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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências

ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 







Maria Estela Guedes
Foto: Ed. Guimarães

In vino veritas?
 
In Revista Incomunidade: http://www.incomunidade.com/v14/

 

um bando de bêbados entrou num velório e pôs-se à

bofetada no morto,

e riram-se todos muitíssimo,

que lavre então a loucura, disse eu, e toda a gente se ria,

até a família,

Herberto Helder, «Servidões», 2013

 
 

Quando escrevemos, e inclua-se na situação de escrita a leitura diante de um auditório, a vida fica bastante distanciada da rotineira, porque o nível de realidade no interior de uma obra de cultura é diferente do exterior a ela. Não é a mesma coisa «beber um copo», expressão que acaba de ler, e beber deveras um copo às refeições, deixando até de lado a circunstância de que jamais bebemos o copo e por isso não é só no primeiro caso que nos ficamos pela salivação.

Vem isto a propósito de uma tertúlia em que participei há tempos, cujo tema, como agora, era o vinho. Discorri sobre a importância dele na literatura, invoquei Dionísio, inventor do vinho e do teatro, mais o seu filósofo, Nietzsche, apontei a reprodução de um Baco de Caravaggio, li uns segmentos da versão herbertiana do «Cântico dos Cânticos», poema em que um do outro dizem os amantes que o seu amor é melhor que o vinho, e que muito melhor que vinho são as carícias de Sulamite a Salomão (Cant 4:10), para no fim concluir que o auditório ouvira num nível de realidade diverso do meu, já que o tom geral da resposta foi o de preocupação com o meu contributo para disseminar o gosto pela bebida e possível corrupção da juventude ao interpretar o texto bíblico de um ponto de vista erótico.

Caros leitores, uma coisa é o vinho como elemento de civilização e de cultura e outra é o abuso das bebidas alcoólicas. Não vamos fechar os olhos à presença do vinho e sua área semântica na literatura, seja profana seja sagrada - e é do espaço sagrado que o vinho transita para o espaço profano e não o inverso -, só porque algumas pessoas bebem as palavras em vez de comunicarem com elas. Não vamos pedir à Igreja que troque o vinho da eucaristia por coca-cola, alegando que a comunhão é um convite ao alcoolismo! E, por favor, não consideremos o «Cântico dos Cânticos» um hino de amor à Santa Madre Igreja, porque isso é um atentado à inteligência!

Posto o desabafo, volto às lides culturais como se nenhum percalço tivesse acontecido, e desta feita, em vez de eucaristia e «Cântico dos Cânticos», trago, sem o ter procurado, portanto por mero acaso – vou referir livros que estava a ler para outro fim, o acaso quer dizer então que a percentagem de obras em que aparecem o vinho e termos correlacionados é muito alta: «O Banquete (In vino veritas)», de SØren Kierkegaard (Guimarães Editores, 1989, tradução de Álvaro Ribeiro) e «Ecce-Homo», de Nietzsche (Guimarães Editores, 1984, tradução de José Marinho).

A função do vinho no segundo livro, o de Nietzsche, é apenas pontual, mas lembremos que n’ «A origem da tragédia» o filósofo criou um modelo de leitura da arte segundo duas perspetivas divinas, sendo uma delas Dionísio. É ainda sob o signo vinícola que Nietzsche empreende «Ecce-Homo», o seu diário: “Neste dia perfeito em que tudo amadurece, e não só as uvas começam a dourar”… Mais adiante, ao comentar «A origem da tragédia», define o espírito dionisíaco como um sim à vida, à criação, e um não à decadência.

É esse impulso criador que de resto atrai para a função desempenhada pelas drogas na obra de arte. No seu mais recente livro, «Servidões» (Assírio & Alvim, 2013), no qual, diferentemente do que acontece em obras de juventude, encontramos apenas três ou quatro referências ao tema em debate, uma delas “ivresse”, remetendo talvez mais para Rimbaud do que para Baudelaire, Herberto Helder deixa o testemunho de que o prestígio da poesia diz respeito à sua origem e não ao seu fim.

Com efeito, o que nos move perante a arte não é um utilitário «para que/m serve?», ainda que saibamos, e dos mesmos que nos inclinam a atenção para a génese e não para o epílogo, que no seu termo ela concede um pouco de eternidade, o que nos move é saber se existem e como trabalham as musas. Há um mistério na arte, mistério que a torna fascinante e sublime: de que nasce ela? Qual a sua origem, qual a sua fonte? É um dom, como pretende Herberto Helder?

Rogo aos deuses que os geneticistas se macem antes de traçarem o mapa completo do genoma humano porque, se vão descobrindo o gene do cancro, o gene guerreiro, o gene do estrabismo, o gene dos cabelos louros, o gene do alcoolismo, etc., um dia vão descobrir o gene da redondilha e o gene do verso livre, e nessa altura a vida terá secado nos campos como depois de uma grande caloraça de agosto. Nenhum ser pensante conseguiria sobreviver ao massacre de um paradigma que impusesse a ideia de uma existência totalmente pré-determinada. Enquanto esse dia não chega, imaginemos que existem musas, que as musas são dons que nos libertam a língua, o rio das palavras, a torrente cujo ímpeto coloca no espaço algo que antes lá não estava e é brilhante como estrelas e radicalmente diferente delas. Pois entre essas musas podemos incluir a Dona Vitis vinifera.

O vinho estimula, descontrai, tira o medo, daí «A verdade no vinho» de SØren Kierkegaard, ou o banquete que põe à consideração dos que também leram Platão e a história de um Amor nascido de pai rico e de mãe indigente, num tempo, ensina Diotima a Sócrates, em que os deuses bebiam néctar por ainda não existir o vinho. Uma das exigências para o sucesso do simpósio de Kierkegaard é precisamente a sua abundância, e mais: os convivas só poderão usar da palavra quando se sentirem sob os seus eflúvios, já que os temas propostos são quentes: a mulher e o amor. De uma parte agrilhoados pelos tabus e de outra cingidos a protocolos de segredo, não é fácil falar desses assuntos em público e ainda menos dizer a verdade. O vinho liberta as línguas e reza a tradição que, em estado de euforia provocada por ele, o falante é levado a dizer a verdade, tal como o subtítulo da obra revela, esse velho ditado de todos conhecido: In vino veritas.

Resumo, pois não pretendo comentar o que dizem do amor e da mulher os cinco convivas, aliás cinco heterónimos de Kierkegaard, e anoto que «O Banquete (In vino veritas)» é uma «Recordação escrita por William Afham», com prefácio de Hilário, encadernador:

1.    O primeiro conviva a falar é um jovem que nunca amou. Diz que o amor é contraditório e por isso ridículo; ele foge do amor para não se tornar vítima de troça.

2.    Constantino declara que a mulher é facécia, motivo de risota.

3.    Vítor Eremita, o terceiro a discursar, afirma que a mulher inspira os homens, tudo o que eles fazem de bom e grandioso deve-se à influência feminina, mas não das esposas. Para uma esposa exercer força inspiradora, precisa de morrer primeiro.

4.    O costureiro entende que a mulher tem na moda a sua segurança, vive para ela e não pensa em mais nada. Se acede a passear com o homem no jardim, não é pelo gosto de andar com ele, é só para mostrar aos outros o último grito da moda, os brincos no nariz.

5.    Por último, fala Johannes, o sedutor. Este alega que a mulher é perfeita e existe para ser seduzida.

Como adverti, não comentarei o que a filosofia de há cento e tal anos pensa da mulher e do amor, porque o que aqui me trouxe foi só o prazer de degustar um Porto com a InComunidade. O vinho foi necessário ao banquete para que os convivas falassem livremente e dissessem a verdade a respeito da mulher e do amor. Sim, claro, evidentemente, mas que verdade? Como aquilatar a verdade numa obra em que os discursos pertencem a heterónimos e o próprio relato não é perfilhado pelo autor, sim apresentado como se tivesse sido escrito por um tal William Não-sei-quem?

Kierkegaard também é autor do ensaio «O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates». A ironia consiste, diz ele, em expressarmos o contrário daquilo que pensamos, donde implica mentira; a verdade consiste então em dizermos aquilo que pensamos. Nada entretanto garante que os convivas mintam, partindo nós do princípio de que são heterónimos para Kierkegaard se proteger. Nem pelo contrário, não, nem ele precisa de se proteger nem nada garante que digam a verdade… Tal como nada garante que Kierkegaard transmitisse a verdade, se fosse ele a assinar o livro. Uma coisa é a concordância do pensamento com as palavras, e a essa verdade cabe melhor o nome de sinceridade, outra, muito diversa, a concordância das nossas palavras com os factos. E nada garante que uma testemunha presencial tenha a posse da verdade só por ter observado certos factos…

A única verdade do vinho pertence a Johannes, ao garantir que as mulheres são perfeitas. Muito obrigada, é sempre bom ouvir isso, por muito que o saibamos desde sempre e por outras fontes. Todas as mulheres eram e continuam perfeitas, mesmo quando, terminado o banquete, os convivas fazem o último brinde, quebrando em seguida as taças, atiradas de costas contra a parede. Como quem diz: «Desça sobre nós o olvido. Que nada do que aqui foi revelado permaneça na lembrança».

Não desceu olvido nenhum, tudo se rememora e comenta. Brindemos por isso a esta edição portuguesa de 1989 de «O Banquete (In vino veritas)”, sublinhando que ainda hoje, se formos ver bem, a opinião geral sobre as mulheres e o amor...

 

 

Maria Estela Guedes . Casa dos Banhos, 19 de agosto de 2013

Maria Estela Guedes (1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov

Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.

LIVROS

“Herberto Helder, Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979;  “SO2” . Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”, Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa, 1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários : Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora, 1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”. Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007; “Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed. Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010. “Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010; "Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa, Apenas Livros, 2011; Trabalhos da Maçonaria Florestal Carbonária. Lisboa, Apenas Livros, 2012; Brasil, São Paulo, Arte-Livros, 2012. "As Rosas do Freixo", Apenas Livros, Lisboa, 2012; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013.

ALGUNS COLECTIVOS

"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010. "Munditações", de Carlos Silva, 2011. "Se lo dijo a la noche", de Juan Carlos Garcia Hoyuelos, 2011; "O corpo do coração - Horizontes de Amato Lusitano", 2011.

TEATRO

Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.