MARIA JULIETA MENDES DIAS
& PAULO MENDES PINTO

Maria de Magdala
a Mulher – a construção
do Culto – o caminho dos Mitos

6.3.4. O espaço mediterrânico: Saint-Maximin

De facto, enquanto Vèzelay entrava numa profunda e longa decadência, imagem de que o culto a Maria Madalena atingira o seu auge, noutras paragens ressurgia com significativa expressão.

Se no caso anterior nos é difícil datar a origem, o início do culto, jogando-se muita da pesquisa entre o mundo do mito e da realidade, em relação a Saint-Maximin, os investigadores são consensuais: o culto nasce em momento que se consegue observar sem grande grau de dúvida.

Para Saint-Maximin, no Sul de França, na região onde a lenda coloca a chegada de Maria Madalena, a datação da “invenção” das relíquias é consensual: os documentos escritos são relativamente claros, apontando o ano de 1279 para o “nascimento” do corpo cultuado.

Não temos significativa tradição de culto no local, mas encontramos alguns indícios bastante interessantes no que respeita ao significado do achado; mais que o significado do achado, o interesse em o achar.

De facto, contra o que era natural e tradição, em 1254, a escolha do prior de Saint-Maximin pelo abade de Saint-Victor de Marselha, mostra-nos uma alteração de monta no peso que o local teve e, em especial, iria ter. Nesse ano, o prior será Mestre Adam, próximo do Conde da Provence, Carlos de Anjou.

Terá sido o próprio princípe que motivou, que instou à descoberta das relíquias. Alguns hagiógrafos referiam que, em tempos, as relíquias estiveram, de facto, em Saint-Maximin, mas que foram levadas para Vèzelay em 749. Seguindo esta tradição hagiográfica, Anjou assim o supôs, e – o futuro o diria – bem.

Com o apoio de S. Luís, rei de França, as averiguações tinham início, e a 9 de Dezembro o corpo era descoberto.

Duas são as fontes para a época e os acontecimentos que lá tiveram lugar: Bernard Gui e Philippe Cabassole. Ambos relatam com alguma semelhança os factos ocorridos, permitindo-nos entrar por dentro de um campo bastante importante na época, o da validação das relíquias, se bem que segundo diferentes metodologias das que agora usaríamos em situações semelhantes.

Na cripta, explorada na altura, encontravam-se dois túmulos. Um, de mármore, atribuído a São Sidónio, e um outro, em alabastro, que tinha gravado o nome da santa e que apresentava a superfície gravada e historiada com baixos-relevos.

Fornecendo a indicação da santidade da personagem contido no túmulo de mármore, do corpo emanava, tal como surge indicado para a descoberta de Badillon em 745/749, um leve perfume floral. Mais, da boca do esqueleto saía uma pequena planta, identificada por um dominicano como uma “fenouil”, e vista pelo bispo de Cavallion como uma imagem de uma folha de palmeira, símbolo do apostolado da palavra.

Mas, os indicadores de garantia eram em maior número. Tal como sucedera no caso do corpo, meio século antes identificado em Vézelay, também aqui ele se fazia acompanhar por um documento escrito que validada o santo achado. Ambos os autores que nos fornecem dados sobre esta situação seguem quase a mesma linha descritiva. Dentro do túmulo encontrava-se uma caixa de madeira onde estava um pequeno pergaminho que atestava ser aquele o corpo da santa, trasladado no século VIII. Bernard Gui reproduz o documento nas suas obras Flores chronicorum e Speculum sanctorale.

As variantes que as cópias ao longo dos séculos nos deram são várias e implicam a própria datação e autenticidade do texto em si. Vejamos uma das mais consensuais edições:

No ano 710 [ou 716] da Natividade de Nosso Senhor, aos 16 dias do mês de Dezembro, sendo Odoyno o piíssimo rei de França, no tempo das investidas dos infiéis e pérfidos sarracenos, trasladou-se o corpo da venerável santa Maria Madalena do seu sepulcro em alabastro para este em mármore […]

Ora, o primeiro problema, longamente debatido por especialistas, reside na identificação do monarca e, consequentemente, na suposta datação do texto.

Seguindo o epíteto “piíssimo”, tudo levaria a crer que se trataria de um monarca carolíngio ou capetino; realmente, entre 888 e 898 reina um Eudes, mas essa datação é em dois séculos posterior à data apontada no texto do pergaminho (710 ou 716). Tomando-se, então, a data como certa, não devemos estar perante um rei, mas sim o duque da Aquitânia, Eudes, que realmente viveu na época apontada (688-735).

Qualquer que seja a datação correcta do texto, ou se estamos perante um duque ou um rei, o que nos importa, observadores do fenómeno religioso, é que a trasladação relatada nos remete para o horizonte da rápida e efectiva conquista muçulmana da Península Ibérica. De facto, em 711 as tropas islâmicas desembarcam na Ibéria e rapidamente sobem quase todo o espaço peninsular, atingindo os Pirinéus, ultrapassando-os mesmo.

Trata-se, sem sombra de dúvida, de um desenrolar bastante rápido de acontecimentos que em muito marcou a cristandade ocidental. Quando a não marcou pela conquista, marcou-a pelo imaginário que criou em seu torno. Toda a senda, a gesta, a epopeia relatada na Canção de Rolando nos remete para os conturbados tempos em que, a muito custo, em 732, as tropas francas conseguiram estancar a invasão muçulmana em Poitiers.

Se o texto algumas dezenas de anos antes encontrado no outro túmulo onde então se dizia encontrar o corpo da santa, em Vèzelay, recorria à efectivação desse mesmo mito, três gerações depois, no monarca saído da linhagem que tivera essa vitória decisiva, tornado imperador na noite de Natal do ano 800, com o nome de Carlos, o Magno, o texto de Saint-Maximin ia à base desse mito, aos tempos da invasão, como que justificando a troca dos túmulos para protecção e dissimulação face ao saque eminente. Com base na mesma mitologia, ambos os santuários validavam as suas relíquias, “vencendo” este segundo pela radicação da narrativa numa ainda mais profunda e primevo momento ideológico: se Vézelay ia buscar validade ao tempo dos monarcas que travaram o avanço islâmico, Saint-Maxinin ia alicerçar-se na mesma luta contra o ifiel, mas quase um século antes, no momento da chegada do Islão, tornando-s e anterior, esvaziando de sentido o local concorrente.

Em ambos os casos, era como que uma ideia matricial de Europa, por oposição ao inimigo externo, o Islão, que cimentava os mitos e as crenças comuns. Essa continuidade entre os já distantes anos de setecentos em que as tropas muçulmanas estiveram a escassas vitórias de entrar pela actual França, e os anos em que em Vèzelay ou Saint-Maximin se exumam corpos de Maria Madalena, fizera-se com uma luta em sentido inverso que mantivera essa característica identitária da Europa em plena ebulição: as cruzadas – fenómeno que se concentrou entre os séculos XII e XIII, retomava a luta contra o “infiel”, cimentando a unidade comum da cristandade. Obviamente, na Península Ibérica, esse ideal de cruzada tomou corpo na chamada Reconquista Cristã que, como veremos, teve no caso do culto a Maria Madalena uma forte ferramenta de enraizamento social.

Tornando ao final de duzentos, certificado que estava o corpo encontrado em Saint-Maximin, em 1280, no ano seguinte, eram exaltadas as relíquias da santa. Tal como no caso do santuário de Vézelay, toda a hierarquia religiosa e nobiliárquica regional esteve presente. A 5 de Maio estavam em Saint-Maximin o conde da Provence, filho do Rei da Sicília, e sobrinho do rei de França, São Luís, os arcebispos de Narbonne, Aix e Arles, bispos em grande número, para além de nobres, clero variado e, naturalmente, povo em quantidade significativa.

Nesta cerimónia, o segundo momento em que foi aberto o túmulo da santa, era ainda encontrada mais uma prova da veracidade e autenticidade das relíquias. De facto, parecera que escapou à primeira análise um pequeno documento que dizia simplesmente: aqui repousa o corpo da santa Maria Madalena.

Seguindo as necessidades taumatúrgicas da época, o corpo aqui encontrado foi também profanado. Em 1283, o crânio era colocado num relicário de ouro e pedras preciosas, sobre o qual era ainda colocada uma coroa real doado pelo rei de Nápoles.

De facto, fora Carlos II, rei de Nápoles, que fomentara as pesquisas que levariam à descoberta do corpo da santa em Saint-Maximin. Todas as crónicas que o referem apontam a devoção do monarca a Maria Madalena, afirmando-se que o motor dessa ideia de buscar o corpo de Madalena fora resultado de inspiração divina.

Obviamente, os religiosos a quem estava entregue o local, na altura ainda os beneditinos, montaram esquemas de interpretação das aparentes contradições. Assim, Bernard Gui mostra-nos que se criara a seguinte leitura e inter-relação dos dois locais de culto: de facto, julgava-se que o corpo de Maria Madalena tivesse sido levado, em meados do século VIII para Vèzelay, como forma de fuga a uma região cada vez mais fustigada por muçulmanos, mas acontece que, antes dessa trasladação, o corpo fora mudado de sepulcro em Saint-Maximin. Trocado que fora o corpo do seu sarcófago em alabastro, que tinha gravado o seu nome, o santo depois levado para Vèzelay seria outro, muito possivelmente São Sidónio, que deveria estar no sarcófago onde entretanto se encontrara o corpo da santa.

Fazendo uma completa actualização do culto e significado da santa, depois de justificada toda esta querela com o anterior local onde se pensava estar o corpo de Maria Madalena, em 1295, o santuário era entregue aos recém-criados dominicanos que, significativamente, adoptavam a santa ainda tida como a prostituta, como sua padroeira.

A vinda dos dominicanos é justificada, sustentada, logo na geração seguinte de religiosos no terreno. Deverá ser do tempo de Jean Gobi (sénior) (o terceiro prior do convento, entre 1304 e 1328) a redacção de um Livro de milagres de Maria Madalena, que recolhe os milagres acontecidos junto ao seu túmulo desde 1279. Nesse livro, além dos relatos miraculosos, surge anexo um outro texto: O milagre da gloriosa Maria Madalena que foi motivo da fundação e construção do convento de Saint-Maximin pelo ilustre rei Carlos II.

Neste milagre, o monarca encontra-se preso e, tal como S. Pedro, é liberto de forma miraculoso por intermédio da santa, a quem ele se dedicara no dia anterior, o dia da sua festividade (21 de Julho). Tudo se passa no horizonte pio de uma época profundamente cristianizada; Carlos II encontra-se acompanhado pelo seu confessor, mostrando a dimensão já importante de um sacramento em construção. Mas mais, esse confessor era um dominicano.

A libertação tem um preço, uma tarefa a cumprir: descobrir, em Sanit-Maximin, o corpo da que o libertara. Mais, é logo afirmado, pela própria santa, que nesse local, assim como no local próximo onde ela vivera, a Saint Baume, a gruta, seriam construídos dois conventos dominicanos.

Era o horizonte de uma nova cristianização que era buscada neste mito de origens. Aliada aos dominicanos, Maria Madalena assumiria neste século cristão por excelência, a imagem de uma nova cristandade, a que nascia de uma viragem para a cidade através da obra dos mendicantes. Penitente primeira na era do Cristo, Madalena era a imagem do que de piedade se pregaria em tempos de uma nova e agora profunda evangelização da Europa.