MARIA ESTELA GUEDES
Ler ao Luar

Freitas do Amaral, biógrafo

Diogo Freitas do Amaral, mais conhecido como homem da política, assina uma biografia de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal. Fá-lo na qualidade de cidadão e não na de historiador, movido pelo gosto da tarefa e pela vontade de prestar um serviço a Guimarães, que aliás ultrapassa o vimaranismo.

O livro apresenta-se como narrativa, um quase romance, sem se deixar abafar pelo peso do documento, mas sempre com ele ao lado, em nota ou abastada citação. O texto flui, despretensioso e coloquial, com um único objectivo, o de recriar uma figura histórica.

É claro que entre a História e a história a fronteira é débil, uma vez que a documentação escasseia e, à falta dela, necessário se torna criar pontes de sentido entre acontecimentos distantes no tempo e no espaço. Essas relações de sentido entre acontecimentos são ficcionais, o que não quer dizer que sejam falsas. A ficção não é mentira, é uma arte da palavra.

No caso de Diogo Freitas do Amaral, a narrativa carente de documento alicerça-se no raciocínio, na capacidade própria de um político, para imaginar que estratégias ou ambições poderiam mover um jovem que, por volta dos vinte anos, já tinha grandes responsabilidades, e o "afrodisíaco" poder, para usar uma classificação do biógrafo, de mandar e ser obedecido.

Esta biografia interessa a todos os portugueses, claro, aos vimaranenses em especial e a mim em particular, pois vivo numa região do antigo Condado Portucalense, por isso uma das zonas de actividade de D. Afonso Henriques e do seu conselheiro e ministro, D. Egas Moniz - a região de Lamego. Almeida Fernandes, por aqui nascido, escreveu bastante sobre ela (1), e Diogo Freitas do Amaral, como se patenteia no seu aparelho bibliográfico, consultou-o muitas vezes. Porém isso não chega, ou não é prático em certas circunstâncias em que precisamos de ter sínteses históricas à mão sobre factos ou monumentos regionais.

O apoio informativo ao turista ou ao visitante é escasso na maior parte dos lugares históricos portugueses, mesmo quando se trata de recintos com importância, e nulo em relação a ruínas, que o habitante não raro confunde com calhaus e entulho. Fiquei muda de espanto, há semanas, quando ouvi comentar ao arqueólogo Manuel Calado, que os monumentos megalíticos do concelho de Mora só tinham sido descobertos nos anos oitenta. Não se trata de um turista só em 2006 ter descoberto a Gare do Oriente, na nossa terra, sim de a ciência só em 1980 ter descoberto alguns dos mais antigos e gigantescos monumentos da Terra.

No meu actual eremitério estou sem livros e sem acesso a bibliotecas. Daí que nem sempre possa dar melhor saída a algumas das minhas pessoais descobertas - as descobertas pertencem sempre ao seu sujeito, não ao objecto delas, seja ele o índio, o Brasil ou o recinto megalítico dos Almendres. E naturalmente os objectos descobertos pré-existem ao acto de os destapar; se não existem, não se pode falar de descobrimento, sim de criação ou invenção como o Dom Quixote e o plástico. Julgo aliás que era Agostinho da Silva quem declarava que o Brasil é uma invenção portuguesa...

Os americanos não podem queixar-se do termo "descoberta", usado pelos europeus, alegando que já existiam (o que não é verdade, a não ser na boca dos índios, cujas queixas não são essas, nem contra nós...), podem é lamentar-se: "Os europeus só nos descobriram em 1500?!! Que vergonha, nós à espera e eles tão atrasados!..."

Desculpem o desabafo, é que essa censura à petulância europeia das descobertas já tem barbas, não faz sentido, mas continua a ouvir-se. Tal como se ouve a pergunta: "Que fizeram os portugueses ao ouro e diamantes trazidos..." Trazidos daqui ou dali, de território português, e que têm os estrangeiros de hoje a ver com isso? Naquele tempo, os ancestrais dos brasileiros que hoje falam andavam no contrabando do ouro e dos diamantes, fugindo aos quintos devidos à Coroa, e eram tão bracarenses ou vimaranenses como os minhotos hodiernos.

Em resumo, tinha eu umas fotografias do Mosteiro de Cárquere, sem explicação para as contextualizar, de modo que as publico agora com uma citação de "D. Afonso Henriques" (págs 20-22), de Diogo Freitas do Amaral (2). É provável que venha mais vezes a beber nesta fonte, que poderá não estar exaustivamente documentada, nem poderia, mas oferece a alta probabilidade de ter sido Afonso Henriques como pretende o autor, e de os acontecimentos relacionados com a sua liderança - a fundação da nacionalidade - terem ocorrido ainda segundo o ponto de vista do biógrafo, convincente pela lucidez da análise e sua autoridade política.

Detalhe a não desvalorizar: este é um livro para todos, com as virtudes pedagógicas decorrentes certamente da circunstância de Diogo Freitas do Amaral ser professor.

 

1. Armando de Almeida Fernandes
2. O Mosteiro de Cárquere










DIOGO FREITAS DO AMARAL
D. Afonso Henriques
Biografia
Lisboa
Bertrand Editora, 2000, 7ª ed.
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