MARIA JULIETA MENDES DIAS
& PAULO MENDES PINTO

Maria de Magdala
a Mulher – a construção
do Culto – o caminho dos Mitos

2.3. A prostituição sagrada

Chegamos agora a uma dimensão da prática religiosa que apresenta uma dupla forma de valoração: tanto pode ser altamente negativa, centro das mais maléficas metáforas e formulações teológicas, como relativamente aceite e até valorizada como parte integrante da relação social com a divindade.

Não trataremos os dados específicos da cultura judaica, que tinha como doentiamente negativa a prática sexual profissional, mas sim o caldo cultural em seu redor, donde, logicamente, comungavam. Mas, naturalmente, necessitamos de encontrar a forte linha que separa uma concepção eventualmente positiva, de uma claramente negativa.

Neste contexto, temos de distinguir duas formas de prostituição: a sagrada e a profana. A imagem que se aliou, ao longo dos séculos, a Maria Madalena, é a de uma prostituta comum, obviamente, a imagem profana dessa actividade.

Tudo nos leva a crer que, no Mundo Antigo, a prostituição sagrada era um campo de prática, de ritualidade, significativamente normal. A Prostituta Sagrada, tomando como matriz a Grécia, era a hierodoule, e a sua actividade, enquadrada no campo das principais incumbências do templo em questão, era a hierodouleia, isto é, o «serviço sagrado».

De qualquer forma, temos de relativizar uma certa ideia generalizada, vinda das leituras um pouco acríticas de Heródoto que, nas últimas dezenas de anos, foram sendo postas em causa. Talvez de forma exagerada, o apelidado «Pai da História» conta que “todas as mulheres babilónicas devem, uma vez na vida, ir a um santuário de Afrodite e aí unir-se a um estranho”, em troca de dinheiro que era oferecido ao templo.

Saindo dos textos históricos que nos ajudam a criar mitologias, sem significativas dúvidas, está documentada a prática de um rito de união sexual entre o rei e a deusa Inana na cidade suméria de Uruk, no 3º e nos começos do 2º milénio a.C. Inana, a deusa tutelar de Uruk, a Rainha do Céu, a estrela da tarde, a filha do deus Lua. Para outras cidades da região da Suméria estão documentados, nos começos do 2º milénio a.C., ritos em tudo semelhantes. No que concerne ao 1º milénio, há, de facto, indícios da existência da hierogamia na Mesopotâmia, mas tratar-se-ia de um rito exclusivamente simbólico, que tinha como protagonistas as estátuas de um casal divino.

De qualquer forma, esta imagem da hierogamia régia prolongar-se-ia, de certo, noutros ritos do mesmo teor, celebrados, quer por membros do clero, ou por estes e leigos, ou apenas por leigos. É este o quadro religioso do fenómeno que deverá ter tido lugar na lata região onde se desenvolverão as primeiras comunidades de cristãos na Ásia Menor.

Neste caso, podemos ter o quadro de uma prática institucionalizada, com profissionais do culto especializadas, e realizando a sua incumbência em local próprio. Trata-se, pois, de um actividade inserida num culto e num rito constante, continuado, desenvolvido no quadro de uma organização mais ou menos estável e reconhecida por uma sociedade, e não a ocasional prática de actividades sexuais não integradas num templo e num rito diário.

De facto, esta prostituição de que falamos não se enquadra dentro da prática económica individual da chamada “mais velha profissão do mundo” - também ela comum no Mundo Antigo, justificação para o ditado que lhe confere tão proveta posição na fenomenologia da prática laboral.

Já o Código de Hamurabi (Babilónia, cerca do séc. XIX a.C.) é claro ao distinguir as duas práticas, mediante a pena a aplicar a uma Prostituta Sagrada encontrada em local de prostituição corrente, profana (ver o texto do § 40 desse código) - naturalmente, esta ideia de clara diferenciação não se pode aplicar a todas as realidades existentes no campo dos cultos de prática sexual; por exemplo, as ainda existentes devadasis indianas, prostitutas sagradas, são frequentemente confundidas com as normais prostitutas, devido à forma como realizam a sua actividade: quase sempre na rua e não em locais ou templos próprios para tal.

De uma forma genérica, a prostituição corrente – individual e de sentido económico pessoal - até seria relativamente tolerada ou até mesmo encarada como vertente positiva e necessária na regulação da sociedade. Na epopeia de Gilgamesh, tal situação parece ser francamente formulada quando a cidade de Uruk recorre a uma prostituta para “civilizar” o jovem indomado Enkidu – a actividade sexual das prostitutas podia ser tida como uma positiva faceta para a cidade... situação que nos lembra, contemporaneamente, a quase abençoada “salvatriz” Geni (misto de salvadora e de meretriz, qual nova Maria de Magdala) da Ópera do Malandro de Chico Buarque de Holanda.

Na Epopeia de Gilgamesh, a situação é clara a este respeito. Quando Enkidu, recém-criado e recém-chegado ao mundo dos homens, entra em processo de civilização, tem de aprender a vestir roupas e a beber cerveja, marcas claras do homem já neolitizado, já dominador das artes da agricultura e da vida em comum, na cidade. A distância entre ele e a humanidade é expressa pelas características que se imaginavam, qual misto de observação dos animais com um certa memória da pré-história recente, para uma grau de vida anterior à conquista da civilização: vestir-se de peles, alimentar-se de ervas como os grandes herbívoros. Esta natureza selvagem é-lhe, literalmente, retirada trazendo-o para o mundo dos civilizado, sociabilizando-o. Os sumérios levam-no a uma cortesã, confiando que a atracção dele por ela o trouxesse para o mundo civilizado. Enkidu une-se a ela durante seis noites e sete dias. Saciado, diríamos nós, tenta retomar a sua vida animalesca... mas os animais agora fogem dele; Enkidu tenta correr atrás dos animais, mas já não consegue correr tanto quanto eles. Os seus olhos abriram-se, qual imagem do pecado original de Adão e Eva ao comerem o fruto da árvore proibida. Enkidu compreende o que lhe aconteceu: agora pertence ao mundo dos homens da cidade. Perdido desse velho mundo, retorna a essa prostituta civilizadora: ela divide com ele as roupas, ensina-o a comer, leva-o aos pastores, ensina-o a beber cerveja. Depois de tudo isto, Enkidu está pronto para realizar o seu destino e a razão pela qual foi criado: vai então à cidade encontrar Gilgamesh, tornando-se o seu fiel companheiro.

Realmente, no Mundo Antigo, a imagem da sexualidade passava directamente por uma noção de urbanidade, de civilização, que encontrava na prostituição uma das suas imagens. Seguindo Nancy Qualls-Corbett, era "a veia através da qual os rudes instintos animais são transformados em amor e na arte de fazer amor".

Mas esta função benéfica dever ser mais profundamente equacionada. Passando do mito para a sua funcionalidade na vida na cidade, a prostituição reside no campo do ritual colectivo, tomando a cidade como uma entidade orgânica. Pelo menos, na sua forma mais antiga, a hierogamia tinha como função assegurar o bem do rei, do povo e do país. A funcionalidade residia, assim, num misto de alcance cósmico, religioso e social, operando certa recriação, a união entre os mundos divino e humano e a harmonia entre a sociedade e a natureza.

Neste ponto temos de equacionar, enquanto modelo, a situação do casamento sagrado - metáfora posteriormente tão bem aproveitada pelos formuladores do monoteísmo. De facto, a noção de hieros gamos pode relacionar-se efectivamente com a prática sexual propositadamente direccionada de uma profissional do culto - sexual, neste caso - e o seu deus. De uma forma genérica, a efectivação dessa relação não seria mais que a manutenção desse casamento, entre o divino cultuado e os seus crentes, ritual plenamente revificado e potencializado.

Isto é, tal como encontramos em alguns rituais de Ano Novo, a união entre um rei e uma sacerdotisa, também a união entre um cultuante e uma prostituta sagrada refaz esse mesmo acto primordial entre a divindade que tutela a cidade e um dos seus membros.

A célebre epopeia de Gilgamesh volta a dar-nos interessante material para a questão. Na versão em babilónio antigo surge um trecho de clara ritualização sexual entre o monarca, Gilgamesh, os seus guerreiros e as prostitutas sagradas de um templo. Vejamos:

Os sacrifícios sucediam-se em Uruk,

Os jovens deleitavam-se

Ele apresentou-se galhardamente

Para o homem da bela face.

Para Gilgamesh, como para um deus,

É apresentada uma companheira

Para a deusa Ishhara,

Uma cama é preparada

Para que Gilgamesh, com uma jovem,

Se unisse essa noite.

A base cultural deste mito encontramos num dos mais antigos e interessantes textos sumérios. Numa tradição de textos em que se descreve como as divindades atribuíram e distribuíram a civilização pela humanidade, chegou até nós uma listagem de «elementos e complexos culturais», onde, com naturalidade, não só a prostituição está aí integrada, como se encontra em lugar de significativo destaque (26º, numa lista de 68), mostrando a visão civilizadora que da actividade se tinha.

Paralelo, algo semelhante, podemos encontrar na Grécia Antiga quando Aristófanes coloca, na sua idílica situação de plena igualdade na cidade (trata-se da sua obra As Mulheres no Parlamento, aliás, obra em muito inspirada na República de Platão), montada e gerida pelas mulheres, uma verdadeira sexocracia ditada pelas mulheres mais idosas que tinham direito, todas as noites, a escolher o seu jovem antes das donzelas.

Obviamente, Maria Madalena em pouco pode parecer comungar desta linha de mentalidade. Como veremos, no espaço de Israel estas ideias estavam muito postas de parte: a prostituição era algo que metaforicamente evoluíra para um dos principais contentores demonizados; mas, não nos podemos esquecer que o cristianismo se desenvolverá essencialmente fora do espaço cultural do judaísmo, onde a prostituição sagrada não tinha sido tão maltratada como no espaço de influência directa da Bíblia. Mesmo nesse espaço, a prostituição será uma preocupação. Na Carta aos Coríntios, Paulo é claro na compreensão que faz da cidade em causa: sabendo que Corinto era uma cidade famosa pelo seu Templo a Afrodite, onde a prostituição era corrente, não hesita em falar do «uso e abuso do corpo», como surge em título ao trecho em causa; Vejamos um excerto (6, 15-20):

Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo? Iria eu, então, tomar os membros de Cristo para fazer deles membros de uma prostituta? Por certo que não! Ou não sabeis que aquele que se junta a uma prostituta, torna-se com ela um só corpo? Pois, como diz a Escritura: Serão os dois uma só carne. Mas [...] Não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, porque o recebestes de Deus, e que vós já não vos pertenceis? Fostes comprados por um alto preço! Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo.

Apesar de, no Mundo Helenístico, existir toda uma linha religiosa, de várias religiões de salvação, em que o Cristianismo se insere, e de um campo filosófico, o estoicismo, profundamente relutantes em relação ao mundo da prostituição sagrada, a verdade é que cremos que a visão da maioria da população, nos primeiros séculos da nossa era, não seria tão violentamente negativa para com uma figura que se apresentasse como... prostituta. Maria Madalena não o era, supomos, nos primeiros séculos, mas a confusão entre as mulheres existentes nos relatos evangélicos deveria começar a fazer-se à medida que cada vez menos prelados conseguiam chegar à versão original, a grega, dos textos sagrados: Gregório Magno, na sua famosa homilia, em princípios do século VI, quando torna “oficial” que Madalena é a prostituta, é apenas o ponto final nessa evolução figurativa que deve ter começado bastante mais cedo.