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MODELOS DE INTERPRETAÇÃO
Maria Estela Guedes








Michel Louette, Danny Meirte
& Rudy Jocqué

LA FAUNE TERRESTRE DE
L'ARCHIPEL DES COMORES

Studies in Afrotropical Zoology, nº 293. Tervuren, Musée Royal de l'Afrique Centrale, 2004

Este belo livro, de 456 páginas ilustradas, na maior parte com fotografias de animais vivos, ocupa-se da fauna terrestre do arquipélago: mamíferos, aves, répteis, anfíbios, peixes de água doce, insectos, aranhas, crustáceos, moluscos e outros invertebrados. As ilhas Comoro localizam-se no Canal de Moçambique, a norte de uma outra ilha, tão grande que se comporta como um continente, Madagáscar.

As ilhas são quatro, por ordem de grandeza: a Grande Comoro, com 1.148 km de área, Anjouan, com 424, Mayotte, com 374, e Mohéli, com 212. O ponto mais elevado fica na Grande Comoro, a 2.361 metros. O conjunto lembra o das ilhas do Golfo da Guiné, em que a maior, Fernando Pó, não chega aos mil quilómetros quadrados, mas cujo ponto mais elevado, o Pico de Santa Isabel, ultrapassa em cerca de mil metros o das Comoro. Bioko e Ano Bom ficam muito afastadas de São Tomé e da ilha do Príncipe, não constituem um arquipélago nem uma unidade biogeográfica.

Não sei como explicam os zoólogos a presença dos mesmos endemismos em várias ilhas do Golfo da Guiné. De qualquer modo, o raciocínio que fornece o modelo de interpretação é este: espécies que chegaram há milhões de anos às ilhas ficaram tão isoladas que se metamorfosearam em espécies distintas das maternas. E como são distintas, só ali existem, em cada uma dessas ilhas. É a isto que se chama o endemismo: espécies que só existem em dado local, ao contrário de espécies cosmopolitas, que podemos encontrar em qualquer país e mesmo em regiões de clima muito diferente.

Quanto mais restrito em superfície é o local, mais valor para a ciência ortodoxa tem o endemismo; por consequência, mais interesse há em o conservar. Tudo isto levanta problemas de vária ordem, qual deles mais difícil de entender por quem não não faz uso dos modelos de interpretação da ciência. Não é inteligível, por exemplo, que se desvalorize a espécie cosmopolita e se valorize o endemismo até ao ridículo de proteger uma comunidade de dez casais com habitat de trezentos metros quadrados. Convém, nestes casos, como aliás noutros, proteger com consciência de causa, pois nada obsta a que preservemos espécies criadas pelo homem justamente por termos conhecimento da selecção humana.

Nada impede que os patriotas criem as suas próprias espécies endémicas, em geral expressos os sentimentos no segundo nome do binómio latino, o da designação específica: Psammophis aegyptius (do Egipto), Pachydactylus capensis (da Província do Cabo, África do Sul), Mirafra javanica (de Java), etc.. Neste segundo termo, tudo pode surgir, e não apenas um registo de propriedade nacional. Pode surgir até o cómico, devido à transgressão das fronteiras: Tarentola borneensis (em Cabo Verde), Chioglossa lusitanica (na Península Ibérica), Rana madagascariensis (cosmopolita em África) e por aí adiante. É assim que, no caso das Comoro, entre as espécies protegidas, algumas têm nome que indica tratar-se de valores pátrios - paternos/filiais -, independentemente do facto de poderem ter sido criados no período colonial, em que por isso a paternidade remetia para uma potência europeia através da colónia: Pteropus seychellensis comorensis, Otus moheliensis, Nectarinia comorensis, etc..

As ilhas, sejam continentais ou oceânicas, vulcânicas ou não, estão cheias de hipopótamos, para dar extensão metafórica ao do lago Loreto, em Bioko (1; 2; 3), e as de Comoro não constituem excepção. Como reage o paradigma do natural à presença dos hipopótamos em locais onde só poderiam estar com uma ajudinha humana?

O povoamento das ilhas é uma área que fascina os biólogos porque, em abstracto e em teoria, elas reproduzem modelos da Criação, o que aliás nada tem a ver com o criacionismo. De resto, nenhum biólogo actual aceitaria esta descrição, apesar de ser alguém que busca saber como apareceu a vida na Terra. Ora as ilhas estão cheias de anormalidades, o que dificulta muito essa tomada de conhecimento de como é que a Criação surgiu ali, em pedaços de terra isolados em quantidade imensa de água salgada, intransponível por criaturas como rãs, peixes de água doce, dodós, hipopótamos, etc., se bem que os dodós fiquem noutro arquipélago, ao lado deste, as Mascarenhas (5), e o hipopótamo no Golfo da Guiné, em Fernando Pó (Bioko).

Como reage o paradigma à anomalia? Há anormalidades nas ilhas Comoro, como a existência nelas de sapos ou rãs (4), mas o paradigma só vê o que quer ver:

Les batraciens ne survivent pas au contact avec l'eau de mer. Ainsi, l'introduction de batraciens de l'île de Madagascar sur l'archipel par voie naturelle (p. ex. par des vents transportant des îles flottantes ou par des oeufs qui restent attachés aux pattes d'oiseaux...) est fort improbable.

L'absence de batraciens sur la Grande Comore est très logique en raison de l'absence d'eaux permanentes. La présence de deux espèces exclusivement sur Mayotte reste néanmoins difficile à expliquer.

Jusqu'à preuve du contraire, on pense que les deux espèces de Mayotte sont identiques, au niveau subspécifique, à celles de Madagascar.

Une introduction involontaire par l'homme est l'hypothese la plus probable. (6)

A hipótese mais provável, para quem não perfilha o modelo de interpretação canónico, e conhece os textos dos naturalistas, é a introdução voluntária, e por parte da ciência. Porquê? Uma das hipóteses mais prováveis é o teste à hipótese da transformação das espécies umas nas outras.

É uma pena não podermos adiantar mais nada de momento. Deve-se isso ao facto de os autores só fornecerem a primeira metade do nome das espécies. Há tendência para amputar a segunda metade, aquela que indica o nome do autor da descrição e a data em que o fez. Completo, o nome corresponde a uma referência bibliográfica, e é possível assim encontrar as descrições com alguma rapidez. Excluída a autoria e a data, a investigação torna-se difícil e morosa. Os cientistas não têm a noção de que o nome da espécie é por si só um documento histórico. Amputam pelo preconceito de que as espécies não são de Bocage, nem de Gray, nem de Bedriaga. Por esse raciocínio, o Jardin du Roi deixou de ser o jardim do rei. Na Revolução Francesa, passou a ser o Jardin des Plantes. Os modelos de interpretação implicam ideologias que nos forçam a ver o mundo como o Poder quer que seja visto, e não como ele realmente é.

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(1) O Lago das Barracas

(2) Descoberta do Lago Loreto - Padre Armengol Coll

(3) A Ilha das Serpentes

(4) Herpetologia: Ilhas Comoro

(5) Do Dodó à Fénix

(6) Traduzimos:

"Os batráquios não sobrevivem ao contacto com a água do mar. Assim, a introdução de batráquios da ilha de Madagáscar no arquipélago de Comoro por via natural (p. ex., através dos ventos que impelem ilhas flutuantes ou através de ovos que ficam agarrados às patas de aves...) é muito improvável.

A ausência de batráquios na Grande Comoro é muito lógica por ali não existirem cursos de água permanentes. A presença de duas espécies exclusivamente na ilha Mayotte já é no entanto difícil de explicar.

Até prova em contrário, pensamos que as duas espécies de Mayotte são idênticas, no nível subespecífico, às de Madagáscar.

Uma introdução humana involuntária é a hipótese mais provável."