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Maria Estela Guedes

"Nha Carlota", de António J.E. Estácio

Nha Carlota (1889-1970) é uma figura famosa na Guiné-Bissau. A sua ação remonta ao período anterior à independência e recua a tempos ainda mais remotos, tempos que a bem dizer já só sobrevivem na memória das estátuas - refiro-me à de Teixeira Pinto, no jardim do mesmo nome, na parte alta da cidade - o Ku Pelon, se não erro. Não devo errar a não ser na ortografia, o que de certeza mais errado está é a suposição de que a estátua ainda exista, bem como o nome do jardim. A toponímia de regiões que sofrem mudanças políticas drásticas é alterada, e o facto envolve imensos problemas. Exige uma nova disciplina no conhecimento, que produza descodificadores geográficos. Por exemplo, muitas terras típicas (locais onde foram encontrados exemplares da fauna, flora ou mineralogia que serviram para a descrição de novas espécies, géneros ou outro taxon) de espécies importantes de Angola, agora são difíceis de localizar, porque a toponímia mudou completamente. Mas adiante, já voltaremos a Teixeira Pinto, com ou sem jardim com o seu nome, e estátua no Ku' Pelon, junto à estrada de Bissalanca, a que vai dar ao aeroporto.

Quem nos conta a história de Nha Carlota é António J.E. Estácio, que a admira, e muito, ou não teria investido tempo e a sua própria pessoa numa investigação cujo corpus é constituído, mais do que com documentos escritos, pelas suas próprias memórias e experiências, e pelos testemunhos orais de pessoas que conviveram com ela. O autor voltou à Guiné-Bissau em 2006, a recolher informação de familiares e amigos e a visitar os locais frequentados por esta cabo-verdiana que trata por "mulher grande". Em geral, o que há é "homens grandes", os respeitáveis anciãos chefes de família, isto na língua guineense. Porém, o facto de ser "mulher grande" não bastaria para lhe dedicar um livro.

António Júlio Estácio nasceu na Guiné, a língua que usou foi o português (podia ter escrito em crioulo), o tema  diz respeito à Guiné-Bissau (e a Portugal, e a Cabo Verde, etc., e ao mundo), mas receio que estas três razões não bastem para os bissau-guineenses considerarem o livro como pertencente à sua literatura. Em princípio, à sua literatura pertencem obras assinadas por pessoas de nacionalidade bissau-guineense. O mesmo se diga de outras literaturas, talvez. Em relação à portuguesa, o assunto não apresenta importância de maior: saber se Camões era galego ou português, se as obras de Gil Vicente em castelhano são portuguesas ou espanholas, e por aí adiante, não nos afeta: "Os Lusíadas" continuam a representar-nos como Nação e as obras em castelhano dos escritores que publicaram durante os reinados filipinos continuam a ser portuguesas. Aliás o mesmo acontece com as obras e os autores brasileiros, moçambicanos, angolanos, cabo-verdianos, guineenses, etc., se existem, que datam do tempo em que Cabo-Verde, Moçambique, Brasil, Angola, Goa, Macau, Timor, etc., eram espanhóis. Em suma, estes assuntos parecem literários, mas realmente nada têm a ver com a arte, eles dependem do estabelecimento de convenções políticas.

Esta discussão não faz grande sentido nem em Espanha, nem em Portugal, porque são países de "muitas chuvas", agora em relação a países jovens, sim, porque os autores são pessoas vivas, apaixonadas, que sofrem por se sentirem excluídas do grupo ou se alegram por se sentirem aceites nele. É uma questão de "tchon", de terra-mãe, o que entra por dentro das causas familiares, as mais determinantes para nós. Não há nada de mais importante para nós do que os filhos, os pais e o lugar de implantação do clã familiar.

Convém que a mãe-pátria não exclua exageradamente, ou ela é que ficará de luto, o que não se traduz apenas em perda de património literário, sim, e sobretudo, em perda de património para formação futura dos cidadãos. Os cidadãos não se formam com leis nem à chicotada, formam-se na leitura, com a experiência da cultura, da ciência e da arte.

Presumo que os autores nativos que se encontram no exílio ou na diáspora, com nacionalidade não-bissau-guineense, se contam em muito maior número do que os nacionais ou nacionalizados. Se estas contingências forem motivo de exclusão, mais do que os autores, quem perde é a Guiné-Bissau. Não podemos dar-nos ao luxo de excluir património cultural, mesmo em termos pessoais. E nem tal seria exequível: não posso excluir da minha formação a influência que nela exerceu José Saramago, sob alegação de que era comunista e anti-católico, nem, pelas opostas razões, conseguiria riscar da memória "O minino Deus em metáfora de doce", de Frei Jerónimo Baía. Se só integramos o que aprovamos, ficamos com as mãos armadas, sim, mas cheias de nada.

Do meu ponto de vista, este debate precisa de se posicionar fora do espaço político. É de fora dele que concluo sobre a riqueza e diversidade das obras pertencentes à "literatura guineense" (1). Se a expressão, no seu maior rigor, só comportar autores de nacionalidade bissau-guineense, então, para tristeza nossa, o meu levantamento da literatura correspondente está feito na maior parte (2). Que eu saiba, faltam textos que representem a obra de um ficcionista, Abdulai Silá, e de alguns dois ou três poetas mais.  Convenhamos em que uma lista de uma vintena, ou mesmo de três vintenas de autores, é muito pouco para um país. Se esquecermos a nacionalidade e estudarmos tudo o que diz respeito à Guiné-Bissau, sim, neste caso há literatura suficiente para alimentar algumas teses de doutoramento, sobretudo porque nesta literatura também é preciso contar com as obras de caráter historiográfico, relatos de exploradores, naturalistas e tantos outros.

Quanto a Nha Carlota, que, não sendo nativa, foi uma famosa figura guineense, como demonstra António Júlio Estácio, resta saber de onde lhe veio a fama. A mais remota, é a de ter combatido ao lado de Teixeira Pinto, nas guerras de pacificação, as guerras movidas pelo exército português contra as tribos insurretas da Guiné.

Esta celebridade lembra a de outras mulheres que combateram ao lado de homens, e estou a lembrar-me de Anita Garibaldi, que no Rio Grande do Sul pegou em armas pela independência da região, ao lado de Giuseppe Garibaldi, seu marido. A diferença é que Nha Carlota, que tinha Salazar em grande consideração, e que foi recebida por ele, estava politicamente alinhada com o regime colonial. Anita Garibaldi foi uma revolucionária, uma republicana, que alinhou com os insurretos contra o centralismo da monarquia brasileira.

Bem, vamos lá, sem preconceitos: afinal, estou é a falar de heroínas da História de Portugal, o que em pouco se relaciona com Brasil e África, certo? Ou será que o Brasil reivindica para si a Anita e a Guiné-Bissau quer reivindicar Nha Carlota? Não, isto é literatura e cultura portuguesa... Vejamos: quer Anita Garibaldi quer Nha Carlota eram portuguesas, não é verdade? Anita nasceu em 1821, ainda o Brasil era a parte de Portugal na América. Além disso, o pai de Anita era português nativo, nascido em Portugal. Nha Carlota morreu em 1970, ainda Cabo Verde e Guiné eram partes de Portugal em África. Se algum país pode reclamar a sua memória, esse país é Portugal, não a Guiné-Bissau, e ainda menos Cabo-Verde. A sua nacionalidade foi sempre portuguesa. A História de Portugal só tem a ganhar com a memória destas suas heroínas. Mulheres grandes ilustram qualquer nação, seja qual for o lado político em que se posicionem. Cinquenta anos mais tarde, o valor do lado político desaparece e só fica a História: Nha Carlota, além de combatente, foi mulher de negócios, boa conselheira (junto de António Spínola, por exemplo, que a visitava sempre que precisava de tomar alguma decisão que envolvesse os balantas, etnia dominante na zona de Nhacra), benemérita, e além disso cozinhava lindamente. Em Nhacra, a sua casa funcionava como restaurante em que os clientes só pagavam as bebidas. Os petiscos eram oferecidos. Ficaram tão famosos como ela a sua sopa de peixe, o seu pitche-patche de ostras, a sua cachupa, o seu chabéu e o seu frango à cafreal.

 

(1) Ver o meu artigo "'N'ba papia crioulo?", no nº 5 da Revista TriploV, em:
http://novaserie.revista.triplov.com/numero5/maria_estela_guedes/index.html

(2) Veja o site dedicado à Guiné-Bissau, no Triplov, em: http://www.triplov.com/guinea_bissau/
 

ANTÓNIO J. E. ESTÁCIO

CARLOTA LIMA LEITE PIRES
"Nha Carlota", figura esquecida da História Guineense (1889-1970)

 

Ed. XN xelentenota, Mem Martins, 2010, 120 pp.

Maria Estela Guedes (1947, Portugal). Diretora do TriploV

ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979;  “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010. ALGUNS COLECTIVOS. "Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.