MARIA JULIETA MENDES DIAS
& PAULO MENDES PINTO

Maria de Magdala
a Mulher – a construção
do Culto – o caminho dos Mitos

7.2. A manutenção inevitável do horizonte de
religiosidade no feminino

Nesta imagem, onde os cabelos longos e fartos são o misto da mulher voluptuosa, mas ao mesmo tempo, a imagem desse acto recriador da sua identidade, ao usar esses mesmos apetrechos de desejo para limpar e enxugar os pés de Jesus, Maria Madalena aproximava-se de várias outras formas de religiosidade ligadas ao feminino. Fazendo apelo às heranças que, na primeira parte deste livro, fizemos desaguar na forma como Maria Madalena foi encarada, vista e interpretada, vemos que ao longo da Idade Média recaíram em Madalena um largo conjunto de outras figuras religiosas que também se identificavam nesses mesmos princípios religiosos e culturais.

Retratada com cabelos longos, penitente e prostituta, Maria Madalena será muitas vezes confundida, quer com Maria Egipcíaca, normalmente pintada ou esculpida totalmente nua, apenas com os seus longos cabelos a cobrir o corpo, quer com Lady Godiva, oriunda de horizontes religiosos muito distantes do Egipto dos longos desertos para onde se fugia para expiar culpas, mas também ligada a uma situação em que tivera de percorrer uma cidade apenas coberta com os seus cabelos. De facto, ambas as mulheres antes apontadas se assemelham, em muito, a Madalena. Egipcíaca, por exemplo, era prostituta em Alexandria, tendo-se retirado, após uma visita a Jerusalém, para os desertos da Palestina, vivendo uma rigorosa vida eremítica.

Para além destas duas personagens do imaginário, Maria Madalena ainda se encontra francamente associada a uma outra dimensão de religiosidade medieval: as «Madonas Negras», muitas delas extremamente populares entre os fiéis cristãos. Entre as mais conhecidas temos Jasna Gora (Czestochowa, Polónia), Montserrat (Espanha), Rocamadour (França), entre muitas outras. Todas têm como característica o facto de o rosto, as mãos e os pés serem negros. As lendas que se contam perdem-se nas brumas do tempo. Algumas das imagens são originalmente negras, outras escureceram com o tempo, devido a algum motivo externo, natural ou não.

Em França são chamadas de "Vierge Noires" e existem cerca de 50 santuários. Muitos dos santuários dedicados a estas imagens negras têm também altares em honra de Maria Madalena, assim como o inverso. Ao contrário do que se imagina, as Virgens Negras não estão apenas associadas à Virgem Maria, mãe de Jesus, mas também a Maria Madalena, chamada por vezes de "a outra Maria" – por exemplo, em Saragoça (Espanha), no santuário da Senhora do Pilar, encontra-se um altar dedicado a Maria Madalena que, na Idade Média, tinha grande peregrinações.

É também em Espanha que encontramos um dos mais interessantes casos deste culto. Em Guadalupe, escondido no coração da Estremadura espanhola, entre as Serras de Vila Huercas e Altamiras, ergue-se actualmente o majestoso Real Mosteiro de Santa Maria de Guadalupe, onde podemos encontrar um dos mais significativos casos de culto a uma Virgem Negra; de facto, o mosteiro dá guarida a uma das mais venerandas imagens da escultura religiosa, cuja origem se perde nas brumas da história.

Alguns códices apontam, miticamente, a origem da imagem para o século I d.C., indo ao ponto de atribuir a sua autoria a S. Lucas. Mais tarde, no século IV, aquando da trasladação dos restos mortais de S. Lucas para Constantinopla, a imagem teria acompanhado o evangelista nesse seu derradeiro percurso. No último quartel do século VI, a imagem terá estado exposta no oratório do papa Gregório Magno, exactamente o mesmo que declara que Maria Madalena era a prostituta.

Quando este Sumo Pontífice presidia a uma solene procissão, onde ia o andor com a imagem, para pedir à Virgem Maria que intercedesse sobre a cidade de Roma, que se debatia com uma forte epidemia, a mesma epidemia que suscitara a homilia onde Madalena fora identificada como a prostituta, o povo assistiu ao terminar da peste, enquanto surgia um anjo limpando o sangue de uma espada, no cimo da construção do Túmulo de Adriano, passando, desde então, a chamar-se o “Castelo de Sant’Ângelo”. Entretanto, como prova de grande amizade, Gregório Magno ofereceu a imagem a Leandro, arcebispo de Sevilha onde vai permanecer até 714, primeiros anos da conquista muçulmana (que se iniciara em 711).

Segundo a tradição, a escultura foi escondida nas margens do rio Guadalupe, onde séculos mais tarde, nos finais do século XII, em pleno auge do culto a Maria Madalena, foi milagrosamente descoberta por um pastor conhecido por Gil Cordero - a imagem que deu origem à história acima descrita deve ter, entretanto, desaparecido pois a escultura que hoje se contempla no mosteiro está datada, realmente, de finais do século XII. De autor desconhecido, faz parte da iconografia das Virgens Negras que na época proliferaram na Europa Ocidental. Trata-se de uma imagem românica, arcaica, com influências nas obras escultóricas bizantinas.

Tal como este caso, muitos são os santuários em que as imagens de Virgens Negras são como que um elo ancestral a uma proximidade muito grande com os tempos primeiros do cristianismo. Ao mesmo tempo, como se pode ver no caso de Guadalupe, Maria Madalena está plenamente presente em todo o contexto, quer da salvação de Roma, quer do achamento da imagem.

Com certeza, muitos santuários ligados à Virgens Negras foram erigidos sobre antigos lugares de culto de deusas pagãs, atitude defendida por vários teólogos da época de Gregório Magno, que exortavam os padres a permitirem que os aldeões pudessem celebrar suas festas antigas.

Por um lado, toda a imagética das lágrimas será aproveitada para ligar as representações da santa a locais onde nasceria água, perfeita imagem das suas lágrimas que nunca terminavam. Por outro lado, a sua natureza ctónica era fortemente marcada pelo facto de ter fugido para uma montanha e aí ter vivido numa gruta.

Muitas são as fontes com estátuas de Maria Madalena, como a já referida do Convento de S. Domingos de Benfica, em Lisboa. Mais próxima das questões telúricas, de uma fertilidade uterina, temos ainda casos como o que podemos encontrar em Alcobertas, Rio Maior (Portugal), onde uma anta pré-histórica foi transformada em igreja, sendo o orago de Maria Madalena.

É frequente encontrar em diversa bibliografia emaranhados de justificações para esta relação entre Maria Madalena e as Virgens Negras, juntando ainda os sempre omnipresentes nestas questões religiosas mal explicadas, os Templários. Como facilmente se poderá encontrar, muitas vezes se faz uma ligação directa entre o culto a Ísis, já aqui falado antes, e Madalena: as Virgens Negras seriam uma assimilação cristã de resquícios desse culto pagão tão em moda nos séculos do início do Cristianismo. Sem querer colocar directa e simplesmente em causa esta leitura, ela parece-nos fracamente sustentada. Da proximidade entre Maria Madalena, nos seus aspectos funcionais, comungamos plenamente; da extrapolação imediata que nos diz que uma é a continuidade do culto à outra … não: o culto a Maria Madalena pode, perfeitamente, ter encaminhado para o seio do Cristianismo alguns aspectos do culto a Ísis, mas não integrou o essencial: a ideia de salvação que os cultos iniciáticos à deusa egípcia tinham.

Sobre o mundo dos Templários, e a até interessante tentativa de os aproximar de Madalena, pelo facto de poderem ser os guardiães, entre outros, dos locais ligados a Madalena e a Marta, pouco temos a dizer. É tal a poluição intelectual em muitos dos escritos sobre a temática, que se torna verdadeiramente impossível enveredar por um trabalho sério e minimamente rigoroso.

O que nos surge como um dado certo, é que alguns autores medievais, tais como Hipólito, bispo de Roma (170-235 d.C.), associaram Maria Madalena à noiva morena dos Cânticos de Salomão (Cântico dos Cânticos 1, 5):

Sou morena, mas formosa

Ó filhas de Jerusalém

Seja por heranças antigas, seja ainda por contactos com o Oriente (via Templários, ou não), a verdade é que nos parece certa uma proximidade nada ocasional entre estas imagens negras de Virgem e Maria Madalena.

Esta proximidade ganha ainda aspectos de maior e mais significativo peso, quando verificamos a relação entre os ciganos e Madalena, talvez a santa a que esta comunidade mais atenção presta.

De facto, são duas as figuras femininas do horizonte dos monoteísmos abraamicos que os ciganos os cultuam: Sara e Maria Madalena. Ambas devem ter ocupado o lugar, mediante um processo de cristianização, da deusa Kali, a negra. Ora, no local onde miticamente se julga que Maria Madalena e os seus atracaram quando chegaram à Gália, fazem anualmente os ciganos uma grande festa em honra de Kali Sara, a Sara Negra.

Esta Kali Sara, que poderíamos julgar ser em honra da Sara bíblica de que já aqui se falou, é em honra de uma pescadora cigana que presenciara a chegada de Madalena, ou, segundo outras versões, a filha de Maria Madalena e Jesus. Estamos na base dos popularizados mitos que aliam a figura de Maria Madalena à origem da casa real merovingea.

Maria Madalena revela-nos, assim, uma dimensão ligada a cultos muito antigos, quem sabe se próximos de horizontes de valoração da fertilidade, um horizonte onde a imagem da prostituta não seria nada negativa, recolhendo em si a ancestralidade mostrada na parte primeira deste livro, onde a prostituição sagrada era muitas vezes vista como uma faceta necessária e positiva da relação com o mundo divino.

Directa ou indirectamente, via a proximidade a cultos como os das Virgens Negras, Madalena encontra-se muitas vezes associada a locais umbilicalmente ligados ao mundo da fertilidade e, podemos afirmar, de divindades suas antecessoras.