MARIA ESTELA GUEDES
Ler ao Luar

Esoterismo das “33 Folhas”
de Ernesto de Sousa



INDEX

1. Isabel, um pouco de História
2. 33 Folhas ou 33 Graus?
3. Mistérios do girassol
4. Notas

1. Isabel, um pouco de História

Ernesto de Sousa foi uma dessas figuras fortemente carismáticas na cultura portuguesa, que atravessaram a barreira da ditadura, para o seu pensamento se abrir, sem censura, com a democracia instaurada em Portugal a 25 de Abril de 1974. O livro “33 Folhas”, cuja última data expressa é 1972, espelha algo do que foi o período salazarista, talvez não para o leitor estrangeiro, sim para quem teve a fortuna de conviver com o autor. Ernesto de Sousa foi várias vezes preso pela PIDE, a polícia secreta de Salazar, como tantos outros intelectuais, sob acusação de actividades subversivas.

Para obviar a lapsos de memória, próprios de quem, neste momento, escreve sem fontes debaixo dos olhos (1), transcrevo a nota biográfica de José António Salvador, publicada no Diário Popular na altura da morte de ES, e hoje em linha em vários locais:

JOSÉ ERNESTO DE SOUSA nasceu em Lisboa, em 1921, e nos anos quarenta frequentou a Faculdade de Ciências, onde organizou a exposição de arte negra da Associação de Estudantes. Militava, então, no MUD Juvenil, organização política da resistência antifascista, na qual o PCP desenvolvia uma participação significativa a par de outras correntes de opinião.

Amante das artes e entre estas do cinema, Ernesto de Sousa foi pioneiro na animação cultural, contribuindo para a implantação do movimento cineclubista no nosso país a partir da década de 50, ao fundar o primeiro cineclube entre nós, o Círculo de Cinema.

O cinema apaixona-o e dirige a revista «Imagem». Em 1962 nasce do seu talento um filme que marcou o cinema português: «Dom Roberto», com o actor Raul Solnado. Como afirmou um grande crítico, Alves Costa, «é talvez arbitrário considerar Dom Roberto o filme charneira. O certo é que a partir dali a história do cinema português seria outra».

Ernesto de Sousa, no silêncio do seu comedimento, fez outra história para o cinema português. Como fez outra história para as artes por onde viajou: - encenações no TEP, cursos de formação artística na Sociedade Nacional de Belas-Artes.

Nos anos 60, quando se preparava para se deslocar a Cannes e aí receber o Prémio da Crítica pelo seu filme «Dom Roberto», foi detido pela PIDE, ficando preso na cadeiado Aljube. Nos anos de chumbo, a liberdade era coisa por conquistar. E o direito à diferença, estrangulado pela violência da ordem imposta.

Escreve, lê, pinta, fotografa, filma, teatriza, vive numa busca constante da beleza inesperada. Instalações, exposições e happenings fazem parte do seu itinerário nos anos 70 e 80.

Atravessa-o o 25 de Abril quando já tinha sido preso três vezes pela PIDE: em 48, numa reunião do cineclube, mais tarde por ter visitado a URSS e a última vez quando foi impedido de receber o prémio em Cannes.

«Foi a minha terceira prisão», declarou a Rui Ferreira e Sousa. «Eu estava no Aljube. Vesti-me com o fraque que iria levar a Cannes e fui contando vários episódios. Todos os companheiros estavam a ouvir-me contar e ler poesia: operários e até guardas. Então, os presos confeccionaram um diploma para me oferecer e premiaram, assim, a realização de 'Dom Roberto'. Foi muito bonito».

Pode dizer-se que o objectivo supremo deste homem foi fazer da vida uma coisa bonita, como quem respira. Conheceu Bazin, Agnès Varda, Resnais. Estudou Sartre, Merlau-Ponty e Rosa Ramalho. Conheceu por dentro o neo-realismo como o surrealismo. Não impôs a si próprio fronteiras ideológicas e deixou que a cultura o atravessasse sem tréguas.

Filma poemas de Herberto Helder, faz exercícios sobre poesia de Almada Negreiros, Luísa Neto Jorge, Herberto e Cesariny no Primeiro Acto de Algés, com música de Jorge Peixinho e a sua imaginação.

Recupera painéis de Almada Negreiros, em Madrid. É comissário por Portugal para a Bienal de Veneza em 1980, e vive no silêncio da sua serenidade . J.A.S. (2)

José António Salvador refere a exposição de arte negra e Rosa Ramalho, ou Ramalha, uma célebre ceramista popular, em paralelo com o conhecimento íntimo do surrealismo e outras actividades na vanguarda. De facto, Ernesto de Sousa cruzava duas grandes linhas de força, ao contrário, aliás, do que pretendeu o surrealismo de primeira fase, que visava cortar amarras com a arte do passado: aliava a arte vinda da tradição com a modernidade. Esse cruzamento deixou título numa instalação na galeria Quadrum, em Lisboa, “A Tradição como Aventura”.

Para protagonizar a Tradição, ES escolheu Mitra, divindade solar iraniana que Cristo espelha em vários aspectos, entre eles, o nascimento, a 25 de Dezembro, no solstício de Inverno, de acordo com outro cineasta português, António de Macedo (3). A vanguarda, ou aventura, vê-se nos procedimentos: uma parede recoberta com cópias, em grandes dimensões, da sua fotografia da pequena escultura de Mitra, tão mínima que ES mostrava o polegar para lhe indicar a altura. No TriploV estão em linha textos e imagens dessa instalação (4).

Na época de redacção dos textos, as mais importantes mulheres na vida de Ernesto de Sousa, esposas, por acaso objectivo, decerto, chamavam-se, e chamam-se, Isabel. Para além de mescla de prosa, verso, imagens, etc., o livro apresenta uma linha dramática, expressa no discurso directo, mais óbvia na “Carta a Isabel”. O processo traz então à superfície uma personagem feminina, mas a pessoa a que se refere não é sempre a mesma. Não só o nome se refere a várias Isabéis, como é à Mulher, ou a todas as mulheres, que ES dedica este livro (Folha 6, na edição do TriploV).

Espero não violar a privacidade de nenhuma de nós, mulheres, se disser que uma das de “33 Folhas”, minha querida amiga Isabel Alves, é a viúva de Ernesto de Sousa, mulher ligada de várias maneiras à arte contemporânea; e que outra, grande figura da frente guerrilheira que na sombra combateu a ditadura, Isabel do Carmo, estava na prisão à data em que alguns dos poemas do livro foram redigidos. Aliás, a acção de Isabel do Carmo prolongou-se para além da instauração da democracia, o que lhe grangeou longa peregrinação pela cadeia e pelos tribunais:

Isabel do Carmo , hoje médica num hospital de Lisboa, fundou com o marido as Brigadas Revolucionárias e mais tarde (1973), o Partido Revolucionário do Proletariado (PRP).

Após o 25 de Abril, destacou-se no denominado "período quente", desenvolvendo grande actividade nas ruas, em empresas e em fábricas. Acabou por passar alguns anos presa, acusada de "autoria de acções armadas". Após a sua libertação seguiu a carreira médica. (5)

Foi com Carlos Antunes que Isabel do Carmo fundou as Brigadas Revolucionárias. O livro “33 Folhas” cobre um período de mais de 12 anos, recuando aos anos 60. A presença de Isabel nele, bem como alguns temas, como o apelo à liberdade e à revolução, e referências políticas indiscutíveis, de aprovação de lutas pela independência colonial, como dedicatórias a heróis tombados nesse combate - Patrice Lumumba, do ex-Congo-Belga, assassinado em 1961; Amílcar Cabral, dirigente do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, assassinado em Conakri a 20 de Janeiro de 1973; e Che Guevara, assassinado em 1967, no povoado boliviano de Higueras, aos 39 anos de idade, por boinas verdes bolivianos, exército treinado e armado pelos norte-americanos – estas pessoas e temas, repito, precisam de ser postas na mesa deste ensaio, sob pena de ligeireza da minha parte, ao pegar no livro por um lado que não é certamente o mais importante: os elementos relativos a um hermetismo de sempre, mas que assume relevo especial com as obras dos surrealistas, e em Ernesto de Sousa desempenha um papel desconcertante.

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