Uma Pastoral
da Incredulidade (IV)



BENTO DOMINGUES, O.P. ...........................................Público, Lisboa, 10.10.2004

O comentário às incredulidades do pastor luterano Thorkild Grosboll não satisfez as preocupações de alguns leitores. Não foi só porque, no texto do domingo passado, na citação de S. Tomás de Aquino, a "treva" mística se viu transformada numa "trova"... O que eles não podem aceitar é que um pregador do Evangelho negue a ressurreição. É um atentado contra uma afirmação central da fé cristã: "Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. Mas se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã também é a nossa fé" (1 Cor 15, 13-14).

Se repararmos bem, S. Paulo está confrontado com uma comunidade muito parecida com a posição negativista do pastor criticado.

Segundo o Actos dos Apóstolos, o mesmo Paulo não encontrou grande receptividade para a sua pregação sobre a ressurreição, no Areópago de Atenas. Tertuliano , um dos primeiros teólogos cristãos, verificou que negar a "ressurreição da carne" era comum a todos os filósofos. Santo Agostinho testemunhou que nenhuma outra verdade da fé cristã encontrava tanta resistência.

Há, nas religiões, muitas formas de representar a chamada "vida depois da morte". A geografia do "Além" reproduz, com retoques, os desejos, os sonhos, os êxitos e os fracassos da vida neste mundo. Para falar daquilo que é inverificável pelos nossos sentidos, só dispomos de recursos analógicos, simbólicos, míticos. Quem for alérgico a esse tipo de linguagem não encontrará qualquer significação interessante nessas representações.

Tanto Tertuliano como Agostinho respiravam uma filosofia para a qual o corpo, a "carne", era o cárcere da alma. A morte era encarada como uma saída da prisão. Era absolutamente normal que ninguém quisesse continuar nessa má companhia. A imortalidade da alma tinha, por isso, muito mais sucesso do que a linguagem da ressurreição.

O próprio E. Kant , pensando a religião nos limites da razão, postulou, como condição de possibilidade da não frustração radical, a existência de Deus e a imortalidade da alma. Uma posição que, tirando algumas críticas e suspeitas mordazes, ainda não perdeu totalmente o seu prestígio. Mas ficará sempre de pé algo que S. Tomás de Aquino exprimiu de forma lapidar: "A minha alma não é o meu eu" (anima mea non est ego ).

Anselmo Borges conta uma pequena história de um antidualismo radical. Morreu, numa aldeia, uma criança. Uma outra perguntou à mãe: "Quando eu morrer, para onde vou?" Resposta: "O teu corpinho vai num pequenino caixão para o cemitério e a tua alminha vai para o céu." Nova pergunta da criança: "E eu?"

2. Por motivos diversos, há quem se resigne a que a aventura humana seja uma fatídica procissão de fantasmas que vão do nada ao nada. Há quem pense que é preciso um outro mundo para ajustar contas com este: as vítimas da história precisam de uma oportunidade. Aqui, para alguns, as vítimas continuam na tradição da memória dos vivos. E aqueles que não têm ninguém para os recordar? Há quem prefira não pensar em nada disso: comamos e bebamos que amanhã morreremos, pois à morte pertence a última palavra.

Não são, porém, as únicas hipóteses. Pessoalmente, prefiro não fazer representações do "Além" nem especulações sobre a palavra ressurreição. As confissões da fé são apenas meios para o encontro com a realidade que sugerem, de forma mais ou menos feliz, mais ou menos infeliz.

A ressurreição de Cristo significa, positivamente, que Jesus, ao morrer, não entrou no nada, no absoluto vazio. Foi acolhido pela Realidade mais real, mas irrepresentável , a que damos o nome Deus. O próprio Jesus, segundo o Evangelho de S. Lucas, disse aos discípulos, orgulhosos dos seus êxitos prodigiosos numa campanha de evangelização: "Alegrai-vos, antes, porque os vossos nomes estão escritos no Céu."

No contexto, a palavra Céu é um substituto da palavra Deus. Isto significa: alegrai-vos porque vós estais inscritos no coração de Deus.

E o texto continua: "Nesse mesmo instante, Jesus estremeceu de alegria sob a acção do Espírito Santo e disse: 'Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos pequeninos."

Quando se afirma de alguém - verificada a sua morte biológica, cerebral - que Deus o ressuscitou, não se está a fazer nenhuma afirmação verificável por qualquer tipo de ciência humana, por qualquer verificação historicamente controlável. É uma pura convicção de fé.

Os que viram o Cristo ressuscitado - dos quais fala 1Cor 15 e as narrativas evangélicas - viviam na história, mas viam através do dom sobrenatural da fé, com os olhos da fé, com uma inteligência occulata fide , como dizia Tomás de Aquino . Os textos não dizem que os discípulos descobriram Cristo através das suas investigações. Dizem que foi Ele que se lhes manifestou. Dada a sua morte por crucificação, eles até pensavam que tudo tinha acabado e não tinham nenhuma ideia acerca de como continuar a aventura. É Cristo, no novo tipo de existência, que toma a iniciativa de os convocar, na força do Seu Espírito, para romperem todas as fronteiras.

Espero, contra toda a evidência, que Deus seja a alegria infinita, o verdadeiro paraíso, o verdadeiro céu daqueles que nos deixaram em lágrimas.