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Maria Estela Guedes

A mulher e a ciência

Curso de Verão de Teologia. Instituto S. Tomás de Aquino
Fátima, 25-29 de Agosto de 2008

INDEX

1. Das ciências à ciência

2. Herpetologia - ciência com objeto diabolizado

3. Da teoria e das práticas

Bibliografia

1. Das ciências à ciência

Noutros tempos, entendia-se que o papel das mulheres devia circunscrever-se ao lar, por isso as jovens não frequentavam as escolas. No nosso país, as primeiras pessoas a manifestarem a opinião de que as mulheres, para bem cumprirem as suas tarefas como educadoras dos filhos, tinham de ser instruídas, foram reformistas do século XVIII como Jacob de Castro Sarmento e Luís António Verney, autor de “O Verdadeiro Método de Estudar”. Estas ideias, perseguidas por subversão no tempo de Pina Manique e do Marquês de Pombal, faziam parte de um movimento europeu, de cariz maçónico, interessado em promover a ciência moderna, de modo a instaurar o progresso nas sociedades. As reformas fizeram-se mas levaram seu tempo, de modo que só na fronteira do século XIX para o século XX vemos as mulheres nas universidades, mas em pequeníssimo número. Com as mudanças sociais, no correr dos anos aumenta essa participação, a ponto de actualmente haver mais mulheres do que homens a exercerem funções na ciência. Sou testemunha desse facto, na área científica que conheço bem, por ter tido papel nela como técnico – a zoologia.

No final dos anos sessenta, entrei como preparadora para o Laboratório Zoológico e Antropológico (Museu Bocage), uma das secções do Museu Nacional de História Natural. Nessa época, havia aulas no Museu, pois ele faz parte da Universidade de Lisboa. Fui destacada para ajudante de uma naturalista que se especializava em invertebrados marinhos – Maria Morais Nogueira. Eram poucas as professoras universitárias, ao tempo. Progressivamente, e sobretudo com o impulso libertador do 25 de Abril, os homens foram-se deslocando para sectores mais rentáveis, deixando um largo espaço de manobras às mulheres.

Uma pergunta que se pode fazer é a seguinte: então existem assim tantos cientistas? Sim, existem, porque na Universidade se exige aos professores que façam investigação científica, em paralelo com a carreira docente. Porém raros têm visibilidade pública. Ao contrário dos artistas, que se exibem em palco, a ciência exercita-se em espaço interdito ao público, o laboratório. É impraticável por isso fornecer uma lista das mulheres cientistas no nosso tempo, elas são de várias maneiras desconhecidas – como os homens, de resto. Para se tornarem conhecidas, precisam de colaborar regularmente nos meios de comunicação de massa. Mas mesmo aqui a visibilidade é sempre limitada.

Vejamos um caso de rica significação, o de Lynn Margulis, autora, com o filho, Dorian Sagan, de vários best sellers, como “O que é a vida?” e “As origens do sexo”. Lynn Margulis é bióloga e professora na Universidade de Massachusetts. Foi casada com um cientista mais conhecido ainda do que ela, por ser um excelente comunicador em televisão – refiro-me ao astrónomo Carl Sagan.

A teoria mais importante de Lynn Margulis é a da origem da mitocôndria por endossimbiose: a mitocôndria seria um organismo separado que teria entrado em simbiose com células eucarióticas. Eis um discurso impenetrável a leigos, relativo à vida celular, só observável mediante microscópio depois de preparações que requerem tecnologias sofisticadas. Por isso, consciente do atropelo à realidade, direi que a teoria de Lynn Margulis se relaciona com a da autopoiese. Nas suas próprias palavras, pág. 31 de “As origens do sexo”, “As entidades que metabolizam, isto é, que mantêm e perpetuam quimicamente a sua identidade apesar das constantes perturbações ambientais, são consideradas autopoiéticas”. Estamos um pouco mais esclarecidos, porque sabemos que poiesis é criação. Entendemos assim que Lynn Margulis faz parte dos cientistas que levantaram a hipótese de a vida se criar a si mesma. No entanto, a imagem mais compreensível da sua teoria só surgiu mais tarde, na passagem do campo microscópico para o astronómico, quando James Lovelock publicou vários best sellers sobre a teoria de Gaia: Gaia, a biosfera terrestre, seria um superorganismo que se regula e se cria a si mesmo, capaz até de se defender dos seus inquilinos mais perigosos, a espécie humana, combatendo-os com cataclismos e doenças.

Como dizia, Lynn Margulis é uma excepção à regra segundo a qual os cientistas são desconhecidos. A título de curiosidade, anoto duas circunstâncas que dificultam o levantamento das mulheres que fazem ciência hoje em dia em Portugal. É a primeira a das que se divorciam, mudando de nome em consequência. Para fins bibliográficos, temos uma ictiologista que funciona como dois autores: até ao divórcio assinou Maria José Mascarenhas, depois dele passou a entrar nas bibliografias com o nome de Maria José Costa. Outra circunstância que dificulta o recenseamento das mulheres em ciência é o das que assinam com iniciais nos primeiros nomes. Não é fácil saber se M.J. Collares-Pereira é homem ou mulher. Trata-se de outra ictiologista, especialista em peixes de água doce. Em certa ocasião, Maria João Collares-Pereira foi convidada a apresentar comunicação num congresso nos Estados Unidos; os seus pares foram apanhados de surpresa, pois não esperavam a chegada de uma mulher.

Em suma, a ciência não existe só no segredo do laboratório, ela tem uma componente pública, a da publicação, e é nas publicações que temos de descobrir as mulheres de ciência.

Até aqui, já enumerei várias ciências, o que denuncia a pulverização de grandes áreas do conhecimento em muitas especialidades. Devem ser milhares as ciências actualmente registadas, o que levantou às especializações a suspeita de inoperacionalidade, esquizofrenia e mesmo de desumanidade. Lembremo-nos de Charlot a satirizar em “Tempos Modernos” a especialização de um operário cujo trabalho único era o de apertar parafusos. Na realidade, a alta especialização não exclui a interdisciplinaridade. A herpetologia não sabe só de cobras e lagartos: ela irradia de outras áreas do conhecimento, dentro da zoologia. Nenhuma ciência dispensa a matemática. Muitas, entre elas a zoologia, a biologia, a genética, etc., não dispensam a química nem a geografia. Por vezes, em vez de se dividirem, as ciências unem-se, como a zoogeografia e a fitogeografia, que estudam a distribuição geográfica dos animais e das plantas. O mesmo acontece de resto com as teorias de Lynn Margulis, que assentam em resultados obtidos por uma ciência híbrida, a bioquímica.

De outra parte, o cientista publica os resultados da sua investigação, além de precisar de ler os colegas, em línguas diversas. Ora a língua é um portador de cultura, portanto o poliglotismo proporciona conhecimentos gerais e específicos formadores de uma ciência muito mais vasta que a especializada.

O sucesso dos cientistas como Lynn Margulis advém-lhes de serem bons comunicadores. Mas o que é isso de ser bom comunicador? É uma arte, uma componente da arte de escrever e de representar. A fusão entre arte e ciência é o mais forte elo que mantém a especialidade unida às ideias gerais. Como reflexo dessa fusão, vejamos que grandes filósofos do nosso tempo, como Karl Popper, René Thom ou Ilya Prigogine, são cientistas.

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008).