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Maria Estela Guedes
Pedro Proença e a questão da identidade
Prefácio a "O riso púrpura do kairos", de Pedro Proença.
Apenas Livros Editora, Lisboa, 2008.

Pedro Proença é um artista bem conhecido no meio das artes plásticas, cujo talento não passou despercebido logo que apareceu em público. E apareceu, não como figura solitária, sim integrado num grupo de jovens, que então eram alunos da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Apresentaram-se como Homeostéticos, um grupo com actividades mistas, assentes sobretudo na pintura, e cujo carácter dominante era a alegria, a frescura da sátira. Eram eles Pedro Proença, Manuel João Vieira, Pedro Portugal, Xana, Ivo e Fernando Brito. Em paralelo, alguns desenvolveram actividades musicais, caso de Pedro Proença, e de Manuel João Vieira, com a banda Ena Pá 2000.

Nessa altura, final dos anos oitenta do século XX, éramos colegas, o Pedro Proença e eu, apesar de eu ser quinze anos mais velha, na Galeria Diferença, sita na casa onde vivera José de Almada Negreiros, na Rua S. Filipe Néry. Frequentávamos os cursos práticos de fotografia, litografia, gravura, dados por Alberto Picco e Monteiro Gil, e outros, mais teóricos, em que tivemos por mestres Alberto Carneiro e José Ernesto de Sousa.

Quis a sorte que me tivesse ligado a dois elementos dos Homeostéticos: ao Xana, o artista que concebeu o espaço cénico de “O lagarto do âmbar”, espectáculo de multimédia com guião de minha autoria, e ao Pedro Proença, nos últimos anos, dada a sua colaboração abundante no TriploV (triplov.com). Esta colaboração, que ultrapassa a digitalização das suas obras, alastrando à literatura e à música, permitiu-me conhecer outras facetas de uma identidade que para si mesma se desvenda em mais ainda do que aquelas que vislumbrei. Nada de espantar no facto de os pintores escreverem, ou de serem músicos. Não espanta a polivalência do artista nem a hibridação de géneros e modalidades de expressão estética. Embora não seja vulgar, e as pessoas prefiram especializar-se, acontece depararmos com génios polifacetados. Já é menos vulgar a facilidade de o artista tocar com idêntico nível os diversos instrumentos, e de se exprimir de forma idêntica nas várias artes. A questão da identidade poderia assim pôr-se, em primeiro lugar, perguntando o que é Pedro Proença: um pintor? Um poeta? Um ficcionista?

Mais interessante porém do que inquirir a identidade a partir do exercício de múltiplas artes, é entendê-la quanto à interioridade do próprio artista. Pedro Proença desenvolve vários blogs sob identidades femininas, e por vezes essa dupla faceta também se reflecte no que escreve. Trata-se de heteronimia, em processo de sátira a Fernando Pessoa, que conta um Maria José entre as dezenas dos seus outros nomes? Ou algo menos imitativo e mais pessoal?

A questão da identidade põe-se de maneira esquemática na interrogação: “O que é isto?”. “Isto”, parte-se do princípio, se é questionado, é por não ser facilmente reconhecível no quotidiano dos mundos em que, para nossa segurança, tudo está rotulado e cartografado. Para reconhecermos o “isto”, dispomos de muitas grelhas de leitura, oriundas de diversos sistemas teóricos, uns que classificam em géneros, espécies, etc., outros que integram factos em modelos de comportamento, e por aí adiante. Os artistas costumam ser peritos em subverter estes esquemas de pensar para nosso contentamento, virando de cima para baixo as caixinhas do GPS, dessa técnica anarquista sendo bom exemplo o autor deste livro.

É assim que o artista manifesta de formas várias a sua própria estranheza perante os “istos” que lhe dizem respeito e projectou no exterior, em resultado de transmutações em atelier ou escrita. Daí que o verbo se apresente como culinária, “palavras panadas”, geradas num sistema que hibrida níveis e formas de realidade. Em solução, fica a paródia. Um divertimento que, nada tendo de naïf, pois Pedro Proença é um autor culto, conhecedor dos clássicos, das grandes teorias do nosso tempo, apresenta em todo o caso uma vertente infantil, na frescura e jovialidade da sua manifestação.

O leitor, tal como o apreciador da pintura, pode assim deleitar-se com uma gastronomia artística que recorre a ingredientes endóticos e exóticos de estirpe muito diversificada. Basta atentarmos no título do livro, “O riso púrpura do Kairos”, pastiche de “A rosa púrpura do Cairo”, filme de Woody Allen. De um lado, o pastiche revela um dos aspectos da poesia com que se deleita o autor - os vários tipos de rima e outros efeitos musicais ou sonoros. De outro, este realizador de cinema, actor, escritor e músico, fornece belo paradigma da arte e da não-especialização do artista no nosso tempo.

O filme em questão, ao fazer saltar as personagens do nível de realidade da narração para o nível de realidade do espectador, manifesta a grande tendência hibridadora dos nossos tempos. Note quem aspira a uma pureza tal que até o nome de “raça” por vezes exibe: as raças puras, para além de resultarem de misturas, facilmente degeneram. Note quem aspira, hoje, à raça pura, sem qualquer metáfora, que ela se obtém, num primeiro passo, acasalando o filho com a mãe, para garantir que a descendência conserva os genes familiares e que não existe intrusão de genes estranhos. A raça pura gera-se nas relações de consanguinidade, por isso a pobreza em diversidade genética provoca degeneração rápida, como se viu outrora nas linhagens reais e como se sabe das técnicas de apuramento de raças vegetais e animais. Os homens sempre souberam defender-se do perigo, buscando enriquecer os patrimónios genéticos com “sangue novo”, como se dizia. O tabu do incesto é uma medida exemplar de defesa e, em certas tribos africanas, o casamento promove-se entre jovens que pertençam a comunidades o mais possível distantes. Não é permitido o casamento a jovens nascidos na mesma aldeia, o que evita a consanguinidade.

Faz parte dos comportamentos actuais da crítica lidar com a arte usando aparelhagem teórica oriunda das ciências, quer para defender esta tese, quer essoutra. Valerá então a pena saber que realmente o mulato é mais forte, mais resistente, e em certos casos maior até, e mais belo, além de absolutamente novo. Misturando, em arte, obtém-se o que antes não existia. O novo, em arte, como entre os híbridos vegetais e animais, causa sempre um sobressalto ao sistema, por não ser facilmente identificável.

Questão de identidade é ainda a que se revela na abertura do livro, com outro pastiche, o da “Tabacaria”, de Álvaro de Campos, não tanto pelo pastiche, sim pela citação do mais mundialmente famoso autor de múltiplas identidades, Fernando Pessoa.

O que é que Pedro Proença hibrida, fugindo assim ao empobrecimento progressivo da coisa pura? Tudo: o grego com o português, o filme com o poema, a epopeia com a lírica, a literatura com a gastronomia, a poesia com a música, o masculino com o feminino, o sublime com o grotesco.

Muito perto assim de génios excessivos como o “Pantagruel” de Rabelais, que em Portugal tem um reflexo universitário no “Palito métrico”, subtítulo da “Macarrónea Latino-Portuguesa”, génios encontrados no trabalho da modernidade e no conhecimento das suas tendências performativas e intelectuais, Pedro Proença documenta aquilo que nos nossos dias se podia designar por autor total - aquele cuja obra, além de multifacetada, se apoia na questão da identidade. E vê-se então que não faz sentido, nem perguntar se Pedro Proença é um pintor ou um escritor, nem excluir de um a parte do mesmo: ele é um artista, não devemos subtrair quadros ao escritor nem excluir os poemas da sua pintura.

Por fim desejo esclarecer que a questão da identidade em Pedro Proença, tal como noutros autores posteriores à modernidade que põe em cena a heteronimia de Pessoa, tal como celebrizou o “Je est un autre” de Rimbaud ou o “Eu não sou eu nem sou o outro”, de Mário de Sá-Carneiro, a questão da identidade, nos nossos tempos, não se deve a uma pulverização do “eu” nem à descoberta do “id” freudiano, ela é um resultado disso em consolidação, em auto-reconhecimento, e só se compreende como rejeição metódica de sistemas teóricos, ideias feitas e metafísicas de tabacaria, como seria a de relacionar o tema com ideologias. Mais proveitoso seria relacioná-lo com a assunção do auto-conhecimento na fase do espelho.

Numa época de descrença e desconfiança em tudo, e por consequência no que os representantes da comunidade fazem e dizem, resta uma barca para a travessia de Ulisses, esse, que só o cão reconheceu à chegada a Ítaca. É a barca da auto-confiança, do auto-investimento num projecto individual de criação de valores. Confiança nos poderes pessoais, que no caso são os da criação poética, dominada pela alta metaforização. Como o autor a pinta, essa realidade negra que também é cosmogónica, é aquela em que temos de ousar e de criar, erguidos como super-heróis. É dos indivíduos humanos que o futuro depende, de cada frágil e efémero Narciso, uma vez postos em crise sistemas e valores socializantes pelos quais até aqui se têm regido nações: Noite mais obscura que Deus,/ Mais inflamada que o incêndio universal,/ Mais ansiosa que…/ Noite de pneus.// E todos me são ao quererem ser-te,/ E eu desfaço-me na minha amanteigada Unidade/ Numa torrada roxa.

Não teremos outro remédio, artistas e não artistas: o futuro do planeta depende da capacidade de cada um de nós ser o Encoberto, de cada um de nós ser a Unidade, que o mesmo é dizer, de cada um de nós ser Deus.

Odivelas, 8 de Abril de 2008

Pedro Proença
Foto: MEG / Galeria Diferença, 1985/1987
Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008).