Paradoxos da
"Ascenção de Cristo ao Céu"

BENTO DOMINGUES, O.P. ............................................Público, Lisboa, 23.05.2004

 

1. Para L. Wittegenstein, "o pensador religioso honesto é como um funâmbulo. Aparentemente, caminha quase só pelo ar. O seu apoio é o mais reduzido que imaginar se pode e, todavia, é realmente possível caminhar assim".  

Hoje, na liturgia católica, celebra-se a "Ascensão de Cristo ao Céu". O Ressuscitado flutua e desaparece encoberto por uma nuvem. Os discípulos fixam-se num céu que os perde (Act 1,1-11). Na era espacial, esta festa pode prestar-se a incontroláveis derivas da imaginação e a equívocos que a podem tornar ridícula.  

Importa, por isso, pensar na significação cristã dessa extraordinária figuração simbólica para os dias de hoje.   É por ela que começam os Actos dos Apóstolos, a grande narrativa das origens do cristianismo. É introduzida por uma pergunta dos discípulos que deixou o próprio Cristo de boca aberta: "Senhor, é agora que vais restaurar o reino de Israel?"  

O Mestre verifica que eles não aprenderam nada. A esperança que tinha renascido com a sua ressurreição não passava afinal de um retorno aos velhos sonhos de um Estado teocrático que ele tanto combatera ao longo dos anos.  

Diante dessa pergunta, Cristo concluiu que não adiantava insistir. O conhecimento que entra pelos ouvidos, os sinais que entram pelos olhos precisam de um receptor que seja apto a captar a sua significação espiritual. Sem ele, como dizia Tomás de Aquino, o próprio Evangelho torna-se "letra que mata".  

Jesus sabia, aliás, o que tinha acontecido com ele próprio: só o Espírito de Deus conseguiu mudar radicalmente o rumo da vida que levara em companhia de João Baptista. Sem a obediência ao impulso e à graça do Espírito Santo, os discípulos de Cristo e os dirigentes das comunidades cristãs nunca conseguirão vencer duas tentações persistentes: os sonhos do poder e a "espiritualidade" alienante. A este respeito, a narrativa da Ascensão é espantosa: os discípulos, já depois de Cristo ter desaparecido, continuam a olhar para o Céu esperando de lá as soluções para a terra. São figuras celestes - "os dois homens vestidos de branco" - que os interpelam de forma cruel: "Homens da Galileia, porque estais a olhar para o Céu?"  

Não tem sentido perder-se em conjecturas acerca do desígnio insondável de Deus sobre o futuro do mundo: deixai a Deus o que só a Deus pertence. Esta hora é de convocação geral da Igreja para o testemunho: "Recebereis a força do Espírito Santo que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia, na Samaria, e em toda a Terra."  

2. Hoje, depois do fracasso de tantas ilusões do pós-Vaticano II reafirmam-se na Igreja duas grandes tendências, embora com várias ramificações: uma que configura tudo em termos de poder, dentro e fora da Igreja - o poder deve estar nas boas mãos de leigos, padres, bispos selectos; e outra que também não quer saber de questões de justiça e paz, de direitos humanos, de opção preferencial pelos mais pobres, "questões da esquerda", pois o que importa é preencher o grande vazio do nosso tempo com uma espiritualidade não contaminada por questões sociais.

A este respeito, é importante a conferência do bispo de Hildesheim, Josef Homeyer, presidente da Comissão dos Episcopados da Comunidade Europeia (Comece), pronunciada em Lisboa, em 2003, no colóquio "A África e a União Europeia: parceiros de solidariedade. Contribuição da Igreja".  

Relembra que nos anos 60, no espaço católico, as Igrejas locais desenvolveram, de modo surpreendente, um processo diferenciado de inculturação. Em África, procedeu-se à releitura da teologia da Incarnação que desembocou num diálogo crítico, muitas vezes tenso, com a espiritualidade tradicional do povo e com o risco do sincretismo. Na América do Sul, a Escritura foi reinterpretada na perspectiva dos grandes desafios sociais (Teologia da Libertação), correndo o risco da transposição marxista. Na Europa, fortificou-se e agudizou-se o processo da diferenciação teológica com o risco de secularismo intra-eclesial. Para o presidente da Comece, o contributo espiritual dos cristãos para o processo de globalização parte de uma definição simples da "Espiritualidade": aceitação e partilha da salvação de Deus em Jesus Cristo. Mas em que direcção?  

"Nós os cristãos voltamos o nosso olhar, em primeiro lugar e essencialmente para a vida arruinada, para a comunidade destruída, para as estruturas injustas. De salvação precisam os mais pobres e os perdidos, não os que estão satisfeitos e os que permanecem sempre incólumes. De salvação precisam os vencedores, para que possam deixar de vencer - como vemos no conflito do Iraque -, de salvação precisam os que têm fome e os que não têm esperança.  

"A nossa espiritualidade da salvação, acolhida e partilhada uns com os outros, tem a forma de cruz. Temos de desenvolver uma espiritualidade que está atenta aos mais fracos no processo de unificação do mundo. Inculturação do Evangelho quer dizer participação dos pobres no processo de globalização. Diálogo das culturas quer dizer essencialmente diálogo com os pobres. A Igreja, a 'catholica communio', modifica e impregna o processo da globalização através da participação dos pobres."  

É paradoxal esta festa da Ascensão: Deus é o Céu de Cristo que tem a sua morada nos que lutam, de muitas formas, para salvar as vidas arruinadas.