas em determinada época, são gestos de metaforização isolada. O público da revista Orpheu rejeitou-a como obra de alienados. O público de hoje que, além de a aceitar, venera Fernando Pessoa, o que rejeitaria? Pois, é preciso saber, ainda que não sabendo, para actuar. A força dos movimentos de renovação não depende deles, depende do contexto cultural, social, político, vinga se irromper no momento e no lugar oportunos. E quem se junta a eles não é forçosamente o epígono, a cópia, o artista menor, é aquele que vê aberta a porta de que necessitava para sair da sua clausura e se apressa a passar por ela em direcção a mais amplos horizontes. De resto, nem os surrealistas o são. Um surrealista absoluto seria um ortodoxo, negando assim a heterodoxia do movimento. É a inevitável adesão ao que dá luz verde à necessidade de exprimir livremente o que nos corre do afecto ao pensamento. Em dada altura e em dado lugar. Sem todas as Colettes de calças a fumar em público, num café parisiense - e terá sido Colette? - a minoria de mulheres privilegiadas a que pertenço não teria ainda alcançado aquele grau de emancipação que lhe permitiu acesso à instrução e ao emprego. Mas acontecesse isso não em Paris, sim no Café do Oriente, no Grande Bazar de Istambul, nos mesmos anos vinte ou trinta, com uma mulher turca, e nada teria acontecido no mundo, excepto talvez o apedrejamento da turca. No momento e lugar próprios, há os que têm visão bastante para além do espaço iluminado e contra a pressão da treva dão um passo em frente. É preciso coragem para sair desse espaço controlado pelo costume e pelo consenso, pois esse é o da segurança, o colo materno do ser como todos, por isso da inclusão social. E também por isso, porque uma arte segura é uma arte presa, a asa que se elança (e voa, contra o que não ousava pensar Mário de Sá-Carneiro) para fora do socialmente aceitável é um desafio e uma ameaça ao social. Daí que a sociedade exclua o que lhe não venera as regras, a sua compostura (ou impostura). Mas será a arte um fenómeno de sociedade, um espectáculo para abrilhantar banquetes dos que se regem apenas pela máscara do dinheiro? Não, não é. Ou, quando é, quando o artista se acomoda a essa função de clown para enaltecimento de cortes e academias, já o momento surgiu de escapar dessa gaiola, pondo sem rede ovos de pixéis no céu. E nem sempre basta a visão, o tempo e o lugar próprios: sem a comparticipação monetária do pai de Mário de Sá-Carneiro, em vez de dois números da Orpheu, em 1915, nenhum teria sido dado à estampa, e em consequência o modernismo português estaria ainda por parir, no baú de Fernando Pessoa. A arte é também uma questão de dinheiro, sem pincéis e tintas nenhum pintor pinta sequer paredes, apesar de a mesma sociedade, que espera veneração dos seus artistas, não considerar a arte um modo de vida. Aliás, a mediocridade cultural também é uma questão monetária, diga-se de passagem. Se para publicar um livro - agora e não há cinquenta ou cem anos - basta o autor ter dinheiro para pagar a edição, as consequências ficam à vista. Pôr portas no campo é o mérito maior dos movimentos da modernidade, e não só dos surrealistas: não se trata tanto de subjugar à sua liderança teórica e modelos poéticos a capacidade de criação alheia, mas de fornecer o campo e o húmus necessário ao florescimento do que nunca poderia ser -ista em sentido estrito, dada também a rebeldia inerente a cada artista, a sua necessidade de seguir caminho pessoal. O surrealismo é ainda hoje uma porta de entrada e de saída, uma casa de família à qual o filho pródigo ainda pode retornar. O seu poder de choque ainda não se esgotou - eis, em suma, a mais relevante notícia que chega à Europa da América do Sul, pela mão do poeta e ensaísta Floriano Martins.
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