Esta é a música

AMADEU BAPTISTA


George Friederic Handel: La Paix, de Music for the Royal Fireworks

 

Há uma curta distância entre o céu

e a terra,

eu posso imaginar as aves inquietas,

o que passa é forte

como um remo abrindo as águas

e a imagem do homem.

 

Deste lado da luz

o horizonte em chamas

nomeia a solidão,

é grande o ar,

a justa partição do que redime

pelo precário poder

dos deuses,

a chama ilesa.

 

É do fogo que chega

este mistério,

pelo inefável arde,

o eterno sopro em pedra

e som

– a paz do mar.


Ludwig van Beethoven: Ode an die Freude, da Sinfonia No. 9

 

Não sei se isto é um hino e os anjos

precisam deste instrumento

para ampliar o silêncio. O que sei

é que chega de longe esta surpresa

de poder segmentar em força o coração

que em mim pulsa e eu não sei

de onde vem quando na música

pressinto um tema que só aos anjos pode pertencer

pela pujante candura dos acordes

e a humilde magnificência da alegria.

 

Tudo quanto ignoro é que está bem.


Wolfgang Amadeus Mozart: Andante, do Concerto para flauta e orquestra em dó maior K 373

 

Quero que os meus contemporâneos

me contem na minha melhor fase, ainda que não

me ouçam, ainda que engulam silenciosamente

a inveja com que me aceitam, ainda que saibam

que tudo quanto fiz prevalecerá inaudível

até à minha morte, tantos foram

os obstáculos que levantaram à minha passagem

e nenhuma grandeza pôde vencer, nenhum desprezo.

Eles sabem que se o nosso encontro se desmoronou

e o mau juízo que fizeram de mim

se cobriu de esquecimento e premeditada ignorância

foi porque pertenci ao futuro do meu tempo,

ao que houve e há e há-de haver

no coração dos séculos.


Jules Massenet: Meditação, de Thais

 

Não há coisas absolutamente vivas

como não há coisas absolutamente mortas.

 

Sempre que tocamos a árvore

há uma folha que se desprende.


Wolfgang Amadeus Mozart: Allegro, de Eine Kleine Nachtmusik

 

Esta é a música

que nos há-de convir à solidão, a decisiva

cadência, o rastro claro

de ínvias transparências

 

que prefiguram o mundo e estabelecem

a harmonia que há no precipício

e a luminosidade do abismo.

 

Deixemos, pois, a imbecilidade aos imbecis.


Franz von Suppe: Poeta e Camponês

 

A jovem camponesa que faz versos.

Não os passa ao papel porque não sabe escrever,

mas diz que os preserva em cada árvore que vê,

e na chuva que cai,

e no sol que se põe.

Uma pequena erva pode ser um poema,

ou a água que corre no leito de um ribeiro

onde uma luz se esconde ou uma sombra vibra.

 

Como cuidar da imperfeição

senão sofrendo pelo que é perfeito?

 

Às vezes –  diz ela –, passa-me pela cabeça

uma onda de música que não tem lugar

e eu sei pertencer a um mistério sem nome

que dói no coração muito devagar.


Amadeu Baptista (Portugal, Porto, 6 de Maio de 1953). Publicou o seu primeiro livro, As Passagens Secretas, em 1982. Dos mais de trinta livros de poesia publicados entretanto destaca: Poemas de Caravaggio, Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, 2007 e Prémio Literário João Lúcio, 2008; Açougue, Prémio Espiral Maior, Espanha, 2008 e Um Pouco Acima da Miséria. Prémio de Poesia Cidade de Ourense, Espanha, 2013. Uma larga Antologia comemora os seus 35 anos de actividade literária, Caudal de Relâmpagos, de 2017 e tem no prelo o livro Poemas de Leonardo, vencedor do Prémio de Poesia Joaquim Pessoa, 2018. Alguns dos seus poemas foram traduzidos para alemão, castelhano, catalão, croata, francês, hebraico, inglês, italiano e romeno. É tradutor de poetas gregos e escandinavos.