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JARDINAR COM FRANCIS BACON
Maria Estela Guedes

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Sumário
Sobre jardins
Maravilhas da Natureza
Teres e haveres
Concluindo com idolatria
Bibliografia

Sobre jardins

A Natureza, na literatura mais invocada em relação à sua presença marcante, seja a novela romântica que põe em cena o selvagem, seja a utopia, nunca é selvagem. Essa natureza é a do jardim, do pomar ou da vinha. Nada disto é considerado natural pelas Ciências Naturais. Campos são cultura – agricultura.

Selvagem autêntico é algo que hoje já só deve existir por convenção: convenciona-se que dado território, na Amazónia, por suposição, com a sua flora e a sua fauna indígenas, é floresta virgem. Virgem quer dizer intocado pelos homens.

Tudo aquilo que se ama na literatura, desde os ribeiros que saem dos seus leitos para ouvirem de perto os cantos de Orfeu, passando pelo locus amoenus em que pastores se cortejam, até aos jardins civilizacionais das utopias, são produtos do engenho humano. Recebem por isso da ciência a etiqueta de artificiais.

Em Francis Bacon domina uma tese, que se espraia por todos os seus textos, e não apenas em “Of gardens”: a de que é possível melhorar a vida dos homens, mediante o absoluto controlo da Natureza por parte da ciência. Por conseguinte, o jardim, imagem do Paraíso, é um artefacto humano, mais próximo até do divino do que do natural, sobretudo se atendermos a uma outra linha de força do rosacruciano autor, a de que o homem é Deus para si mesmo.

“Naturarte”, eis o termo que melhor define o leque de acções transmutatórias da natureza através do artifício humano. Modificar a natureza com a técnica e com a ciência é o programa levado a cabo na Casa de Salomão, ou Colégio da Obra dos Seis Dias, na Nova Atlântida. Não é um programa literário. Ele foi o modelo das academias de ciências. Sobre a estrutura da Casa de Salomão se ergueu a Royal Society of London, e sobretudo, como revela Antoine Hatzenberger, foi esse o modelo que presidiu à fundação e actividades da Academia Francesa.

“Of gardens”, “Sobre jardins”, é um pequeno texto de Francis Bacon, editado nos Ensaios, em 1625. Começa por considerar Deus o primeiro construtor de jardins, e o jardim como a mais perfeita construção que existe: Na verdade – escreve ele -, plantar jardins é o mais puro dos prazeres humanos, isto é, aquele que constitui maior repouso para o espírito do homem; sem jardins, edifícios e palácios não passam de construções grosseiras; e vemos sempre que, à medida que os tempos desabrocham para a civilização e para a elegância, os homens se preocupam em construir edifícios grandiosos e em jardinar delicadamente, como se a jardinagem fosse o complemento máximo da perfeição.

De seguida propõe um jardim cercado, e indica as espécies a plantar ou a semear, de acordo com a sazonalidade e o clima de Londres. Para o Inverno aconselha, entre outras, o ananás, uma planta exótica. Mais espécies exóticas são seleccionadas, o que de resto se revela nos nomes, como as flores africanas, o cravo da Índia ou o abrunheiro de Damasco. O damasqueiro, conhecido no Norte da China, é cultivado em numerosas variedades e híbridos, em toda a parte.

A minha insistência neste ponto, além de prolongar um assunto que estudo há anos, visa lembrar que o cultivo de espécies exóticas, a criação de híbridos, etc., são instrumentos de modificação da natureza. Não é só na utopia que ela se controla, a selecção artificial e a introdução de espécies estava a ser recomendada por Francis Bacon aos seus contemporâneos do século XVI e XVII, tudo indicando que eram práticas tão correntes como hoje.

Continua a curta dissertação aludindo aos perfumes, doces no ar mas de que as flores são avaras, salientando a violeta como a mais aromática.

Em relação à superfície, Francis Bacon opta por uma geometria francamente simbólica, propondo, para o jardim principesco, no mínimo “trinta acres de terreno”, divididos “em três partes: o relvado, à entrada; um matagal ou deserto à saída; e o jardim principal, ao meio, além de alamedas dos dois lados”.

Tão bem delineado como o Templo de Salomão, o jardim terá então alamedas cobertas de doze pés de altura, um monte no meio de trinta pés de altura, com três caminhos para subir a ele, água e gaiolas para aves, colunas, pirâmides, um caramanchão para ágapes com fornos e sem muito espelho, e mais nenhuma ornamentação além desta.

Não fora dar-se o caso de Francis Bacon escrever um século antes de Anderson, e de estar bem identificada a sua pertença à Fraternidade Rosa-Cruz, na qual ocupou o mais alto posto, o de Imperator, e eu diria que o seu jardim é tão maçónico como a Quinta da Regaleira. Aliás, se ele antecipou a engenharia genética e o armamento nuclear, não posso ter medo de declarar que não há nada de mais maçónico do que a sua Casa de Salomão.

Trabalho apresentado ao Congresso Internacional “Jardins do Mundo”. DRAC. Região Autónoma da Madeira. Funchal, 9-12 de Maio de 2007.

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; O Lagarto do Âmbar; a_maar_gato; Lápis de Carvão; Ofício das Trevas; A Boba.