MARIA ESTELA GUEDES
Ler ao Luar

"Retrato Breve" de João Camilo

Não vou fazer o retrato, breve nem longo, de João Camilo: não o conheço. Conheço João Camilo há muitos anos, por isso o seu "Retrato Breve de J.B." (João Baptista) não me apanhou de surpresa, foi apenas uma agradável surpresa o reencontro com um autor que considero um dos mais representativos da minha geração, seja lá ela que geração for.

Reencontro também com um autor multifacetado, que faz fotografia, tal como revela neste romance, que abre com uma série de seis retratos mais ou menos desfocados de uma quinta, talvez um rancho, pois João Camilo é professor numa universidade nos Estados Unidos da América.

O romance, algo minimalista, tecido com o pouco e menor da História, que é afinal o que cabe a cada um de nós, que não fomos heróis da guerra, não vencemos regimes, não alcançámos sucesso em batalhas nem na vida, enfim, o retrato de João Camilo é o retrato de tantos como ele, eu e vocês, que sentimos a falta de qualquer coisa, sentimos não ter agarrado o comboio certo da vida, sentimos não saber ao certo para onde queríamos ir no comboio da vida. Nós, que até fizemos alguma coisa importante, mas não a valorizamos, porque não sentimos que os outros a valorizem, e, se valorizassem, não acreditaríamos na sinceridade deles, pensando que nos estavam a dar graxa.

Viver sem auto-estima, em estado de perdição, leva a que a vida não se sinta, ou mal se sinta, dela podendo nós dizer o que alguém comentou da de António Nobre, que tinha vivido levemente, amado levemente, escrito levemente, e levemente morrido, e se não é a António Nobre que o retrato se aplica, então será a Camilo Pessanha, a Carlos de Oliveira, a si, a mim, a ela...

Toda a importância deste retrato desfocado, porque o olhar que desfoca pertence a alguém que está a viver de forma distraída, ausente, como se a vida não tivesse importância - e quem pode garantir que tenha? - vem do facto de que muitos de nós se vão remirar nele, e rir levemente, porque a tragédia é gostosa, a tragédia do falhanço dos heróis de Woody Allen tem piada, rimos, rimos com gosto, de nós mesmos, porque é evidente que nos sentimos ridículos na nossa pele, nos nossos gestos inapropriados, no nosso estar pouco à l'aise nos salões da opinião pública, e, se nos déssemos valor, e nos achássemos magníficos, épicos, grandiloquentes, e perfeitamente adaptados aos salões da moda, aos tempos históricos e às opiniões dos telejornais, mais ridículos ainda nos sentiríamos.

Com um retrato destes, o mais natural é João Camilo continuar a sua caminhada discreta pelas Letras, poucos dando conta dele. Não convém falar muito deste livro, falar do retrato breve de JB é o mesmo que pormos a alma a secar no varal da roupa.

E a verdade é que poucos como João Camilo acertam assim na alma, no comportamento e nos afectos de uma geração, para a trazerem à luz de um filme colorido até à ribalta da mais perfeita identificação dos outros com um tal J.B., que não sabe bem se sonha ou se está acordado, J.B. que para uns é o verdadeiro Messias, para outros é marca de uma bebida alcoólica, e para J.C. é o duplo, o tipo que vê reflectido no espelho.

Britiande, 6.04.06

JOÃO CAMILO
"Retrato Breve de JB"
6 fotos coloridas do A.
2ª ed. revista e aumentada, Fenda Edições, Lisboa
1ª ed. Porto, 1975
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