MARIA ESTELA GUEDES
Ler ao Luar

"JOÃO MOTA", um livro em acto











JOÃO MOTA, O PEDAGOGO TEATRAL
Metodologia e Criação
EUGÉNIA VASQUES
Edições Colibri
Instituto Politécnico de Lisboa
Escola Superior de Teatro e Cinema
Lisboa, 2006, 110 pp. il.

Livro em acto, "João Mota, o pedagogo teatral", porque Eugénia Vasques opta por técnicas de discurso performativo, tão próximas do teatro como o indivíduo que ela traz à boca de cena. Muito original, de resto. Sem dar a mão a João Mota nem lha pôr no ombro, quase ausente, Eugénia Vasques substitui pelas técnicas teatrais as ensaísticas, e esse é outro aspecto do livro em acto: as marcas da autora são discretas, todo o impacto do texto foi direccionado, como um holofote, para o já lendário homem do Teatro da Comuna, João Mota.

É assim que o principal bloco de História não é narrado por Eugénia Vasques, sim pelo próprio João Mota, a partir de uma estrutura de entrevista só com duas ou três questões de fundo, como poderá ler no TriploV (1). Esta auto-apresentação é tão apaixonante como um romance, a personagem revela vida plena e rica, dedicação completa ao ensino do teatro, e ao mesmo tempo é uma pessoa fora dos palcos, hostil à gloríola, emocionalmente distante dos comentários e críticas. Porém logo de início ficamos a saber que João Mota teve e porventura tem inimigos que lhe acidentaram o percurso, por mesquinhas razões políticas, fundadas no equívoco de a palavra "Comuna" pertencer à mesma família de palavras de "comunista".

Ler o livro foi enriquecedor para mim, que sou dramaturga de pouco palco e pouca companhia de actores, e mal sabia que tipo de atenção dá o actor aos textos, antes de os habitar, e menos ainda sabia da quantidade de técnicas e áreas do conhecimento envolvidas na formação de actores. João Mota, no panorama teatral português, na generalidade pobre, desde Gil Vicente, é uma das figuras-chave da nossa modernidade, quer como actor, quer como encenador, quer como professor de teatro. É só como pedagogo que Eugénia Vasques trata João Mota, homem a quem o livro presta uma grande homenagem silenciosa, pois em lado nenhum vi essa expressão de sentimentos posta em palavras visíveis.

A acção pedagógica de João Mota, menos que descrita ou explicada, é transladada de sumários de aulas de um curso completo que a autora frequentou. Ambos se entendem na perfeição, pois são as mesmas as suas referências: Eugénia Vasques de há muitos anos faz crítica de teatro, e é Professora-Coordenadora na Escola Superior de Teatro e Cinema. Partilham o mesmo mundo de interesses e conhecimentos.

Das técnicas de formação de actores ensinadas por João Mota, fiquem, a título de exemplos, os exercícios de oralidade feitos com sonetos, por o verso ser uma medida de respiração, sobretudo na poesia clássica, os exercícios de concentração, que envolvem contacto com as culturas orientais, os jogos, o processo de deixar cair a máscara social, para que, vazio interiormente, o actor possa encarnar os textos e habitá-los.

Estes procedimentos e esta pedagogia afastam o teatro do entretenimento e mesmo da arte, para o aproximarem da criação. Paradoxalmente, o actor fica próximo de uma outra arte, digamos que sacra, pois a performance é entendida e realizada como prática ritual. De outra parte, é afastado da sociedade, para, de modo não tão paradoxal como isso, se aproximar das actividades comunitárias. A diferença é toda aquela que separa o teatro clássico e tradicional, teatro de palco, baseado na imitação por parte do actor e do aplauso (ou apupo) por parte do espectador, do teatro moderno: este integra o espectador, o espectador é solicitado a participar, logo já não terá razão nem para apupos nem para aplausos. E, se não participa, sujeita-se a ser acusado de traidor e cobarde, como gostava de citar um outro mestre, que João Mota conheceu sem dúvida, Ernesto de Sousa, por cuja mão o Living Theatre veio a Portugal, nesse tempo em que as vanguardas se repensavam, para participar nas iniciativas da "Alternativa Zero". Deve ter sido a primeira vez em que o público português sofreu o choque de um teatro de rua, sem palco, em que os actores o interpelavam directamente.

Seja como for, e não é pacífica a situação do público, ele deixa de ser um corpo social, por isto entendendo um grupo de pessoas que vivem segundo normas que exigem máscara, a máscara do parece bem ou parece mal, sem a qual não sobrevivemos, porque, justamente, o que ela oculta é o que não merece nem é digno de ser visto.

(1) "João Mota", por Eugénia Vasques. Em linha em:

http://www.triplov.com/teatro/eugenia_vasques/Joao-Mota/index.htm

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